domingo, maio 26, 2013

C.S. Lewis: A Trindade

Avisei que a Teologia é um assunto prático. O obje­tivo único da nossa existência é ser assumidos pela vida divina. Quando temos idéias erradas sobre o que é essa vida, a realização do objetivo torna-se mais difícil. E ago­ra peço que vocês sigam meu raciocínio com a máxima atenção por alguns minutos.
Todos sabem que, no espaço, podemos nos mover de três maneiras: para a esquerda e para a direita, para a frente e para trás, para cima e para baixo. Toda direção espacial é uma dessas três ou uma combinação delas. São o que chamamos de três dimensões. Agora note o seguinte. Se você usar apenas uma dimensão, poderá desenhar somente uma linha reta. Se usar duas, pode­rá desenhar uma figura: um quadrado, digamos, que é feito de quatro linhas retas. Vamos dar mais um passo. Se usar três dimensões, você poderá construir o que cha­mamos de um corpo sólido, como um cubo — um dado, por exemplo, ou um torrão de açúcar. O cubo é com­posto de seis quadrados.
Compreendeu? Um mundo unidimensional seria uma linha reta. Num mundo bidimensional, ainda ha­veria linhas retas, mas as linhas poderiam compor figuras. Num mundo tridimensional, ainda existem figuras, mas, combinadas, elas compõem corpos sólidos. Em outras palavras, à medida que avançamos para níveis mais com­plexos e mais reais, não deixamos para trás as coisas encon­tradas nos níveis mais simples: elas ainda existem, mas se combinam de maneiras novas — maneiras que nem sequer poderiam ser imaginadas por alguém que só conhecesse os níveis mais simples.
Ora, a noção cristã de Deus envolve o mesmíssimo princípio. O nível humano é um nível simples e mais ou menos vazio. Nele, uma pessoa é um ser e duas pessoas são dois seres separados - da mesma forma que, num plano bidimensional como o de uma folha de papel, um quadrado é uma figura e dois quadrados são duas figu­ras separadas. No nível divino, ainda existem persona­lidades; nele, porém, as encontramos combinadas de ma­neiras novas, maneiras que nós, que não vivemos nesse nível, não podemos imaginar. Na dimensão de Deus, por assim dizer, encontramos um Ser que são três pes­soas sem deixar de ser um único Ser, da mesma forma que um cubo são seis quadrados sem deixar de ser um único cubo. E claro que não conseguimos conceber ple­namente um Ser como esse. Do mesmo modo, se perce­bêssemos apenas duas dimensões do espaço, não podería­mos jamais imaginar um cubo. Mesmo assim podemos ter dele uma noção vaga. Quando isso acontece, nós conseguimos ter, pela primeira vez na vida, uma idéia positiva, mesmo que tênue, de algo suprapessoal — algo maior que uma pessoa. É algo que nos surpreende com­pletamente e que, no entanto, quando ouvimos falar dele, quase nos faz sentir que poderíamos tê-lo adivinha­do, uma vez que se harmoniza tão bem com as coisas que já conhecemos.
Você pode perguntar: "Se não conseguimos imagi­nar esse Ser tripessoal, de que adianta falar sobre ele?" Bem, de nada adianta falar sobre ele. O que interessa é sermos atraídos e conduzidos de fato para dentro dessa vida tripessoal. Esse processo pode começar, aliás, a qual­quer momento — hoje à noite, se você quiser.
O que quero dizer é o seguinte: o simples cristão ajoelha-se e faz suas orações, tentando entrar em contato com Deus. Porém, se ele é cristão, sabe que o que o induz a orar é também Deus: Deus, por assim dizer, dentro dele. E sabe também que todo o conhecimento real que possui de Deus veio por meio de Cristo, o Homem que foi Deus. Sabe que Cristo está de pé a seu lado, aju­dando-o a orar, orando por ele. Você vê o que está acon­tecendo? Deus é aquilo para o qual ele ora — o objeti­vo que tenta alcançar. Deus é também aquilo, dentro dele, que o impele — a força motriz. Deus, por fim, é a estrada ou a ponte que ele percorre para chegar a seu objetivo. Assim, toda a vida tríplice do Ser tripessoal en­tra em ação nesse quarto humilde onde um homem co­mum faz suas orações. O homem está sendo capturado por um tipo superior de vida — o que chamei de zoé ou vida espiritual: está sendo atraído para dentro de Deus pelo próprio Deus, sem deixar de ser ele mesmo.
E foi assim que começou a Teologia. As pessoas já conheciam Deus de forma mais ou menos vaga. Então veio um homem que dizia ser Deus; um homem que, no entanto, ninguém conseguia rejeitar como um luná­tico. Esse homem fez com que as pessoas acreditassem nele. Essas pessoas voltaram a encontrar-se com ele de­pois de tê-lo visto ser assassinado. Por fim, tendo-se cons­tituído numa pequena sociedade ou comunidade, essas pessoas de alguma forma descobriram a Deus dentro de si próprias, dizendo-lhes o que fazer e tornando-as capazes de atos que até então eram impossíveis. Quando entenderam tudo isto, elas chegaram à definição crista do Deus tripessoal.
Essa definição não é algo que inventamos. A Teolo­gia, em certo sentido, é uma ciência experimental. São as religiões simplistas que foram inventadas. Quando digo que ela é uma ciência experimental "em certo sentido", quero dizer que é igual às outras ciências experimentais sob alguns aspectos, mas não todos. Se você é um geó­logo que estuda minerais, você tem de ir a campo para encontrá-los. Eles não irão até você e, quando você os en­contra, eles não podem escapulir. Toda a iniciativa cabe a você. Os minerais não podem nem ajudá-lo, nem pre­judicá-lo. Agora suponha que você seja um zoólogo que se propôs a tirar fotos de animais em seu hábitat natu­ral. A situação fica um pouco diferente. Os animais sel­vagens não irão ao seu encontro, mas podem fugir de você, e, se você não ficar bem quieto, certamente o fa­rão. Começa a haver aqui um pouquinho de iniciativa por parte deles.
Passemos a um estágio superior. Suponha que você queira estudar um ser humano. Se ele estiver determinado a não se deixar estudar, você não conseguirá co­nhecê-lo. Vai ser preciso ganhar-lhe a confiança. Nesse caso, a iniciativa se divide igualmente pelos dois lados - para uma amizade, são necessárias duas pessoas.
Quando se trata do conhecimento de Deus, a ini­ciativa cabe inteiramente a ele. Se ele não se revelar, nada que você fizer o capacitará a encontrá-lo. E, na verda­de, ele se dá a conhecer muito mais a certas pessoas que a outras — não porque tenha predileções, mas porque é impossível que ele se revele ao homem cuja mente e cujo caráter estejam em más condições. Da mesma forma, os raios do sol, apesar de também não terem predile­ções, não se refletem tão bem num espelho empoeirado quanto num espelho polido.
Podemos dizê-lo de outra forma: enquanto nas ou­tras ciências os instrumentos são externos a nós (como o microscópio e o telescópio), o instrumento pelo qual vemos a Deus é nosso próprio ser, nosso ser inteiro. Se o ser do homem não estiver limpo e brilhante, sua vi­são de Deus será turva — como a lua vista por um te­lescópio sujo. E por isso que os povos abomináveis têm religiões abomináveis: eles vêem a Deus através de uma lente suja.
Deus só pode se revelar verdadeiramente para ho­mens de verdade. Isso não significa apenas homens in­dividualmente bons, mas homens unidos entre si num único corpo, amando-se e auxiliando-se mutuamente, revelando Deus uns aos outros. Pois é assim que Deus quer que a humanidade seja: como os músicos de uma orquestra, como os órgãos de um corpo.
Em conseqüência, o único instrumento verdadei­ramente adequado para conhecer Deus é a comunidade cristã como um todo, a comunidade dos que juntos o aguardam. Numa analogia, a fraternidade cristã é o equi­pamento técnico dessa ciência — os apetrechos do labo­ratório. Por isso, as pessoas que, ano sim, ano não, lançam uma versão flagrantemente simplificada da religião na tentativa de substituir a tradição cristã estão perdendo completamente o seu tempo. São como o sujeito que, contando apenas com um velho binóculo, resolve cor­rigir toda a comunidade dos astrônomos. Pode ser que esse sujeito seja bastante inteligente, talvez até mais in­teligente do que alguns astrônomos de verdade, mas ele próprio se sabota. Em dois anos estará esquecido, enquanto a verdadeira ciência continuará de pé.

