quinta-feira, outubro 25, 2007

Travessuras da Menina Má

De Mario Vargas Llosa, é o primeiro que li dele, não gostei, a hitória de um menino bom e uma menina má que muda de lugares e nomes, mas a mesma ranhetice e breguices, como o autor mesmo diz.
O livro traz descrições bacanas de importantes locais dos ultimos 50 anos em lugares distintos para o amor indistinto - Lima, paris, londres, toquio, madrid-. Mas, como li numa crítica, vira um travessuras da menina "mala".

Ecce libris:

Naquele verão extraordinário, nas festas de Miraflores todo mundo parou de dançar valsas, corridos, blues, boleros e huarachas, porque o mambo arrasou. O mambo, um terremoto que fazia todos os casais infantis, adolescentes e maduros se sacudirem, balançando, pulando e fazendo firulas nas festas do bairro. E certamente acontecia o mesmo fora de Miraflores, para além do mundo e da vida, em Lince, Breña, Chorrillos, ou nos ainda mais exóticos bairros de La Victoria, o centro de Lima, o Rímac e o Porvenir, onde nós, miraflorenses, nunca tínhamos pisado nem pensávamos pisar jamais.

E assim como havíamos passado das valsinhas e huarachas, das sambas e das polcas para o mambo, também passamos dos patins e patinetes para a bicicleta, e alguns, Tato Monje e Tony Espejo por exemplo, para a moto e até mesmo, um ou dois rapazes, para o automóvel, como o grandalhão do bairro, Luchín, que às vezes roubava o Chevrolet conversível do pai e nos levava para dar uma volta pelo cais, de Terrazas até a quebrada de Armendáriz, a cem por hora.

Mas o fato mais notável daquele verão foi a chegada a Miraflores, diretamente do Chile, seu distante país, de duas irmãs cuja presença marcante e inconfundível jeito de falar, rapidinho, esquecendo as últimas sílabas das palavras e arrematando as frases com uma exclamação aspirada que soava como um “pueh”, deixaram abobalhados todos os miraflorenses que acabavam de trocar as calças curtas pelas compridas. E eu, mais do que qualquer outro.

A mais alta parecia ser mais nova e vice-versa. A mais velha chamava-se Lily e era um pouco mais baixinha que Lucy, que tinha um ano menos. Lily devia estar com 14 ou 15 anos, no máximo, e Lucy, com 13 ou 14. O adjetivo marcante parecia ter sido inventado para elas, mas, sem deixar de sê-lo, Lucy era menos marcante que a irmã, não só porque seu cabelo era menos louro e mais curto e se vestia com menos atrevimento que Lily, mas também porque era mais calada e, na hora de dançar, apesar de também fazer firulas e requebrar a cintura com uma audácia que nenhuma miraflorense se atreveria a assumir, parecia uma garota recatada, inibida e quase insípida em comparação com aquele pião, aquela labareda ao vento, aquele fogo-fátuo que era Lily quando, colocados os discos na vitrola, o mambo explodia e começávamos todos a dançar.

Lily dançava num ritmo saboroso e cheio de graça, sorrindo e cantarolando a letra da canção, erguendo os braços, mostrando os joelhos e balançando a cintura e os ombros de tal maneira que todo o seu corpinho, modelado com tanta malícia e tantas curvas pelas saias e blusas que usava, parecia se encrespar, vibrar e participar do baile dos pés à cabeça. Quem dançava um mambo com ela sempre se saía mal porque, como acompanhá-la sem se atrapalhar no turbilhão endiabrado daquelas pernas e pezinhos saltitantes? Impossível! Você ficava constrangido desde o início, e totalmente consciente de que os olhos de todos os casais estavam concentrados nas façanhas mambeiras de Lily. “Que menina!”, indignava-se a tia Alberta, “dança como uma Tongolele, parece uma rumbeira de filme mexicano”. “Bem, não vamos esquecer que é chilena”, insistia, “e o forte das mulheres desse país não é a virtude”.

Eu me apaixonei por Lily feito um bezerro, a forma mais romântica de se apaixonar — também se dizia queimar feito um tição —, e naquele verão inesquecível me declarei três vezes a ela. A primeira, depois da matinê de domingo, no balcão do Ricardo Palma, aquele cinema que ficava no Parque Central de Miraflores, e ela me disse que não, porque ainda era muito nova para ter namorado. A segunda, na pista de patinação inaugurada justamente naquele verão perto do Parque Salazar, e ela também não me aceitou, precisava pensar, porque, por mais que gostasse um pouquinho de mim, seus pais lhe pediram para não arrumar namorado antes de terminar o quarto ano e ela ainda estava no terceiro. E a última, poucos dias antes da grande confusão, no Cream Rica da avenida Larco, enquanto tomávamos um milk-shake de baunilha, e ela, é claro, disse outra vez que não, para que ia dizer que sim se já parecíamos namorados do jeito que estávamos. Não nos colocavam sempre juntos na casa da Marta, quando jogávamos verdade ou conseqüência? Não nos sentávamos juntos na praia de Miraflores? Ela não dançava comigo mais do que com qualquer outro garoto, nas festas? Para que, então, ia dar formalmente um sim se todo Miraflores já nos considerava namorados? Com sua pinta de modelo, olhos escuros e marotos e uma boquinha de lábios carnudos, Lily era a coqueteria em forma de mulher.

