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quinta-feira, novembro 11, 2010

Roberto Bolaño - 2666

Descobri num blog uma resenha-resumo do livro, vou colar trechos aqui, o Blog é o HÁ SEMPRE UM LIVRO...


O segundo volume da saga, diz respeito ao passado do professor Amalfitano, antes de estabelecer residência em Santa Teresa, onde se instala definitivamente, com a filha. Daqui, o episódio que mais nos prende a atenção é aquele que aponta a diferença no tratamento alfandegário a que são sujeitas as pessoas oriundas do espaço exterior à União Europeia, sobretudo quando provém de países em vias de desenvolvimento. A narração do tratamento diferenciado a que são submetidos Rosa – cidadã europeia, porque filha de mãe espanhola – e de Amalfitano – não europeu, de naturalidade chilena, apesar da ascendência italiana – é gritante. É como se estivéssemos em Roma, onde os Romanos da cidade de Rómulo e Remo são considerados cidadãos; e os romanos livres, mas nascidos em outras cidades na Península Itálica tinham estatuto de cidadãos de segunda. Ou então, como na Grécia de Sócrates e Aristóteles, onde se distinguiam Atenienses de Metecos (cidadão da periferia). Ou porque não, os primeiros indícios de um novo III Reich onde os cidadãos da UE seriam os Atenienses, ou Romanos de primeira e os restantes simples metecos, ou humanos de categoria inferior a fazer jus às mais do que refutadas teorias raciais da história que fizeram furor no último quartel do século XIX até á década dourada do poderio nazi?





Senão vejam:






Rosa tinha sete anos e era espanhola. Amalfitano tinha cinquenta e era chileno. (…) Rosa passava as alfândegas pela porta dos cidadãos comunitários e Amalfitano pela porta reservada aos não comunitários. Rosa perdeu-se e Amalfitano demorou meia hora a encontrá-la. À vezes os guardas viam Rosa e perguntavam-lhe se ela viajava sozinha ou se alguém a esperava à saída. Rosa respondia que viajava com o pai, que era sul-americano, e que tinha de esperá-lo ali mesmo. Uma vez revistaram a mala de Rosa pois suspeitaram que o pai podia passar drogas a coberto da inocência e da nacionalidade da filha. Mas Amalfitano nunca tinha traficado drogas nem armas.





A xenofobia europeia observada “de fora”por um cidadão sul-americano parece adquirir contornos preocupantes, devido à semelhança com políticas fascizantes do passado, ainda gravado a ferro e fogo nas gerações mais seniores. Tudo começa a partir do momento em que um cidadão estrangeiro, sem qualquer ligação com o mundo do crime, é considerado culpado até prova em contrário.





As disparidades e as contradições do sistema não se ficam por aqui: a mãe de Rosa, de origem espanhola e personalidade controversa e instável indicia, desde logo, um percurso de vida recheado de dificuldades, agravado por uma irresistível atracção pelo abismo. Lola mostra ser uma mulher com graves dificuldades de adaptação e integração social, cujas escolhas a impedem de levar uma vida estável, de forma a cuidar e educar uma criança. É por estas razões que Rosa crescerá com o pai, o intelectual sul-americano ao qual o Estado, apesar de se tratar de um país em vias de desenvolvimento, concede valor suficiente para lhe garantir a subsistência. O percurso de Amalfitano liga-se ao de Lola por um período muito breve. A separação torna-se inevitável e Amalfitano mergulha numa solidão crónica, dissipada apenas pela presença da filha e uma ligação amorosa, embora sem compromisso, com uma colega de trabalho. Amalfitano é aquilo que Vila-Matas define como “máquina solteira”, isto é, aquele celibatário convicto que menciona nos seus romances sobre intelectuais e a inspiração e criatividade na escrita, marcada pela desilusão de um quotidiano com poucas expectativas. No romance de Bolaño, os dois membros do casal libertam-se um do outro para viverem cada qual à sua maneira, já que são duas personalidades demasiado individualistas a gerir o quotidiano de forma diametralmente oposta: enquanto que, para Amalfitano,são imprecindíveios a estabilidade económica e a tranquilidade no quotidiano as quais se associam ao amor às letras e ao ensino; para Lola, a vida é aventura, errância. Mais: Lola é alguém que constrói a própria realidade. Edifica na própria mente um mundo à sua medida e ao qual a maior parte das pessoas não tem acesso, tal como na visita realizada ao hospital psiquiátrico em Barcelona, onde à procura de algo que nunca teve a mais leve expressão da realidade.