Se o cristianismo fosse algo que inventamos, é cla­ro que seria mais fácil. Mas não é. Não podemos com­petir, em matéria de simplicidade, com as pessoas que inventam religiões. Como poderíamos? Trabalhamos com a realidade como ela é. Só quem não se importa com a realidade pode se dar ao luxo de ser simplista.


(tirado de CRISTIANISMO PURO E SIMPLES)

sexta-feira, maio 24, 2013

JAMES W. SIRE: Dando nome ao elefante (cosmovisão como conceito) -parte 1-.


Continuando as leituras sobre cosmovisão, até aqui foram Dooyewwerd, Frame, Craig chegamos a James W. Sire, neste livro é uma revisão de sua obra maior, por assim dizer, O universo ao lado.

O livro também é um diálogo com a obra de David Naugle: Cosmovisão: a história de um conceito.

Sire tem um quê de Dooyeweerd, ele coloca como o holandês o coração como centro da cosmovisão, que é:


Uma cosmovisão é um compromisso, uma orientação fundamental do coração, que pode ser expresso como uma narrativa ou como um conjunto de pressuposições (suposições que podem ser verdadeiras, parcialmente verdadeiras ou inteiramente falsas) que nós sustentamos (consciente ou subconscientemente, consistente ou inconsistentemente) sobre a constituição básica da realidade, e que fornece o fundamento sobre o qual nós vivemos, nos movemos e existimos.

No capítulo 2, Sire faz um relato histórico do conceito de cosmovisão, de Dilthey até  Naugle.  Para este,  segundo o autor, "as cosmovisões brotam da totalidade da existência piscológica humana, intelectualmente da cognição da realidade , afetivamente na valorização da vida e volitivamente no exercício ativo da vontade" (p.40)

No capítulo 3, há uma discussão sobre o que vêm primeiro: o ser ( a ontologia) ou o saber ( a epistemologia).  Para Sire, há uma preeminência da ontologia:

"Se a realidade primordial é o Deus-bíblico, a ética não está baseada nas aspirações mais altas da humanidade, mas fundamentada no caráter de Deus como a bondade última. O propósito humano não é autodeterminado por qualquer pessoa, comunidade, nação ou grupo multinacional, mas predeterminado por Deus" (p. 83)

 A ontologia é o fundamento para a epistemologia. Ele retoma o tema  calvinista do conhecimento de Deus como base para o autoconhecimento.

"A ontologia deve preceder a epistemologia na formulação de uma cosmovisão. Do contrário, estaremos baseando toda a nossa cosmovisão na estrutura frágil do ego humano, isto é, na autonomia da razão humana, o que de fato significa a autonomia do ego humano de cada pessoa ou o sentido de razão de cada comunidade. Agir assim é perigoso. A justificativa de nossa cosmovisão não deve ser a razão humana autônoma, ainda que a razão como representada pela tradição cristã. A prioridade bíblica do Ser- Deus como Ser- seria em tal caso substituída pela epistemologia ou, mais precisamente, pela hermenêutica. Nestas condições, a cosmovisão cristã se tornaria não apenas moderna, mas pós-moderna" (p.109)

A cosmovisão não é algo teórico, mas pré-teórico ou pressupocionalista. "O pressuposcional é aquilo que, para o qual embora sejamos capazes de dar razões, não podemos estritamente falando, provar" (p. 114).

Deus é tido como algo pré-teórico, como Calvino e a tradição após ele chamou de sensus divinatus, Sire cita Alvin Plantinga:  "O sensus divinatus é uma disposição ou conjunto de disposição para formar crenças teístas, em várias circunstâncias, em resposta ao tipo de condições ou estímulos que deflagram a operação deste senso de divindade" (p. 119)

Para Sire, o conflito está em "ou os seres humanos são feitos à imagem de um Deus com pelo menos algumas características humanas ( Calvino) , ou Deus é feito à imagem dos seres humanos (Freud)" (p.122).

Na mesma toada, Dooyeweerd  citado também parte dos motivos-base, sejam aquele originado em Deus ou aqueles originados no pecado. Para Sire, "o não-convertido de forma alguma pode compreender a força de um argumento para o cristianismo. O evagelho, portanto, deve ser apenas proclamado, não defendido"(p. 129)

A cosmovisão está localizada no amâgo espiritual pré-teórico do ser humano, como ensina Dooyeweerd.

Partindo desse conceito pré-teórico da cosmovisão, Sire começa a tecer um sistema de racionalidade, a cosmovisão como uma estória-mestre do pensamento, neste ponto ele se alia aos pensamentos de Leslie Newbigin, Wlash e Middleton.

"Nosso argumento é que a Bíblia, como estória cristã, normativa, canônica e fundadora, trabalha em último caso contra a totalização. Ela é capaz de fazer isso por que contém duas dimensões contraideológicas ou fatores antitotalizantes identificáveis... A primeira destas dimensões consiste de uma sensibilidade radical ao sofrimento que permeia a narrativa bíblica do êxodo até a cruz. A segunda consiste no enraizamento da estória na intenção criacional abrangente de Deus, que deslegitimiza qualquer uso estreito e partidário da estória" (p. 152)


quinta-feira, maio 23, 2013

C.S.Lewis: A Teologia

(pedaço do CRISTIANISMO PURO E SIMPLES)



Todos me aconselharam a não lhes dizer o que vou dizer neste último livro. Afirmam: "O leitor comum não quer saber de Teologia; dê-lhe somente a religião sim­ples e prática." Rejeitei o conselho. Não acho que o lei­tor comum seja um tolo. Teologia significa "a Ciência de Deus", e creio que todo homem que pensa sobre Deus gostaria de ter sobre ele a noção mais clara e mais pre­cisa possível. Vocês não são crianças: por que, então, lhes tratar como tal?




Em certo sentido, até compreendo por que algumas pessoas se sentem desconcertadas ou até incomodadas pela Teologia. Lembro-me de certa ocasião em que dava uma palestra para os pilotos da R.A.F. e um oficial velho e rijo levantou-se e disse: "Nada disso tem serventia para mim. Mas saiba que também sou um homem re­ligioso. Sei que existe um Deus. Sozinho no deserto, à noite, já senti a presença dele: o tremendo mistério. E é exatamente por isso que não acredito em todas essas fórmulas e esses dogmas a respeito dele. Para qualquer um que tenha conhecido a realidade, todos eles pare­cem mesquinhos, pedantes e irreais."

Ora, num sentido, até concordo com esse homem. Creio que ele provavelmente teve uma experiência real de Deus no deserto. Quando se voltou da experiência para o credo cristão, acho que realmente passou de algo real para algo menos real. Da mesma maneira, um ho­mem que já viu o Atlântico da praia e depois olha um mapa do Atlântico também está trocando a coisa real pela menos real: troca as ondas de verdade por um peda­ço de papel colorido. Mas é exatamente essa a questão. Admito que o mapa não passa de uma folha de papel colorido, mas há duas coisas que devemos lembrar a seu respeito. Em primeiro lugar, ele se baseia nas experiên­cias de centenas ou milhares de pessoas que navegaram pelas águas do verdadeiro oceano Atlântico. Dessa for­ma, tem por trás de si uma massa de informações tão reais quanto a que se pode ter da beira da praia; com a diferença que, enquanto a sua é um único relance, o ma­pa abarca e colige todas as experiências de diversas pes­soas. Em segundo lugar, se você quer ir para algum lugar, o mapa é absolutamente necessário. Enquanto você se contentar com caminhadas à beira da praia, seus vis­lumbres serão mais divertidos que o exame do mapa; mas o mapa será de mais valia que uma caminhada pela praia se você quiser ir para os Estados Unidos.

A Teologia é como o mapa. O simples ato de apren­der e pensar sobre as doutrinas cristãs, considerado em si mesmo, é sem dúvida menos real e menos instigante do que o tipo de experiência que meu amigo teve no de­serto. As doutrinas não são Deus, são como um mapa. Esse mapa, porém, é baseado nas experiências de cen­tenas de pessoas que realmente tiveram contato com Deus — experiências diante das quais os pequenos frêmi­tos e sentimentos piedosos que você e eu podemos ter não passam de coisas elementares e bastante confusas. Além disso, se você quiser progredir, precisará desse mapa. Note que o que aconteceu com aquele homem no de­serto pode ter sido real e certamente foi emocionante, mas não deu em nada. Não levou a lugar nenhum. Não há nada que possamos fazer. Na verdade, é justamente por isso que uma religiosidade vaga — sentir Deus na natureza e assim por diante — é tão atraente. Ela é toda baseada em sensações e não dá trabalho algum: é como mirar as ondas da praia. Você jamais alcançará o Novo Mundo simplesmente estudando o Atlântico dessa ma­neira, e jamais alcançará a vida eterna sentindo a presença de Deus nas flores ou na música. Também não che­gará a lugar algum se ficar examinando os mapas sem fazer-se ao mar. E, se fizer-se ao mar sem um mapa, não estará seguro.