“Em você, gosto de tudo”, dizia eu. “Mas o melhor é o seu jeitinho de falar.” Era engraçada e original, por seu sotaque e sua musicalidade, tão diferentes dos peruanos, e também por certas expressões, palavrinhas e ditados que deixavam nas nuvens os garotos do bairro, tentando adivinhar o que queriam dizer e se não haveria neles algum deboche. Lily ficava o tempo todo falando coisas de duplo sentido, fazendo adivinhas ou contando piadas tão pesadas que deixavam as garotas do bairro vermelhas. “Essas chilenitas são terríveis”, sentenciava tia Alberta, tirando e repondo os óculos com seu ar de professora primária, temerosa de que aquelas duas forasteiras desintegrassem a moral miraflorense.

No começo dos anos 50 ainda não havia edifícios em Miraflores, que era um bairro de casinhas de um andar ou às vezes dois, jardins com os infalíveis gerânios, as cidreiras, os louros, as buganvílias, o gramado e as varandas, até onde subiam as madressilvas ou a hera, com cadeiras de balanço onde os moradores esperavam a noite contando fofocas e sentindo o perfume do jasmim. Em alguns jardins havia ceibos espinhosos com flores vermelhas e rosadas, e as limpas e retilíneas calçadas tinham pés de magnólia, jacarandás, amoras, e o toque de cor vinha tanto das fl ores nos jardins como das carrocinhas amarelas dos sorveteiros da D’Onofrio, uniformizados de aventais brancos e bonés pretos, que percorriam as ruas dia e noite anunciando sua presença com uma buzina cujo lento ulular me dava a sensação de um corno bárbaro, uma reminiscência pré-histórica. Ainda se ouviam os pássaros cantando nesse Miraflores em que as famílias cortavam os pinheiros quando as moças chegavam à idade de casar porque, se não o fizessem, as coitadas ficariam solteironas como a minha tia Alberta.

Lily nunca me aceitava, mas o fato é que, tirando essa formalidade, em todo o resto parecíamos namorados. Ficávamos de mãos dadas nas matinês do Ricardo Palma, do Leuro, do Montecarlo e do Colina e, embora não se pudesse dizer que tirávamos sarro na penumbra das platéias, como outros casais mais antigos — tirar sarro era uma fórmula em que cabiam desde beijos anódinos até os chupões lingüísticos e toques impróprios que depois era preciso confessar ao padre, nas primeiras sextas-feiras, como pecados mortais —, Lily me deixava beijá-la, nas bochechas, na beirada das orelhinhas, no canto da boca e, às vezes, por um segundo, juntava seus lábios aos meus e os afastava logo com uma careta melodramática: “Não, não, isso é que não, magrinho.” “Você parece um bezerro, magro, você está azul, magro, está derretendo de tanta paixão, magro”, caçoavam meus amigos do bairro. Nunca me chamavam pelo meu nome — Ricardo Somocurcio —, era sempre pelo apelido. E não exageravam nem um pouco: eu estava caidinho pela Lily.

Por sua causa, nesse verão troquei socos com Luquen, um dos meus melhores amigos. Num daqueles encontros de garotos e garotas do bairro na esquina de Colón e Diego Ferré, no jardim dos Chacaltana, Luquen, bancando o engraçadinho, disse de repente que as chilenitas eram umas cafonas, porque não eram louras de verdade mas sim oxigenadas, e que, pelas minhas costas, tinham começado a chamá-las em Miraflores de As Cucarachas. Dei-lhe um direto no queixo, do qual ele se esquivou, e fomos resolver o problema a socos na esquina do cais da Reserva, ao lado do barranco. Ficamos sem nos falar uma semana inteira, até que, na festa seguinte, as garotas e garotos do bairro nos fizeram reatar a amizade.

Lily gostava de ir, todos os fins de tarde, a um canto do Parque Salazar fervilhante de palmeiras, copos-de-leite e campainhas, de cujo murinho de tijolos vermelhos contemplávamos toda a baía de Lima como o capitão de um navio contempla o mar na sua torre de comando. Quando o céu estava claro, e juro que nesse verão o céu ficou o tempo todo sem uma nuvem e o sol brilhou em Miraflores sem falhar um dia, divisava-se lá no fundo, nos limites do oceano, o disco vermelho, flamejante, despedindo-se com raios e fogos de artifício enquanto se afogava nas águas do Pacífico. O rostinho de Lily se concentrava com o mesmo fervor com que comungava na missa do meio-dia na igreja do Parque Central, a vista fixa naquela bola ígnea, esperando o instante em que o mar engolisse o último raio para formular o desejo que o astro, ou Deus, materializaria. Eu também pensava num desejo, acreditando mais ou menos que se tornaria realidade. Sempre o mesmo, é claro: que ela finalmente me aceitasse, que nós começássemos a namorar, a tirar sarro, e afinal nos apaixonássemos, ficássemos noivos, casássemos e fôssemos viver em Paris, ricos e felizes.

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