Outra notícia é um documentário da TvE sobre Bolaño

E última é este stand-up baeado em 2666.


2666 - Roberto BOLANO - Alex RIGOLA - Le Standard idéal 7e
Carregado por MC93Bobigny. - Videos Independentes

sexta-feira, novembro 20, 2009

GRACILIANO RAMOS: Angústia











A realidade, nos romances de Graciliano Ramos, não é deste mundo. É uma realidade diferente. Após ter lido Angústia até o fim, é preciso reler as primeiras páginas, para compreendê-las. É um mundo fechado em si mesmo. Que mundo é?
"Há nas minhas recordações estranhos hiatos. Fixaram-se coisas insignificantes. Depois um esquecimento quase completo" — confessa Luís da Silva em Angústia. E depois: "Como certos acontecimentos insignificantes tomam vulto, perturbam a gente! Vamos andando sem nada ver. O mundo é empastado e nevoento." E acrescenta: "Não sei se com os outros se dá o mesmo. Comigo é assim." É assim com todos nós outros, quando entramos no mundo empastado e nevoento, noturno, onde os romances de Graciliano Ramos se passam: no sonho. Os hiatos nas recordações, a carga de acontecimentos insignificantes com fortes afetos inexplicáveis, eis a própria "técnica do sonho", no dizer de Freud. Álvaro Lins, no melhor artigo que se escreveu sobre Graciliano Ramos, observou agudamente a abstração do tempo — "Mas no tempo não havia horas", cita o crítico —, e acrescenta: "Os outros personagens são projeções do personagem principal. Julião Tavares e Marina só existem para que Luís da Silva se atormente e cometa o seu crime. Tudo vem ao encontro do personagem principal — inclusive o instrumento do crime". Estas palavras do crítico constituem a chave da obra do romancista: descrevem perfeitamente a nossa situação no sonho, em que tudo é criação do nosso próprio espírito. Explica-se assim o extremo egoísmo dos heróis de Graciliano Ramos: é o egoísmo daquele que sonha e para o qual, prisioneiro dum mundo irreal, só ele mesmo existe realmente. A mentalidade inteiramente amoral do sonho exclui, decerto, toda "generosidade"; mas a substitui por um sentimento mais vasto de identificação quase mística com as criaturas da própria imaginação, até a cachorrinha Baleia: "Tat twam asi."
O extremo egoísmo do sonho engendra o motivo principal do romancista: cobiça de propriedade. Propriedade de terra, de mulher, em São Bernardo; aqui e em Angústia, a forma extrema desta cobiça, o ciúme. Por isso, nos romances de Graciliano Ramos, esses afetos ultrapassam toda medida; sugerem, ao lado dos afetos análogos na vida real, a impressão de sentimentos patológicos. E quando o autor considera os monstros da sua angústia de sonho, lança o seu grito mais elementar: "Dinheiro e propriedade dão-me sempre desejos violentos de mortandade e outras destruições."
"Ai quando virá o anjo da destruiçãop’ra acabar com a minha memória..."
(Murilo Mendes).
Todos os romances de Graciliano Ramos — e este é o sentido do seu experimentar — são tentativas de destruição; tentativas de "acabar com a minha memória", tentativas de dissolver as recordações pelos "estranhos hiatos" dum sonho angustiado. Trata-se de saber que mundo de recordações se dissolve assim.