Em outras palavras, a Teologia é uma questão prá­tica, especialmente hoje em dia. No passado, quando havia menos instrução formal e menos discussões, talvez fosse possível passar com algumas poucas idéias sim­ples sobre Deus. Hoje não é mais assim. Todo mundo lê, todo mundo presta atenção a discussões. Conseqüen­temente, se você não der atenção à Teologia, isso não significa que não terá idéia alguma sobre Deus. Significa que terá, isto sim, uma porção de idéias erradas — idéias más, confusas, obsoletas. A imensa maioria das idéias que são disseminadas como novidades hoje em dia são as que os verdadeiros teólogos testaram vários séculos atrás e rejeitaram. Acreditar na religião popular moderna da Inglaterra é a mesma coisa que acreditar que a Terra é plana — um retrocesso.

Pois, na prática, a idéia popular de cristianismo é sim­plesmente esta: Jesus Cristo foi um grande mestre da moral e, se seguíssemos seus conselhos, conseguiríamos estabelecer uma ordem social melhor e evitar uma nova guerra. Saiba que isso tem seu fundo de verdade. Mas é muito menos que a verdade integral do cristianismo, e na realidade não tem importância prática alguma.

E verdade que, se seguíssemos os conselhos de Cris­to, viveríamos em breve num mundo mais feliz. Nem precisaríamos ir tão longe: se déssemos ouvidos ao que disseram Platão, Aristóteles ou Confúcio, estaríamos muito melhor do que estamos. E daí? Nunca seguimos os conselhos dos grandes mestres. Por que começaría­mos a segui-los agora? E por que estaríamos mais dis­postos a ouvir a Cristo que aos outros? Porque ele é o melhor mestre da moral? Com isso, é ainda menos pro­vável que o sigamos. Se não conseguimos aprender nem as lições elementares, como passaremos às mais adian­tadas? Se o cristianismo não passa de mais um bocado de conselhos, ele não tem importância nenhuma. Não nos faltaram bons conselhos nos últimos quatro mil anos. Um pouquinho mais não faz diferença.

No entanto, logo que nos debruçamos sobre os verdadeiros escritos cristãos, vemos que eles falam de algo inteiramente diferente dessa religião popular. Di­zem que Cristo é o Filho de Deus (o que quer que isso signifique). Dizem que os que nele depositam sua con­fiança podem também tornar-se filhos de Deus (o que quer que isso signifique). E dizem ainda que sua mor­te nos salvou de nossos pecados (o que quer que isso signifique).

Não adianta reclamar que essas afirmações são difí­ceis. O cristianismo pretende falar-nos de um outro mundo, de algo que está por trás do mundo que podemos ver, ouvir e tocar. Você pode até pensar que essa preten­são é falsa, mas, se for verdadeira, o que o cristianismo nos diz será necessariamente difícil — pelo menos tão di­fícil quanto a Física moderna, e pela mesma razão.

O ponto mais chocante do cristianismo é a afirma­ção de que, quando nos ligamos a Cristo, podemos nos tornar "filhos de Deus". Alguém pergunta: "Mas já não so­mos filhos de Deus? A paternidade de Deus não é uma das idéias principais do cristianismo?" Bem, em certo sen­tido não há dúvida de que já somos filhos de Deus. Ou seja, Deus nos trouxe à existência, nos ama e cuida de nós, como um pai. Mas, quando a Bíblia fala que podemos "nos tornar" filhos de Deus, obviamente quer dar a en­tender algo diferente. E isso nos leva para o próprio co­ração da Teologia.

Um dos credos diz que Cristo é o Filho de Deus "ge­rado, não criado"; e acrescenta: "Gerado pelo Pai antes de todos os mundos." Por favor, ponha na sua cabeça que isto não tem nada que ver com o fato de que, quan­do Cristo nasceu na terra como homem, foi filho de uma virgem. Não estamos falando aqui do nascimento virginal, mas de algo que aconteceu antes que a natu­reza fosse criada, antes que o próprio tempo existisse. "Antes de todos os mundos" Cristo é gerado, não criado. O que isso significa?

Não usamos mais as palavras begetting e begotten[1] no inglês moderno, mas todo o mundo ainda sabe o que elas significam. Gerar (to beget) é ser pai de alguém; criar (to create) é fazer, construir algo. A diferença é a seguinte: na geração, o que foi gerado é da mesma espécie que o gera­dor. Um homem gera bebês humanos, um castor gera castorzinhos e um pássaro gera ovos de onde sairão ou­tros passarinhos. Mas, quando fazemos algo, esse algo é de uma espécie diferente. Um pássaro faz um ninho, um castor constrói uma represa, um homem faz um aparelho de rádio - ou talvez algo um pouco mais parecido consi­go mesmo que um rádio: uma estátua, por exemplo. Se for um escultor habilidoso, sua estátua se parecerá muito com um homem. Mas é claro que não será um homem de verdade; terá somente a aparência. Não poderá pensar nem respirar. Não tem vida.

Esse é o primeiro ponto que devemos deixar claro. O que Deus gera é Deus, assim como o que o homem gera é homem. O que Deus cria não é Deus, assim como o que o homem faz não é homem. É por isso que os ho­mens não são filhos de Deus no mesmo sentido em que Cristo o é. Podem se parecer com Deus em certos aspec­tos, mas não são coisas da mesma espécie. Os homens são mais semelhantes a estátuas ou quadros de Deus.

A estátua tem a forma de um homem, mas não tem vida. Da mesma maneira, o homem tem (num sentido que ainda vou explicar) a "forma" ou semelhança de Deus, mas não o tipo de vida que Deus possui. Vamos examinar o primeiro ponto (a semelhança com Deus) em primeiro lugar. Tudo o que Deus criou tem alguma semelhança com ele mesmo. O espaço se parece com ele em sua vastidão; não que a grandeza do espaço seja do mesmo tipo que a grandeza de Deus, mas é uma espé­cie de símbolo dela, ou uma tradução dela em termos não-espirituais. A matéria é semelhante a Deus por ter energia: embora a energia física seja diferente do poder de Deus. O mundo vegetal é semelhante a Deus por ter vida, pois ele é o "Deus vivo". A vida em seu sentido biológico, porém, não é a mesma coisa que a vida em Deus: é como um símbolo ou uma sombra. Já nos ani­mais encontramos outras formas de semelhança com Deus além da vida vegetativa. A intensa atividade e a fertilidade dos insetos, por exemplo, é uma primeira e vaga imagem da atividade incessante e da criatividade de Deus. Nos mamíferos superiores, temos um princí­pio de instinto afetivo. Não é a mesma coisa que o amor que existe em Deus; mas é semelhante a este - da mes­ma maneira que uma figura desenhada numa folha pla­na de papel pode ser "semelhante" a uma paisagem. Quando chegamos ao homem, o mais elevado dos animais, vemos, entre as coisas que nos são conhecidas, a semelhança mais perfeita com Deus. (Pode haver cria­turas em outros mundos que se pareçam ainda mais com Deus, mas não as conhecemos.) O homem não apenas vive como também ama e raciocina: nele, a vida bioló­gica atinge o nível mais elevado de que temos notícia. Mas o que o homem, em sua condição natural, não possui, é a vida espiritual — um tipo diferente e supe­rior de vida que existe em Deus. Usamos a mesma pa­lavra — vida - para designar a ambas; mas se você pensa que por isso as duas são a mesma coisa, é como se pen­sasse que a "grandeza" do espaço e a "grandeza" de Deus são o mesmo tipo de grandeza. Na realidade, a diferen­ça entre a vida biológica e a vida espiritual é tão impor­tante que vou tratá-las por nomes diferentes. A vida bio­lógica, que vem da natureza e que (como tudo o mais no mundo natural) tende a se corromper e a decair -de modo que só pode se conservar através de contínuos subsídios dados pela natureza na forma de ar, água, ali­mentos etc. - é bíos. A vida espiritual, que é em Deus desde toda a eternidade e que criou o universo natural inteiro, é zoé. É certo que bíos tem uma certa semelhan­ça parcial ou simbólica com zoé: mas é apenas a seme­lhança que existe entre uma fotografia e um lugar, ou entre uma estátua e um homem. O homem que tinha bíos e passa a ter zoé sofre uma mudança tão grande quanto a de uma estátua que deixasse de ser pedra entalhada e se transformasse num homem real. E é exatamente disso que trata o cristianismo. Este mundo é como o ateliê de um grande escultor. Nós so­mos as estátuas, e corre por aí o boato de que alguns de nós, um dia, ganharão a vida.