A resposta é bastante difícil. Surge, ainda uma vez, o clichê do "sertanejo culto" e sugere aos críticos a idéia de que o romancista está furioso contra o ambiente selvagem do seu passado. Mas não é assim. Não é o sertão o culpado; Vidas secas é o seu romance relativamente mais sereno, relativamente mais otimista. O culpado é — superficialmente visto, numa primeira aproximação — a cidade. O herói de Graciliano Ramos é o sertanejo desarraigado, levado do mundo primitivo, imóvel, para o mundo do movimento. É o vagabundo ("um pobre nordestino..."); e explica-se o seu ódio balzaquiano ao mundo burguês, que conseguiu a estabilidade relativa do comércio de secos e molhados. Esta vagabundagem é o aspecto sociológico do egoísmo do sonho quando se choca com a realidade. É o desejo violento do vagabundo de restabelecer-se na terra: "Como a cidade me afastara de meus avós!" Mas é apenas uma explicação em primeira aproximação: pois Paulo Honório consegue o seu fim, e, contudo, é uma vida malograda. Por quê? Porque o seu criador quer mais do que terra, casa, dinheiro, mulher. Quer realmente voltar aos avós. Voltar à imobilidade, à estabilidade do mundo primitivo. E para atingir este fim, deve antes destruir o mundo da agitação angustiada, à qual está preso.
Os romances de Graciliano Ramos são experimentos para acabar com o sonho de angústia que é a nossa vida. Uma lenda budista conta dum homem que correu, ao sol do meio-dia, para fugir à sua sombra, que o angustiava; correu, correu, sempre perseguido pelo companheiro sinistro, até que encontrou o grande Sábio, que lhe disse: — "Não continues a fugir! Assenta-te sob esta árvore!" E como ele parou, a sombra desapareceu. A sombra sobre o mundo de Graciliano Ramos não é a sombra da árvore da salvação, mas a do edifício da nossa civilização artificial — cultura e analfabetismo letrados, sociedade, cidade, Estado, todas as autoridades temporais e espirituais, que ele convida ironicamente — no começo de São Bernardo — a colaborar na sua obra de destruição. Mas eles mostram-se incapazes de cometer o suicídio proposto. Entrincheiram-se na "dura realidade", imposta a todas as criaturas do Demiurgo, e que se arroga todos os atributos da eternidade. O romancista, porém, não se conforma. Transforma esta vida real em sonho — pois do sonho, afinal, se acorda. Então, as disposições funestas do Demiurgo seriam revogadas, e o destruidor poderia dizer, com o Gide das Nouvelles Nourritures: "Table rase. J’ai tout balayé. C’en est fait. Je me dresse nu sur la terre vierge, derrière le ciel à repeupler."6
O fim é o estado primitivo do mundo — o céu repovoado. Então, a angústia já não assusta.
"Black is night’s cope;But death will not appalOne who, past doubting all,Waits in unhope."
Foi a última sabedoria poética do romancista Thomas Hardy, versos duros, populares e clássicos ao mesmo tempo, rimados em sinal da concordância resignada com o mundo. É possível que o romancista Graciliano Ramos escreva também, um dia, tais versos, duros, populares e clássicos ao mesmo tempo, versos tradicionais, como o velho Hardy. Mas não serão rimados. Serão versos brancos. Pois a primeira rima de Graciliano Ramos já anunciaria o Fim do Mundo.

terça-feira, novembro 03, 2009

NICK HORNBY:The Polysyllabic Spree





MAIO DE 2004
TÍTULOS COMPRADOS:
* "Random Family: Love, Drugs, Trouble, and Coming of Age in the Bronx"- Adrian Nicole LeBlanc
* "What Narcissism Means to Me"- Tony Hoagland
* "David Copperfield"- Charles Dickens (duas vezes)
TÍTULOS LIDOS:
* "David Copperfield"- Charles Dickens
Qualquer pessoa que esteja fazendo uma oficina literária sabe que o segredo de um bom texto é enxugá-lo, retirar os excessos, peneirar, cortar, podar, aparar, remover tudo quanto é palavra supérflua, resumir, resumir, resumir. Em toda resenha sobre um escritor como, por exemplo, o sul-africano Coetzee, encontra-se a palavra "econômica" ou "econômico", usada de maneira elogiosa; acabei de entrar no Google, onde digitei "J. M. Coetzee + econômico" e consegui 907 resultados, com raríssimas repetições. "A linguagem econômica, porém rica, de Coetzee", "neutro no tom e econômico no estilo", "uma sucessão de sentenças refinadas e econômicas", "O grande dom de Coetzee-- e trata-se de um dom que ele nos oferece gentilmente --reside em sua bela e econômica linguagem", "linguagem econômica e poderosa", "um livro econômico e arrepiante", "paradoxalmente econômico e ao mesmo tempo ricamente escrito", "beleza econômica e dura". Sacou? Economia é uma coisa boa.
Coetzee, obviamente, é um ótimo romancista, de forma que não considero nenhum pecado ressaltar que ele não é o escritor mais engraçado que existe. Na verdade, quando paramos para analisar, vemos que pouquíssimos romances na tradição Econômica são lá muito animadores. As piadas são praticamente extirpadas, de forma que, em um processo de adequação de registro na prosa, elas são as primeiras coisas a saltarem fora. E, na peneiração, existe um lance que eu simplesmente não entendo. Por que sempre para quando o trabalho em questão foi reduzido a 60 ou 70 mil palavras? Será que esse é o tamanho mínimo para um romance publicável? Tenho certeza de que, com um pouco de esforço, daria para chegar até a 20 ou 30. Na verdade, por que parar em 20 ou 30? Por que escrever qualquer coisa? Por que não rabiscar o enredo e uns dois temas em um envelope e deixar tudo assim? A verdade é que na ficção ou na sua criação não há nada de muito utilitário, e acho que as pessoas ficam loucas para dar a impressão de que se trata de um trabalhão desgraçado, e que dão um duro danado, que é coisa de macho, pois, no fundo no fundo, trata-se de uma coisinha bem "fresca". A obsessão pela austeridade é uma tentativa de compensar, de fazer com que a literatura se pareça com um trabalho de verdade, tipo pegar na enxada ou derrubar árvores. (É também por isso que o pessoal de publicidade trabalha vinte horas por dia.) Mandem brasa, jovens escritores --desfrutem de uma piadinha ou de um advérbio! Deitem e rolem! Os leitores não vão se importar! Vocês já viram a grossura dos livros vendidos nos aeroportos? A verdade é que as pessoas curtem informações inúteis. (E, de forma contrária, os escritores dos escritores, os que podam e peneiram, tendem a depender mais da aprovação dos críticos do que dos direitos autorais para viverem.)
No mês passado, concluí a coluna dizendo que estava precisando de uma nutrição a la Dickens, e talvez isso seja porque eu venha há muito tempo chupando os ossos da redação econômica. O que teria sido de David Copperfield se Dickens tivesse feito aulas de redação? Era bem capaz de o livro ter saído com setenta personagens secundários a menos, isso sim. (Você sabia que se estima que Dickens tenha criado 13 mil personagens? Treze mil! A população de uma cidade pequena! Se você quiser falar de livros em termos de trabalho braçal "para macho", então talvez devêssemos pensar no duro que se dá para se escrever muito - livros compridos, exuberantes, cheios de energia, vida e comédia. Sinto muito se isso parece óbvio, mas não é sempre verdade que escrever duzentas páginas é mais difícil do que escrever mil páginas.) Em um ponto próximo ao início do livro, David foge e acaba tendo que vender as roupas do corpo para comprar comida. Bastaria, talvez, descrever as dificuldades físicas envolvidas; mas como se trata de Dickens, ele consegue encontrar um espacinho para um vendedor de roupas usadas, um cretino que fede a cachaça e que não para de gritar coisas como "Ai, os pulmões, o fígado!" e "Goroo!".
Como disse rei Lear --provavelmente quando convidado a Iowa para fazer uma palestra-- "Oh! não faleis sobre a necessidade". Não há necessidade: Dickens está se divertindo e estende a cena muito além de suas funções. Agora, ao ler novamente, parece ter sido concebido como uma contestação à economia, pois o cara quer a todo custo pagar pela jaqueta de David em parcelas de meia-coroa no curso de uma tarde, e assim acaba ficando por duas páginas inteiras. Será que ele poderia ter sido cortado? Com certeza! Só que chega um ponto no processo de criação literária em que o romancista --qualquer um, mesmo que seja muito bom-- tem de aceitar que o que ele está fazendo é manter um fim de um livro afastado do fim do outro, preenchendo páginas, esperando que elas emocionem, provoquem e divirtam o leitor.