[1] Do verbo to beget: gerar, originar. (N. doT.)

segunda-feira, maio 20, 2013

Herman Dooyeweerd: No Crepúsculo do Pensamento.


Herman Dooyeweerd (1894-1977) é o maior filósofo do neo-calvinismo, herdeiro da tradição de Kuyper.  Ele adotou o método transcendental para explicar a experiência humana e compreender a relação entre a razão e a moral, o direito e a fé.

Segundo Guilherme de Carvalho diz na introdução do livro : "contra Kant e o neokantismo, Dooyeweerd localizou o coração humano como o verdadeiro ponto de partida do pensamento - e não a razão humana- e mostrou a necessidade de autoconhecimento, por meio do conhecimento de Deus, para que o homem possa desenvolver um pensamento autenticamente crítico" (p.24). 

No crepúsculo... está dividido em 4 partes: 1. a pretensa autonomia do pensamento filosófico, 2. o historicismo e o sentido da história, 3. filosofia e teologia e 4. em direção a uma antropologia radicalmente bíblica.

1. A PRETENSA AUTONOMIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO.


No primeiro capítulo, Dooyeweerd faz uma crítica do pensamento teórico, em especial, à autonomia do pensamento filosófico em relação aos pressupostos religiosos. Há um dogma da razão autônoma, ele vai mostrar as origens deste dogmatismo que impede um verdadeiro insight sobre sua estrutura.

Para Dooyeweerd,  Deus é o unificador do pensamento, toda diversidade modal de leis está relacionada à unidade central da lei divina, o mandamento de amar a Deus e ao nosso próximo. 


"Na atitude teórica do pensamento, opomos o aspecto lógico de nosso pensamento e experiência às modalidades não lógicas a fim de adquirir um insight analítico em relação a essas últimas" (p.56)


"Não é de se admirar que as modernas teorias filosóficas do conhecimento as quais se apegam ao dogma da autonomia do pensamento teórico tenham sido incapazes de fazer justiça à experiência ordinária. Perdendo de vista as relações pré-teóricas de sujeito-objeto inerentes à experiência ordinária e a relação antitética característica da atitude teórica, eles interpretam a própria experiência ordinária como uma teoria acrítica. E essa teoria foi denominada realismo ingênuo, ou teoria da cópia (copy theory). Conforme supunha tal teoria, a experiência ordinária assume que a percepção sensória nos dá uma imagem adequada das coisas, de como elas são em si mesmas- como substâncias metafísicas, à parte da experiência humana. Uma refutação dessa alegada teoria, com a ajuda dos resultados experimentais da pesquisa científica, por um lado, e de argumentos epistemológicos, por outro, foi assim, aceita como uma refutação da própria experiência ordinária. de fato, um estranho mal entendido" (p.67)

Para Dooyeweerd, por trás do pensamento teórico autônomo, há a absolutização de um aspecto modal especial sinteticamente concebido. Lembrando que a  estrutura modal, os aspectos modais da realidade, é a base da construção da filosofia cosmonômica.

"Essa absolutização é a fonte de todos os ismos na visão teórica da experiência humana e da realidade empírica. Eles resultam  da tentativa de reduzir todos os outros aspectos modais de nosso horizonte temporal da experiência a simples modalidades do aspecto absolutizado" (p.69-70).

Dooyeweerd critica que eles nunca justificam a si mesmo tendo como um ponto de partida puramente teórico. Há uma influência de motivos suprateóricos mascarados pela pretensa autonomia. E também, "em toda absolutização de um ponto de vista sintético especial o problema fundamental relacionado ao ponto de partida da síntese teórica retorna sem solução" (p. 70)

Um terceiro problema é a origem do ego.  Como é possível a direção concêntrica pensamento em direção ao ego e qual é a sua fonte?  Dooyeweerd critica a noção lógico-transcendental de Kant, pois ele não conseguiu apresentar seu ponto de partida real da reflexão filosófica.

"O pensamento teórico não pode fornecer, a partir de si mesmo, essa direção concêntrica. Apenas o ego central pode fazê-lo desde um ponto de vista suprateórico" (p. 75-76). 

O ego é o centro de toda atividade do pensamento e o ponto de partida está relacionado com a direção concêntrica para o ego  - o coração -, a raiz da existência humana. O impulso religioso em direção à origem determina o motivo básico.

Dooyeweerd apresenta quatro motivos básicos: matéria-foma, bíblico radical criação-queda-redenção, natureza-graça e natureza-liberdade:

"O desenvolvimento da filosofia ocidental tem sido governado por quatro motivos básicos religiosos principais, os quais adquiriram um poder sociocultural na história da civilização ocidental. O primeiro é o motivo grego matéria-forma, cujo sentido religioso passo a explicar adiante. O segundo é o motivo básico bíblico radical da criação, da queda no pecado e da redenção por Jesus Cristo na comunhão do Espírito Santo; o terceiro é o motivo escolástico da natureza e graça e o quarto é o motivo moderno humanista da natureza e liberdade" (p. 87)

"No caso do motivo básico escolástico natureza e graça, a sua origem se encontra na tentativa de uma acomodação mútua entre o motivo básico bíblico e o grego ou entre o bíblico e o humanista, os quais, em princípio, excluem-se mutuamente. No caso dos motivos grego e humanista, seu conflito interno origina-se no fato de que eles desviam o impulso religioso inato do ego humano de sua verdadeira origem, direcionando-o para o horizonte temporal da experiência com sua diversidade de aspectos modais. Ao procurar, assim, sua origem absoluta em um desses aspectos, o eu pensante é conduzido à absolutização do relativo" (p. 88)

Motivo matéria-forma:

"O motivo básico matéria-forma está, assim, no fundamento da visão metafísica grega de ser em sua oposição ao mundo visível do vir a ser e do declínio, e da visão grega da natureza e da sociedade humana. Em razão de seu caráter dialético, esse motivo básico envolveu o pensamento grego em um processo dialético que apresenta todos os traços que havíamos indicado brevemente" (p.93)

Motivo bíblico radical:

É o único ponto de partida possível para uma filosofia cristã.

"O segundo motivo básico do pensamento ocidental é o tema bíblico central e radical da criação, da queda no pecado e da redenção por Jesus Cristo como a palavra de Deus encarnada, na comunhão do Espírito Santo" (p.93)

"Este motivo básico religioso revelou a raiz ou centro real da natureza humana, e desmascara os ídolos do ego humano que surgem ao se buscar esse centro dentro do horizonte temporal de nossa experiência, com sua diversidade de aspectos modais. Ele revela o sentido positivo real do ego humano, como ponto de concentração religiosa de nossa existência integral, como o assunto central da imago Dei na direção positiva do impulso religioso do ego para a sua Origem absoluta. Além disso, ele revela a origem de todas as absolutizações do relativo, ou seja, a direção negativa ou apóstata do impulso religioso no ego humano. Assim, esse motivo revela o caráter real de todos os motivos básicos do pensamento humano, os quais desviam o impulso religioso em direção ao horizonte temporal. Aqui se encontra, também, a significância crítica do motivo básico bíblico para a filosofia, uma vez que ele liberta o ego pensante de preconceitos que, em princípio, por se originarem de absolutizações, impedem um insight filosófico na estrutura real e integral da ordem temporal da experiência" p. 94

Motivo escolástico natureza-graça

"Na esfera natural, uma autonomia relativa foi atribuída à razão humana, que supostamente seria capaz de descobrir as verdades naturais por sua própria luz. Na esfera sobrenatural da graça, pelo contrário, o pensamento humano era considerado dependente da autorrevelação divina" (p. 96)

"A tentativa tomista de sintetizar os motivos opostos de natureza e graça, e a atribuição de primazia ao último, encontrou uma clara expressão no adágio: gratia naturam non tollit, sed perfecit ( a graça não cancela a natureza, mas a aperfeiçoa) (...) Qualquer ponto de conexão entre as esferas natural e sobrenatural foi negado. Isso foi a introdução para uma transferência da primazia para o motivo da natureza. O processo de secularização da filosofia havia começado" (p. 97) 

Motivo humanista natureza-liberdade:

O homem moderno recria  tanto sua origem como seu mundo à sua própria imagem.