Algumas observações aleatórias:
1) David Copperfield é o Hamlet de Dickens. Hamlet é uma peça cheia de frases famosas; Copperfield é um romance cheio de personagens famosos. Eu ainda não o tinha lido, em parte porque eu estava enganado, achando que eu não fosse desfrutar dos prazeres da narrativa devido à possibilidade de relembrar a série produzida pela BBC à qual fui obrigado a assistir quando pequeno. (Acabou que a única coisa de que lembrei foi a frase "Barkis está disposto", e a disposição de Barkis não é de fato o tema central do livro.) Assim, eu não fazia ideia de que encontraria tanto Uriah Heep quanto Sr. Micawber, Peggotty, Steerforth, Betsey Trotwood, Little Em'ly, Tommy Traddles e os demais. Eu tinha pensado que Dickens reservaria pelo menos uns dois desses personagens para alguns dos outros romances que eu ainda não tinha lido --As aventuras do Sr. Pickwick, digamos, ou Barnaby Rudge. Só que agora ele já deu a mancada. Pode ser um erro, como veremos.
2) Por que será que estão sempre tentando adaptar as obras de Dickens para a TV ou para o cinema? No primeiro número da Believer, Jonathan Lethem nos pediu para imaginar os personagens em Dombey and Son como animais, para sacar a essência deles, e é verdade que apenas os personagens centrais em um romance de Dickens são humanos. Há Quilp, em The Old Curiosity Shop, apavorando a mãe de Kit com "muitas chatices extraordinárias; tais como arriscar a vida pendurando-se ao lado da carruagem e encarando com os olhos arregalados... evitando-a desta forma de uma janela a outra; abaixando-se rapidamente sempre que trocavam de cavalos e enfiando a cabeça na janela com uma sombria piscadela..." E eis Uriah Heep: "Quase sem sobrancelhas, e nenhum cílio, olhos castanhos, tão desprotegidos e expostos, que lembro que fiquei imaginando como ele dormia... ombros altos e ossudos... mãos longas e delgadas... suas narinas, finas e pontudas, contraíam-se e expandiam-se de um jeito singular e muito desconfortável; pareciam que piscavam no lugar dos olhos, que quase nunca piscavam." E aí? Quem você escalaria para fazer esses dois papéis? Se os atores certos existissem, aposto como não seriam pessoas muito legais, por não terem vida social, namoradas nem possibilidades de trabalhar em qualquer outra coisa, com exceção de Copperfield 2: A vingança de Heep. E, de qualquer modo, uma vez que esses duendes infernais tirados de desenhos animados tomam forma corpórea, não faz mais sentido que existam. Aqui vai uma nota para os estúdios: uma combinação de efeitos computadorizados e ação de verdade é a única saída. É verdade que não sairia barato, e igualmente verdade que ninguém ia querer pagar para assistir. Mas se você deseja fazer justiça --e estou certo de que é isso que todos vocês, executivos de Hollywood e assinantes da Believer, querem-- então deve valer a pena tentar.
3) Em The Old Curiosity Shop, descobri que no personagem de Dick Swiveller, Dickens oferece a P. G. Wodehouse praticamente toda a sua obra. Em David Copperfield, Spenlow e Jorkins, chefes de David, parecem ser as primeiras representações ficcionais de policial bom/policial mau realizadas no mundo.
4) Já reclamei nesta coluna sobre como todos querem estragar os roteiros dos clássicos. Tudo bem, eu deveria ter lido David Copperfield antes e mereço um castigo. Só que mesmo o mais arrogante dos críticos/editoras/sei lá o quê deve presumivelmente aceitar que todos nós precisamos, em algum momento, ler um livro pela primeira vez. Sei que a única coisa que as pessoas inteligentes fazem na vida é reler grandes obras de ficção, mas não será que mesmo James Wood e Harold Bloom leram antes de reler? (Talvez não. Talvez só tenham relido mesmo, e é isso que nos separa desses sujeitos. Parabéns a eles.) Bem, logo de cara, no primeiríssimo parágrafo de sua introdução da edição da Modern Library que possuo, o grande David Gates deixa escapar algumas informações importantes de como a narrativa se desenrola (e acho que tenho o direito de ler o primeiro parágrafo, só para pegar alguns detalhes biográficos e contextuais); tentei dar uma conferida nas versões cinematográficas na Amazon, e um crítico qualquer deixou escapar mais coisas em uma resenha de três linhas. Isso não teria acontecido se eu estivesse à caça de uma adaptação de algum livro do Grisham.
5) No final do ano passado, fui premiado com uma primeira edição de David Copperfield, e tive a fantasia de que eu me sentaria numa poltrona, leria algumas páginas e sentiria o poder do grande homem penetrar-me pelas pontas dos dedos. Bem, eu tentei, mas não deu em nada. Além disso, a cópia que ganhei é bem pequena, de forma que fiquei com medo de derrubar o livro na banheira, de dar bobeira e apagar um cigarro nele etc. Na verdade, acabei lendo quatro cópias diferentes do livro. Uma velha edição da Penguin se desfez em minhas mãos, daí comprei uma edição da Modern Library para substituir. Então perdi a cópia da Modern Library, temporariamente, e comprei outra cópia baratinha da Penguin. Custou uma libra e meia! É apenas cerca de noventa dólares! (Essa foi minha tentativa de fazer uma piadinha atualizada. Nem vou me dar ao trabalho novamente.)