"O motivo da liberdade origina-se de uma religião da humanidade, na qual o motivo básico bíblico foi completamente transformado. O esquema relacionado à ideia de renascimento da Renascença italiana significava um renascimento real do homem em uma personalidade criativa e completamente nova. Tal personalidade foi pensada como absoluta em si mesma e considerada como a única governante de seu próprio destino e do destino do mundo (...) A revelação bíblica da criação do homem à imagem de Deus foi implicitamente subvertida na ideia da criação de Deus à imagem idelizada do homem e de sua liberdade radical em  Jesus Cristo foi substituída pela ideia de regeneração do homem por sua própria vontade autônoma, sua emancipação do reino medieval das trevas, o qual estaria enraizadao na crença na autoridade sobrenatural da igreja" (p. 98)

O impulso de dominar a natureza por meio de um pensamento científico autônomo criou uma imagem determinista do mundo, construído sobre uma cadeia de relações causais que podem ser formuladas por equações matemáticas.

Os limites e a possibilidade de diálogo.

"A influência central dos motivos reilgiosos sobre o pensamento filosófico é mediada por uma ideia transcendental básica que se desdobra em três elementos os quais, consciente ou inconscientemente, estão na fundação de qualquer reflexão filosófica e tornam tal reflexão possível. Essa ideia básica tripla a qual denomino ideia cosmonômica da filosofia relaciona-se aos três problemas transcendentais básicos concernentes à atitude teórica do pensamento, que formulamos e consideramos em nossa primeira palestra. Assim, ela contém, em primeiro lugar, uma ideia-limite transcendental da totalidade de nosso horizonte temporal de experiência com sua diversidade de aspectos modais; em segundo lugar, uma ideia do ponto de referência central de todos os atos sintéticos do pensamento e, em terceiro lugar, uma ideia de origem, quer seja ela chamada Deus, quer não, relacionando  tudo o que é relativo com o absoluto" (p.104)

Cada reflexão filosófica é uma atividade humana falível, a filosofia cristã não tem posição privilegiada neste aspecto.

Por conta da graça comum, verdades relativas são encontradas em cada filosofia, embora as interpretações filosóficas podem ser inaceitáveis por estarem sendo governadas por um motivo básico dialético e apóstata.

Apenas na palavra de Deus e em seu sentido central, que revela as absolutizações e pode conduzir o homem ao verdadeiro conhecimento de si mesmo e sua origem absoluta.


2.HISTORICISMO E O SENTIDO DA HISTÓRIA.


O historicismo é apresentado como a absolutização do aspecto histórico. Dooyeweerd vai apresentar a evolução histórica do historicismo, até sua implementação no pensamento teórico contemporâneo. O historicismo radical faz do ponto de vista histórico uma totalidade abrangente, absorvendo todos os outros aspectos do horizonte da experiência humana. Dooyeweerd coloca Splenger como a fonte em seu livro THE DECLINE OF THE WEST.

Mas, ele traça suas origens na Renascença, como movimento religioso que buscava a transformação da religião cristã numa religião da personalidade e da humanidade. Em Descartes e Hobbes, para a governança do mundo apenas pelo pensamento autônomo e criativo projetou uma imagem de mundo a partir de padrões estritamente matemáticos e mecânicos.

A tensão dialética está entre a primazia da natureza (Descartes, Hobbes e Leibniz) e a primazia da liberdade (Locke, Rosseau e Kant).  A síntese dialética é o idealismo pós-kantiano (Hegel, Schelling)

O historicismo radical nasce dessa síntese, com Comte sendo o primeiro a submeter a crença cristã e humanista nas chamadas ideias eternas da razão humana à visão historicista.

"No fim das contas, o problema do significado da história gira em torno da questão: quem é o próprio homem, e qual é sua origem e destino final? Fora da revelação bíblica central da criação, da queda no pecado e da redenção por meio de Jesus Cristo, nenhuma resposta real pode ser encontrada para esta questão. Os conflitos e tensões dialéticos que ocorrem no processo de abertura da vida cultural humana resultam de uma absolutização do que é relativo. E cada absolutização tem sua origem no espírito da apostasia, o espírito da civitas terrena, o reino das trevas, como Agostinho o denominou" (p.171)

3. FILOSOFIA E TEOLOGIA.


Nesta terceira parte, Dooeyeweerd fala da relação entre filosofia, teologia e religião. Os pais da igreja falavam que a teologia cristã tinha seu próprio princípio de conhecimento - palavra-revelação.  A influência grega fez a teologia teórica cristã confundir o verdadeiro conhecimento de Deus e o verdadeiro autoconhecimento.

No escolasticismo, a teologia precisava da filosofia para fornecer a ela o caráter e o espírito de ciência, segundo o papa Leão XIII, em Aeterni Patris. Tomás não faz uma identificação como Agostinho de teologia e filosofia, para ele a filosofia é uma ciência autônoma, que inclui uma teologia filosófica que se reporta à luz da razão. A filosofia sai do controle da palavra de Deus

Em Barth,  a falta de uma distinção clara entre palavra-revelação como princípio central do conhecimento e o objeto científico próprio da teologia dogmática permanece. Barth opõe teologia dogmática e filosofia de uma maneira radical, para ele uma filosofia cristã seria uma contradição em termos.

"Essa é a razão por que  Barth, em clara oposição a Abraham Kuyper nega que a epistemologia utilizada pela teologia seja de caráter filosófico. A teologia dogmática, como um instrumento da palavra de Deus, precisa elaborar sua própria epistemologia, sem interferência da filosofia" (p.182)

Por outro lado, Barth tem que procurar ajuda no pensamento teórico, contudo, este é inadequado para o pensamento teológico. "essa ausência de alternativas ao pensamento teórico é a razão pela qual o teólogo não pode escapar a noções filosóficas. Ele pode tomá-las de todos os tipos de sistemas, contanto que não se prenda a qualquer deles e empregue essas noções em um sentido puramente formal, destacando-se de seu conteúdo filosófico material. Ignorando por um momento essa distinção entre uso formal e uso materialn de conceitos filosóficos, observamos que Barth também emprega o termo teologia de uma forma ambígua. Por um lado, ele entende por teologia o verdadeiro conhecimento de Deus em Jesus Cristo, por outro lado, a ciência dogmática das verdades da fé cristã reveladas nas sagradas Escrituras." (p. 183)

Religião: o conhecimento suprateórico de Deus.


"Assim, o tema central das Escrituras sagradas, ou seja, a criação, queda no pecado e redenção por Jesus Cristo na comunhão do Espírito Santo, tem uma uni dade radical de sentido que está  relacionada à unidade central da existência humana. Ele efetiva o verdadeiro conhecimento de Deus e de nós mesmos. se nosso coração estiver realmente aberto para o Espírito Santo de forma a se encontrar cativo da palavra de Deus e prisioneiro de Jesus Cristo. À medida em que esse sentido central da palavra-revelação estiver em questão, encontrar-nos-emos além dos problemas científicos, tanto da teologia como da filosofia. Sua aceitação ou rejeição é uma questão de vida ou morte para nós, e não uma questão de reflexão teórica. Nesse sentido, o motivo central das sagradas Escrituras é o ponto de partida comum, supracientífico, tanto de uma teologia bíblica quanto de uma filosofia realmente cristã. Ele é a chave do conhecimento, a qual Jesus Cristo mencionou em sua discussão com os escribas e doutores da lei. Ele é a pressuposição religiosa de qualquer pensamento teórico capaz de reivindicar para si, com justiça, a posse de um fundamento bíblico. Mas, como tal, ele nunca poderá se tornar o objeto teórico da teologia, assim como Deus e o eu humano não podem se tornar esse objeto" (p. 188)

Qual seria o objeto teórico apropriado da teologia? A palavra-revelação deve ser o fundamento da vida cristã, tanto em sua atividade prática como científica. Ela não pode ser objeto teórico, funciona como ponto de partida central, ou motivo básico religioso.