Depois de ler mais ou menos um terço do livro, chegou um momento em que pensei que David Copperfield pudesse se tornar meu novo romance favorito do Dickens --o que, vendo que acredito que Dickens seja o maior romancista que já existiu, significaria que eu poderia estar no meio do melhor livro que eu já tinha lido. Essa forma superlativa de pensar vai perdendo o efeito dramático à medida que a idade avança, de forma que, quando essa ficha caiu, não fiquei tão empolgado quanto você possa imaginar. Compreendi a lógica, assim como você compreende a lógica daquelas discussões antológicas que os velhos filósofos travavam para provar que Deus existe: Se Dickens = o melhor escritor do mundo e DC = seu melhor livro, logo DC = o melhor livro já escrito, sem senti-lo. Mas, no final, tinha muita coisa errada. As jovens, como sempre, são fracas. Os corpos começam a empilhar-se em uma proximidade desconfortável --há quatro mortes, se for contar com o cachorro chato de Dora, o que eu não faço, mas Dickens conta-- entre as páginas 714 e 740. E bem no momento em que você está louco para que o livro chegue a uma conclusão, Dickens adiciona um capítulo chato, sem pé nem cabeça, sobre reforma penitenciária, faltando vinte páginas para acabar o livro. (Ele é contra o confinamento na solitária. O negócio é bom demais para os caras.)
O que emparelha David Copperfield a Bleak House e Grandes esperanças, contudo, é sua natureza doce e sua modernidade surpreendente. Há uns lances metaficcionais, tipo: David cresce e se torna romancista, e o título completo do livro, segundo a biografia de Edgar Johnson (não que eu consiga achar qualquer indício disso em algum lugar), é História, experiência e observações pessoais deDavid Copperfield, o caçula dos Blunderstone Rookery, que ele nunca teve a intenção de publicar. E o lance metaficcional não acontece do nada. O último refúgio do crítico picareta é qualquer versão da seguinte sentença: "Em última análise, esse livro é sobre a própria ficção/esse filme é sobre o próprio filme." Eu mesmo já usei essa frase, na época em que escrevia críticas sobre vários livros, e posso dizer que é tudo balela: invariavelmente o negócio significa apenas que o filme ou o romance chamou a atenção para seu próprio estado ficcional, o que não nos leva a lugar nenhum, e é o motivo pelo qual o crítico nunca nos diz exatamente o que o romance tem a dizer sobre a própria ficção. (Da próxima vez que você se deparar com a frase, o que é provável de acontecer nos próximos sete dias caso você leia muitas resenhas, escreva para o crítico e peça que ele esclareça o que quer dizer.)
Bem, a profissão de David Copperfield permite que ele tenha alguns desses momentos agudos de arrependimento e nostalgia; o que não falta no livro, aliás, são recordações, e em um romance autobiográfico, a memória e a ficção se entrelaçam. Dickens utiliza esse entrelace a seu favor, e não consigo me lembrar de já ter ficado tão emocionado com um de seus romances. Outra coisa que me parece diferente em David Copperfield é a sofisticação de dois personagens e relacionamentos. Dickens não é o escritor mais sofisticado que existe, e quando ele realmente consegue atingir certa complexidade, é porque já existem várias camadas de enredos secundários, e mais e mais camadas de personagens, até que ele fica sem saída e tem de fazer alguma coisa acontecer. No entanto, há uma consciência surpreendentemente moderna da insatisfação matrimonial em Copperfield, por exemplo, um reconhecimento de falta e de um desejo não específico que associaríamos mais a Rabbit Angstrom do que a alguém que passa metade do romance enchendo a cara de ponche com Sr. Micawber. Dickens acaba retirando o estilo vitoriano do mal-estar do século XX, mas mesmo assim... Ao fazer anotações para esta coluna, acho que escrevi que "ele é de outro planeta"; David Gates pergunta na introdução: "Será que o cara era marciano?" E pensar que algumas pessoas não o estimam! Pensar que algumas pessoas o descreveram como "o pior escritor a amaldiçoar a língua inglesa"! Pois é. A decisão é sua: ou você acredita nesse povo ou fica do lado de Tolstói, Peter Ackroyd e David Gates. E do meu lado também.
Pela primeira vez desde que comecei a escrever esta coluna, a conclusão de um livro me deixou desolado: estou com saudade de todos os personagens. Ah, vamos ser sinceros: geralmente ficamos felizes da vida só de concluirmos mais um da lista, mas passei o último mês num mundo hiper-real, repleto de pessoas inesquecíveis e excêntricas, risadas (espero que você descubra que Dickens é engraçadíssimo) e histórias cheias de reviravoltas que dão vontade de acompanhar. Desconfio que será difícil ler um romance econômico, sequinho e objetivo por um tempo.