"Karl Barth, corretamente rejeitou a metafísica da analogia entis. Ele a chamou de invenção do anticristo e a substituiu pela analogia fidei, a analogia da fé. Mas, como vimos, é exatamente a estrutura analógica da fé o que confronta a teologia com um problema básico de caráter filosofico que não pode ser deixado de lado. Se, como pensa Karl Barth, a crença cristã não tem qualquer ponto de contato com a natureza humana, como pode ela apresentar aquela estrutura analógica pela qual mantém-se conectada, por exemplo, ao aspecto sensório de nossa experiência" (p. 220)

"Se os teólogos negarem a possibilidade de uma filosofia biblicamente fundamentada, são obrigados a tomar suas suposições filosóficas de uma assim chamada filosofia autônoma. É uma vã ilusão imaginar que as noções emprestadas de tal filosofia poderiam ser utilizadas pelo teólogo em um sentido puramente formal" (p.221)

"A teologia carece , acima de tudo, de uma crítica radical do pensamento teórico que, em virtude de seu ponto de partida bíblico, seja capaz de demonstrar a influência intrínseca de motivos básicos religiosos tanto sobre teologia como sobre a filosofia. Esse é o primeiro serviço que a nova filosofia reformada pode prestar à sua teologia irmã. Em minha próxima palestra explicarei a necessidade desse serviço em maiores detalhes" (p.222)

A questão para a teologia é buscar sua fundamentação filosófica numa filosofia cristã, governada e reformada pelo motivo básico bíblico central. Se não for este, será o escolástico ou humanista.

Dooyeweerd coloca os fundamentos gregos do escolasticismo, que vem do motivo básico forma-matéria, que foi gerada do encontro de suas religiões gregas antagònicas: a antiga religião natural da vida e da morte e a religião cultural mais jovem dos deuses olímpicos - Dionísio (matéria) e Apolo (forma).

Tomás acomodou a filosofia grega aristotélica da natureza humana à doutrina cristã. Deus criou o homem como uma substância natural, composta de matéria e forma. Para Dooyeweerd, a doutrina psico-criacionista contradiz a Escritura, pois Deus ainda está criando as almas. Agora, se Deus ainda cria as almas racionais após a queda, como ele cria almas pecadoras? Ou deveríamos assumir que o pecado está ligado ao corpo material apenas?

PARTE 4- EM DIREÇÃO A UMA ANTROPOLOGIA RADICALMENTE BÍBLICA


Nesta última seção, Dooyeweerd vai buscar responder sobre a questão do que é o homem. Ele vai lançar bases para uma antropologia que seja fundamentada na Escritura como seu motivo base. Fala da crise do pensamento ocidental e da incapacidade da filosofia existencialista de dar respostas:

"O homem de massa moderno perdeu todos os seus traços pessoais. Seu padrão de comportamento é ditado pelo que é feito em geral, transferindo este a responsabilidade pelo seu comportamento para uma sociedade impessoal. E essa sociedade, em troca, parece estar sendo controlada por um robô, um cérebro eletrônico ou pela burocracia, pela moda, pela organização e outros poderes impessoais. Como resultado, nossa sociedade contemporânea não deixa lugar para a personalidade humana e para uma comunhão espiritual real de pessoa para a pessoa" (p. 243)

No parágrafo 29, ele fala do sentido do eu. Primeiro, explica sobre a transcendência do eu, do mistério que há nisto que "o ego não deve ser determinado por nenhum aspecto de nossa experiência temporal, uma vez que é ponto de referência central de todos eles. Se ao homem faltasse esse eu central ele não poderia, de fato, ter qualquer experiência" (p. 249)

No mistério do eu, há três relações que Dooyeweerd faz para tentar concebê-lo: "Primeiro, o nosso ego relaciona-se com a nossa existência temporal total e com a nossa experiência integral do mundo temporal como seu ponto de referência central. Segundo, ele se encontra, de fato, em uma relação comunal essencial com o ego de seus semelhantes. Terceiro, ele aponta para além de si mesmo em direção à relação central com sua origem divina, em cuja imagem o homem foi criado" (p. 251)

Dooyeweerd retoma o tema do autoconhecimento em Deus de Calvino

"Ele é a única chave para o verdadeiro autoconhecimento em sua dependência do verdadeiro conhecimento de Deus. E é também o juiz único de ambas as visões, teológica e filosófica do homem. Como tal, esse tema central da palavra-revelação não pode ser dependente de interpretações e concepções teológicas, as quais são trabalhos humanos falíveis, limitados à ordem temporal de nossa existência e experiência. Seu sentido radical pode ser explicado apenas pelo Espírito Santo, o qual abre nosso coração, de forma que nossa crença não é mais uma mera aceitação dos artigos da fé cristã, mas uma crença viva, instrumental para a operação central da palavra de Deus no coração, o centro religioso de nossa vida. Essa operação não ocorre de forma individualista, mas na comunhão ecumênica do Espírito Santo que une todos os membros da verdadeira igreja católica em seu sentido espiritual, independentemente de suas divisões denominacionais" (p. 256)

Qual é o sentido radical de criação, queda e redenção?

Como Criador, Deus é a origem absoluta de tudo o que existe fora de si mesmo. Se o nosso coração não está cativo a Deus, então ele está pronto a absolutizar os relativos - idolatria. Não há zona neutra ou segura fora do alcance de Deus.

"Ele criou o homem como um ser em quem a inteira diversidade dos aspectos e faculdades do mundo temporal está concentrada no centro religioso de sua existência. Esse centro é aquele ao qual denominamos nosso eu, e o qual as Escrituras sagradas chamam, em um sentido religioso, de coração. Como o assento central da imagem de Deus, o ego humano foi imbuído com um impulso religioso inato a fim de concentrar todo o mundo temporal sob o serviço de amor a Deus. E uma vez que esse amor a Deus implica o amor por sua imagem no homem, toda a diversidade das ordenanças temporais de Deus é relacionada com o mandamento religioso central do amor: "amarás, pois, o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu entendimento... e ao teu próximo como a ti mesmo" -Mc 12:30,31. Esse é o sentido bíblico  da criação do homem à imagem de Deus. Ele não deixa, assim, espaço para uma esfera supostamente neutra da vida que possa ser subtraída do mandamento central de Deus. 

Uma vez que a imagem de Deus no homem relaciona-se com a radix, ou seja, o centro religioso e raiz de nossa existência temporal total, segue-se que a queda no pecado pode apenas ser entendida no mesmo sentido bíblico radical. A queda no pecado pode ser resumida como uma ilusão surgida no coração humano,  quando o eu humano creu possuir uma existência absoluta como o próprio Deus. Essa foi a falsa insinuação de satanás à qual o homem deu ouvidos - serás como deus". Essa apostasia em relação ao Deus vivo implicou na morte espiritual do homem, pois o eu humano não é nada em si mesmo e pode apenas viver da palavra de Deus e na comunhão amorosa com seu Criador divino. Entretanto, o pecado original não poderia destruir o centro religioso da existência humana e o seu impulso religioso inato de buscar a sua origem absoluta. Ele poderia apenas conduzir esse impulso central para um direção falsa, apóstata, desviando-o em direção ao mundo temporal com sua rica diversidade de aspectos, os quais, entretanto, têm apenas um sentido relativo" (p.260)

Não pode haver um autoconhecimento real longe de Jesus, toda a nossa visão de mundo e da vida precisa ser reformada em Cristo.  Toda visão dualista que separe dessa verdadeira raiz deve ser descartada.

A questão do homem não pode ser respondida pelo próprio homem, mas depende da palavra-revelação que mostra a raiz religiosa e o centro da natureza humana em sua criação, queda e redenção em Cristo.

"O homem perdeu o verdadeiro autoconhecimento desde que perdeu o verdadeiro conhecimento de Deus. Mas todos os ídolos do ego humano, os quais o homem projetou em sua apostasia, quebram-se quando confrontados com a palavra de Deus, que desmascara sua vaidade e seu vazio. Apenas essa palavra, por meio de sua influência radical, pode conduzir a uma reforma real de nossa visão do homem e de nossa visão do mundo temporal; e tal reforma interna é o extremo oposto do esquema escolástico da acomodação" (p.265)



John Frame:Apologética para a Glória de Deus - uma introdução







FRAME, John APOLOGÉTICA PARA A GLÓRIA DE DEUS: UMA INTRODUÇÃO  Tradução de Wadislau Gomes, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2010.

Capítulo 1 - Apologética: as bases.


No primeiro capítulo, John Frame lança as bases de sua apologética. Existem três  tipos de apologética: como prova, como defesa ou como ataque. 

Frame é um pressuposicionalista, para ele o apologeta tem de ser crente comprometido com Deus.  Temos uma apologética pressuposicionalista de um lado e a evidencialista, tradicional, clássica de outro lado.

":Esse tipo de apologética é, algumas vezes, chamado de método clássico ou tradicional, dado que reivindica que muitos o defenderam por intermédio da história da igreja, particularmente os apologetas do século 2o. (Justino Mártir, Atenagoras, Teófilo e Aristides), o grande pensador do século 13, Tomás de Aquino, e muitos dos seus seguidores até o presente, como Joseph Butler e seus seguidores," (p. 15)  

Esta defende uma neutralidade da razão,  procurando desenvolver um argumento neutro, que não tenha pressuposições distintamente bíblicas.