quinta-feira, outubro 29, 2009

ENRIQUE VILA-MATAS: Bartleby y Compañia



La gloria o el mérito de ciertos hombres consiste en escribir bien; el de otros consiste en no escribir.
JEAN DE LA BRUYERE



Todos conocemos a los bartlebys, son esos seres en los que habita una profunda negación del mundo. Toman su nombre del escribiente Bartleby, ese oficinista de un relato de Herman Melville que jamás ha sido visto leyendo, ni siquiera un periódico; que, durante prolongados lapsos, se queda de pie mirando hacia fuera por la pálida ventana que hay tras un biombo, en dirección a un muro de ladrillo de Wall Street; que nunca bebe cerveza, ni té, ni café como los demás; que jamás ha ido a ninguna parte, pues vive en la oficina, incluso pasa en ella los domingos; que nunca ha dicho quién es, ni de dónde viene, ni si tiene parientes en este mundo; que, cuando se le pregunta dónde nació o se le encarga un trabajo o se le pide que cuente algo sobre él, responde siempre diciendo:
—Preferiría no hacerlo.
Hace tiempo ya que rastreo el amplio espectro del síndrome de Bartleby en la literatura, hace tiempo que estudio la enfermedad, el mal endémico de las letras contemporáneas, la pulsión negativa o la atracción por la nada que hace que ciertos creadores, aun teniendo una conciencia literaria muy exigente (o quizás precisamente por eso), no lleguen a escribir nunca; o bien escriban uno o dos libros y luego renuncien a la escritura; o bien, tras poner en marcha sin problemas una obra en progreso, queden, un día, literalmente paralizados para siempre.
La idea de rastrear la literatura del No, la de Bartleby y compañía, nació el pasado martes en la oficina cuando me pareció que la secretaria del jefe le decía a alguien por teléfono:
—El señor Bartleby está reunido.



Enrique Vila- Matas Bartebly y Compañia

domingo, outubro 11, 2009

Harukiu Murakami: Após o Anoitecer







"Assumimos um ponto de vista para observá-la em perspectiva. O melhor
seria dizer que nossa real intenção é de espioná-la dissimuladamente. Nosso
ponto de vista, agora, assume a forma de uma câmera a pairar no ar, capaz de
movimentar-se livremente dentro do quarto. Neste momento, a câmera posiciona-se
num ponto bem acima da cama e focaliza seu rosto adormecido. A posição de nossa
câmera muda em intervalos regulares como se movimetar num piscar de olhos" p. 29


.


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Neste romance magistral, Murakami costura uma série de encontros e desencontros pelas ruas de Tóquio, entre o anoitecer e os primeiros raios da manhã. O autor deixa sua marca registrada ao falar da solidão e das dificuldades das relações humanas, mesclando diversas referências ao pop, ao jazz e à vida contemporânea.
No centro da trama estão duas irmãs. Eri é uma top model que, como uma Bela Adormecida moderna, caiu em sono profundo e parece nunca mais acordar. Mari, a mais jovem, é uma menina reservada e solitária que deixou a casa dos pais para vagar sozinha pela madrugada. Mergulhada na leitura de um livro numa lanchonete da cidade, acaba se envolvendo em uma aventura. Primeiro, encontra um trompetista de jazz que jura conhecê-la. Depois, ajuda a socorrer uma prostituta chinesa brutalmente espancada e, ao lado das funcionárias do motel onde o crime ocorreu, tenta descobrir o culpado.
Essas pessoas da noite, perseguidas por segredos do passado e em busca de uma identidade, aos poucos se cruzam nesta narrativa vibrante de Murakami, em que o escritor mistura tempo e espaço, sonho e realidade, compaixão e amor, numa trama inventiva e extraordinária.
Com maestria, Murakami mescla a jornada das irmãs às de outros personagens inesquecíveis: Takahashi é um músico jovem que procura um sentido para a vida; Shirakawa, empregado numa empresa de tecnologia, vara as noites trabalhando e esconde uma segunda personalidade, brutal; Kaoru, gerente de um motel, tenta ajudar uma prostituta que foi espancada e, no processo, acaba se envolvendo com a máfia chinesa.
Enquanto os ponteiros do relógio avançam em tempo real madrugada adentro, as diferentes histórias narradas por Murakami se entrelaçam, se dividem e se fundem, num misterioso e belo romance sobre as complexas relações do amor.



o livro em outra versão:





domingo, outubro 04, 2009

Blog sobre Mansfield Park

Há um blog em inglês totalmente dedicado a Mansfield Park, que é http://mansfieldpark.wordpress.com/








Lá achei esse comentário sobre o livro...