"O ponto não é se os descrentes são simplesmente ignorantes da verdade. Antes, Deus se revelou a cada pessoa com evidente claridade, tanto na criação - Sl 19, Rm 1:18-21- quanto na natureza do homem - Gn 1:26ss-. Em certo sentido, o incrédulo conhece a Deus (Rm 1:21). Em algum nível de sua consciência ou inconsciência permanece tal conhecimento.  A despeito desse conhecimento, o incrédulo intencionalmente distorce a verdade, substituindo-a pela mentira (Rm 1:18-32, 1Co 1:18-2:16- observe especialmente 2:14-,2Co 4:4). Portanto, o descrente é enganado (Tt 3:3). Ele conhece a Deus (Rm 1:21)e, ao mesmo tempo, não conhece a Deus (1Co 1:21, 2:14). Evidentemente, esses fatos suportam o ponto de que a revelação de Deus tem de governar  a nossa aproximação apologética. O descrente não pode ( e não quer) chegar à fé  à parte do evangelho da salvação revelado na Bíblia. Nós também não saberíamos a respeito da condição do incrédulo à parte da Escritura. E não poderemos alcançá-lo apologeticamente a menos que estejamos dipostos a ouvir os princípios apologéticos da própria Escritura" (p.17)

O argumento apologético tem que pressupor a verdade da Palavra de Deus. Isto seria um argumento circular? Todos precisam de um critério último, então, todos seriam culpados desta circularidade. Qual seria, então, as bases da conversa com um descrente?

1. A Escritura diz que Deus se revelou ao incrédulo - Rm 1:21
2. Nosso testemunho está acompanhado pelo Espírito Santo - Rm 15:18-19
3. Está assegurada pelo senso comum de busca pela verdade.
4. Ela pode assumir diversas formas.
5. Há uma distinção entre circular estreito e circular abrangente - o abrangente aceita evidências.

A soberania de Deus requer a responsabilidade humana, dando um papel significativo na história. A apologética é vista como uma obra soberana de Deus que transforma os corações com lugar para o homem nela.  Neste sentido, a pregação é a apologética porque busca a persuasão e a apologética é pregação porque apresenta o evangelho para a conversão e santificação.

O Sola Scriptura requer que se dê a mais alta autoridade para as Escrituras. Ela é o conselho de Deus. 

"Relacionar a Escritura aos seus contextos é relacioná-la à revelação natural. Revelação natural é a revelação de Deus em todas as coisas que ele fez (Sl 19.1ss, Rm 1:18ss), inclusive seres humanos, feitos à sua  imagem (Gn.1:27, 9:6, Tg 3:9). Todo ser humano está cercado pela revelação de Deus, tendo-a, até mesmo, dentro dele. Isso inclui, é claro, o incrédulo. Como já declarado, o incrédulo conhece claramente a Deus (Rm 1:21), mas, de diversas maneiras, procura reprimir tal conhecimento" (p. 25)

A revelação natural mostra o poder e a natureza de Deus, seus padrões morais e sua ira contra o pecado. Não é uma revelação para salvação. A revelação natural não é inferior a especial, ela é apenas corrigida pela especial que nos permite enxergar quem está por trás da natural.

Aquino não fazia distinção entre a revelação natural e especial, mas sim entre raciocínio com e sem a assistência da revelação (p.27)


Capítulo 2 - A mensagem do apologeta.


Para Frame, a mensagem e´a totalidade das Escrituras aplicada às necessidades de seus leitores. 

No que diz respeito à cosmovisão, ele coloca quatro coisas: 

1. a absoluta personalidade de Deus: deve-se evitar uma aproximação impessoal como pressuposição.

2. a distinção de Criador e criatura: deve-se lembrar da transcendência e da imanência de Deus. Evitar o liberalismo e a neo-ortodoxia em que Deus é o totalmente-outro "Todo pensamento não cristão eleva o homem ao nível de Deus ou rebaixa Deus ao nível do homem. Em qualquer dos casos, considera Deus, se é que o reconhece, como sendo igual ao homem, como outra parte da matéria do universo" (p.41)

3. a soberania de Deus: aqui há uma crítica ao arminianismo que hoje move-se em direção a teologia do processo. 

4. a Trindade:  O Deus cristão é três em um. Pai, Filho e o Espírito Santo.  Frame retoma o argumento de Lewis, de que Deus é amor apenas porque é Trindade, seu amor é inicialmente em si mesmo dentro das Pessoas da Trindade, é como seu ser.

Como Epistemologia, Deus é o supremo critério para a verdade e a falsidade. E como Ética, Ele também é o padrão para o bem ou para o mal.

Capítulo 3- Apologética como Prova- métodos.


A fé não é a crença com ausência de evidências, mas a fé honra a Palavra de Deus como evidência suficiente (p. 51)

O conceito de prova é de Van Til, "há provas absolutamente certas para a existência de Deus e para a verdade do teísmo cristão". As provas aqui são axiomas - "são pressuposições consideradas autoevidentes ou, pelo menos, são assumidas para o propósito de discussão". (p.54)

Na página 60, Frame coloca como argumentar:

1. seja intelectualmente apreensível ao inquiridor.
2. desperte e mantenha seu interesse
3. interaja com alguma area que ela admita fraqueza ou insegurança.
4. contenha alguns elementos de surpresa
5. coloque a verdade sem concessões
6. comunique o amor de Cristo.

Van Til colocou que o argumento pressuposicional requer o uso de um argumento em particular e a rejeição de outros.  Seus seguidores, chamam de transcendental, no sentido kantiano de condições para o pensamento. Então, o único argumento em favor de Deus como prova legítima se reduz a prova da possiblidade da predicação, sem a existência de Deus não há raciocínio.


Frame tem algumas objeções a Van Til (p.61):

O argumento transcendental precisa da ajuda de argumentos subsidiários de um tipo mais tradicional/evidencialista. Se sem Deus não há significado, para provar esta premissa precisamos de um validador, que leva ao argumento tradicional de valores. Os argumentos tradicionais de um projetista terminam com um Deus não bíblico.  Os argumentos tradicionais pressupõem uma cosmovisão cristã.

"Mas certamente o alvo geral da apologética é transcendental. Isto é, o deus a quem buscamos provar é, com efeito, a fonte de todo o significado, de toda a possibilidade, de atualidade e de predicação. O Deus bíblico é mais do que isso e certamente não menos. Com tal certeza, sequer deveríamos dizer alguma coisa ao inquiridor que sugira que é possível raciocinar, atribuir, tributar probabilidades, etc...à parte de Deus" p. 63

Van Til via a necessidade constante de repreender o orgulho espiritual, rejeitar o espírito de autonomia e sempre se apegar ao senhorio constante de Cristo sobre toda a estrutura de significados.

"O conhecimento regenerador de Deus é aquele que como já vimos pressupõe a Palavra de Deus. Uma pressuposição é mantida com certeza por definição, uma vez que ela é o próprio critério da certeza" p.66

 Quanto ao ponto de contato. Os arminiamos não acreditam que a depravação total tenha afetado a razão humana e o livre arbítrio. "Na visão de Barth, a graça de Deus cria o próprio ponto de contato. Essa posição é coerente com a noção de Barth, de que a recepção da graça não possui elemento intelectual. A graça não nos traz nenhuma revelação proposicional com a qual o descente, pela graça, venha a entender e confiar. Antes, é um raio vindo do nada e que não faz nenhum contato com o pensamento ou a vontade do incrédulo" (p. 69) 

Contudo, o homem foi criado à imagem de Deus. Há o conhecimento reprimido de Deus segundo Van Til,  não se busca o intelecto ou sua vontade que agora são escravas do pecado.

"As intenções do apologeta quanto ao ponto de contato, portanto, não são relevantes à descrição externa de sua apologética. Entretanto, tais intenções são relevantes às suas descrições e avaliações internas. Assim, a questão  do ponto de contato se resume a isso: estamos aceitando e nos dirigindo à cosmovisão distorcida do incrédulo ou à revelação que não sofre distorção e que ele mantém a despeito de sua visão distorcida?  (...) A questão do ponto de contato, portanto, é espiritual, é aquela por meio da qual examinamos nossos motivos, não aquela por meio da qual podemos facilmente avaliar as intenções de nossos companheiros apologetas"  (p.71)

Frame termina o capítulo defendendo o que ele chama de pressuposicionalismo do coração:

"O pressuposicionalismo de que falamos é :1. um entendimento claro sobre onde repousam nossas lealdades e de como nossas lealdades afetam nossa epistemologia; 2. uma determinação de, acima de tudo, apresentar o pleno ensino da Escritura em nossa apologética, sem comprometimento outros, com toda a simplicidade e com todo o poder ofensivo. 3. especialmente uma determinação de apresentar Deus como plenamente soberano, fonte de todo significado, inteligibilidade e racionalidade, e autoridade final para todo pensamento humano; e 4. um entendimento do conhecimento que o incrédulo tem de Deus e sua rebelião contra Deus, particularmente (ainda que não exaustivamente) a maneira como issso afeta seu pensamento" (p. 73)



Capítulo 4 - A Apologética como prova - existência de Deus.


Toda predicação dependem de Deus, sua existência é pressuposto para qualquer coisa.

Sobre argumentos morais, Frame diz que eles têm sido focalizados na causalidade ou no propósito. Mais recentemente, nos valores morais que é por onde ele argumenta. O valor mais elevado será objetivo como absoluto, assume a precedência e serve de critério para todos os outros, para os cristãos, este absoluto é a vontade de Deus expressa na Escritura.

"a fonte da autoridade moral absoluta é pessoal ou impessoal. Considere em primeiro lugar a última possibilidade. Isso significaria a existência de alguma estrutura impessoal ou lei no universo que coloca e requer justa fidelidade aos seus preceitos éticos. Entretanto, que espécie de ser impessoal poderia fazer isso? Certamente, se as leis do universo forem reduzidas ao acaso, nenhuma significância ética poderia simplesmente surgir. O que poderíamos aprender, de significância ética, de colisões de partículas subatômicas totalmente ao acaso? A que lealdade seríamos devedores se tudo fosse puro acaso?" (p.81)

Frame chega a conclusão de seu argumento dizendo que "se obrigações surgem de relacionamentos pessoais, então obrigações absolutas têm de surgir de relacionamentos com uma pessoa absoluta" (p.82). O argumento é transcendental. 

"A escolha é entre Deus e o caos, Deus e nada. Deus e a insanidade. Para muito de nós, essas sequer são escolhas. Crer em um universo irracional é mesmo que absolutamente não crer" (p.84)

Para Frame, o argumento cosmológico é epistemológico, a busca de causas e razões será autodestrutiva a menos que repouse ultimamente em Deus.

Quanto ao argumento ontológico,  provará o Deus bíblico somente se pressupuser valores cristãos e uma visão cristã de existência. Frame lembra Anselmo, "não que eu entenda para que possa crer, mas que eu creia para que possa entender".


Capítulo 5- Apologética como prova - Evangelho.


Provar a verdade de uma  narrativa da  história (1Co 15:1-11) é diferente de provar uma cosmovisão geral. 

É necessário um pregador para pregar o evangelho - Rm 10:14-15.

A própria Escritura argumenta suas afirmações, ela dá evidência da verdade de sua mensagem. Como testemunho de Deus acerca dele mesmo. Ela tem autoridade central, não é um produto humano ou histórico meramente, mas é a Palavra de Deus.


Capítulo 6 - O problema do mal.


Frame coloca seu pressuposto ao tratar esta questão:

"Se aquilo que queremos é achar encorajamento para continuar crendo no meio do sofrimento, a Escritura providencia isso, com abundância. Se você quiser ajuda para continuar confiando em Deus a despeito da falta de explicação para o mal, sim, podemos ajudar" (p. 119). A resposta a questão é bíblica, é teodicéia.

O que a Bíblia não diz:

  • 1. a defesa da não realidade do mal:  Alguns pensadores cristãos, até Agostinho, tratam o mal como um não-ser, ou uma privação do ser. Mesmo o mal faz parte do plano divino.

  • 2. a defesa da fraqueza divina: Harold Kushner, Deus não se sobrepõe porque é incapaz de fazer. Deus é onisciente, onipotente e soberano.

  • 3. defesa do melhor mundo possível: Leibniz diz que mesmo com o mal é melhor dos mundos possiveis que Deus poderia ter criado. "Deus necessariamente, nessa visão, torna o melhor mundo possível, incluindo quaisquer males necessários para obter o melhor resultado final. Por causa da própria excelência dos seus padrões, ele não poderia fazer nada menos que isso" (p.123)

  • 4. defesa do livre-arbítrio: O mal surgiu da livre escolha das criaturas, não foi causada ou pré-ordenada por Deus, então a existência do mal não compromete a bondade de Deus.  A Escritura concorda que a culpa deve recair sobre os homens pelo mau (Gn. 50:20, At. 2:23).   Contudo, essa visão de liberdade não condiz com a Escritura, Deus pode determinar nossas escolhas - Gn 50:20, 2Sm 24-. As livres escolhas do homem estão em Rm 11:36 e Ef. 1:11. Em Romanos 9, Paulo não usa esta defesa. Mesmo o arminianismo libertário que coloca a livre escolha causada pelo caráter e desejo, introduz fatores sem causa, substitui um determinismo impessoal por pessoal.

  • 5 defesa da construção do caráter: Outra defesa não bíblica é que o homem foi criado imaturo, que para crescer ele precisava de dor e sofrimento. A santificação não é aperfeiçoada pelo purgatório de sofrimento, mas pela própria ação de Deus em nossa vida.

  • 6. defesa do ambiente estável:  um ambiente estável abre a possibildiade para o mal é que o diz Lewis em Problema do Sofrimento, isto coloca a origem do problema na criação o que é antibíblico.

  • 7. defesa da causa indireta: Deus se relaciona com o mal de forma indireta, é a solução de Van Til. Contudo, a Bíblia diz que induzir alguém ao pecado é por si mesmo pecado - Dt 13:6, Rm 14.
  • 8. defesa da Ex Lex:  Gordon Clark é citado por Frame nesta teoria, a idéia é que Deus está acima do bem e do mal, da própria Lei divina. Contudo, a lei reflete o caráter do próprio Deus e obedecer a Deus é imitar a Deus, é refletir sua imagem - Mt 5:45. Deus honra a Lei que ele nos ordenou.


Capítulo 7 - O problema do mal 2



A escritura fornece uma nova perspectiva histórica, no passado está a promessa e a espera. No presente, está a defesa de um bem maior, sendo que este é a própria glória de Deus e não a felicidade do homem. Deus usa males  para o progresso de seu propósito (p.144-145):

1 - demonstração da sua justiça e graça - Rm 5:20-21.
2- o julgamento do mal - Mt 23:35
3- redenção - 1Pe 3:18
4- confronta os valores dos incrédulos para promover mudança de coração - Zc 13:7-9
5- Disciplina paterna nos crentes  Hb 12
6 - Vindicação de Deus - Rm 3:26

"Os crentes, mesmo tendo corações novos, continuarão a perguntar sobre o problema do mal. Mas há tantas razões para dar graças a Deus que jamais poderemos olhar para o mal com a mesma paixão que a do incrédulo. O crente simplesmente olha para o mundo com seus valores de maneira diferente da do incrédulo. E a mudança de valores talvez seja o mais perto que podermos chegar, neste ponto da história, de uma teodicéia" p. 146


Capítulo 8- Apologética como ofensiva 


Há um aspecto duplo do incrédulo: a incredulidade (ateísmo) e a idolatria. 

"Os seguidores de Schaeffer tendem a minimizar a idolatria moderna, pois se inclinam a um compromisso com o modelo histórico em que o antigo otimismo quanto à razão e a ordem se degenerou no irracionalismo moderno (relativismo ateu)" 
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"Entretanto, os dooyeweedianos são menos adequados com respeito ao irracionalismo e ao ateísmo do que com a idolatria, O próprio Dooyeweerd foi um pouco obscuro sobre o  papel da razão no pensamento humano. Ele insistiu que Deus não seria racional, pois dizer que Deus seria racional seria limitá-lo a uma das quinze esferas da criação. Eu duvido que seria assim, parece-me que , se reconhecermos as diferenças que Van Til faz entre a mente divina e a mente humana, poderemos atribuir a Deus uma inteligência análoga, mas não idêntica à racionalidade humana. O fato de que os dooyeweerdianos consideram Van Til um racionalista indica, para mim, que eles têm um desentendimento fundamental nessa área" p. 152

Frame termina dizendo que precisamos nos posicionar contra o relativismo ateu, o relativismo idólatra e a idolatria atéia.

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Há dois apêndices no livro: um sobre um diálogo com um agnóstico e outro sobre a relação da apologéticas de  Van Til  e de  Sproul.