Instead it is a monster of complacency and pride who, under a cloak of cringing self-abasement,


dominates and gives meaning to the novel . What became of that Jane Austen (if she ever existed) who set out bravely to correct conventional notions of the desirable and virtuous? From being their critic (if she ever was) she became their slave. That is another way of saying that her judgement and her moral sense were corrupted. Mansfield Park is the witness of that corruption.
Kingsley Amis, What Became of Jane Austen?, p. 144



Continuando as críticas sobre Mansfield Park- na introdução da edição da Barnes and Nobles-(Introduction by Amanda Claybaugh)


"Mansfield Park is a novel about rest and restlessness, stability and change- the moving and immovable. Mansfield Park is hardly the only Austen novel to take as its subject matter a pair of opposed terms, but typically these terms stand in a dynamic relation to one another, each altering the other until a proper synthesis or balance is achieved" p. XIV
.
"Mansfield Park was written at the end of one tumultuos era, the French revolution and the Napoleonic Wars, and at the beginning of an other: the industrialization and urbanization of England. (...) Astringent and despairing at the same time, the novel insists that improvements are urgently needed, even as it registers the enormous costs that these improvements will exact. In this way, Mansfield park stands as Austen´s most profound treatment of politics, her richest response to the revolution and wars of her time" p. xvi
.
The critic Franco Moretti has most powerfully described the bildungs roman; he argues that the genre emerged in the nineteenth century because it was only then that youth became what it still remain for us, a time of possibility. Not until the advent of industrial capitalism, not until the the demise of apprenticeship and feudalk farming, could he young imagine that their lives might be different from those of their elders. The imagining of new possibilities offered a kind of compensation, Moretti suggest, for the shattering dislocations that came with such profound economic change, and the bildungsroman sought to make sense of what would otherwise be an overwhelming experience by positing an autonomous self, free to move through this new world at will- indeed, free to remake this new world in his or her own image, as the wponymous titles of bildungsromane suggest (The way of the world). That Mansfield Park is named after a place rather than a person is the first sign, then, that this novel does not fully belong to the genre.
Mansfield comes before Fanny, then, but in order to understand all that Mansfield means, we must pause to consider the tradition of country-house writing, a literary tradition that Mansfield Park both enters into and alters.
The first volume of Mansfield Park thus demonstrates that Mansfield is country house in need of improvement, seduced as it is by the glamour of mercantile London and hollowed-out by the blurring of appearance and reality. The second and third volumes of the novel explire waht improvement should entail. p.xxvi

domingo, setembro 20, 2009

HENRY JAMES: The Portrait of Lady (quotes)

Our young lady's courage, however, might have been taken as reaching its height after her relations had gone home. She could imagine braver things than spending the winter in Paris--Paris had sides by which it so resembled New York, Paris was like smart, neat prose--and her close correspondence with Madame Merle did much to stimulate such flights. She had never had a keener sense of freedom, of the absolute boldness and wantonness of liberty, than when she turned away from the platform at the Euston Station on one of the last days of November, after the departure of the train that was to convey poor Lily, her husband and her children to their ship at Liverpool. It had been good for her to regale; she was very conscious of that; she was very observant, as we know, of what was good for her, and her effort was constantly to find something that was good enough. To profit by the present advantage till the latest moment she had made the journey from Paris with the unenvied travellers. She would have accompanied them to Liverpool as well, only Edmund Ludlow had asked her, as a favour, not to do so; it made Lily so fidgety and she asked such impossible questions. Isabel watched the train move away; she kissed her hand to the elder of her small nephews, a demonstrative child who leaned dangerously far out of the window of the carriage and made separation an occasion of violent hilarity, and then she walked back into the foggy London street. The world lay before her--she could do whatever she chose. There was a deep thrill in it all, but for the present her choice was tolerably discreet; she chose simply to walk back from Euston Square to her hotel. The early dusk of a November afternoon had already closed in; the street-lamps, in the thick, brown air, looked weak and red; our heroine was unattended and Euston Square was a long way from Piccadilly. But Isabel performed the journey with a positive enjoyment of its dangers and lost her way almost on purpose, in order to get more sensations, so that she was disappointed when an obliging policeman easily set her right again. She was so fond of the spectacle of human life that she enjoyed even the aspect of gathering dusk in the London streets-- the moving crowds, the hurrying cabs, the lighted shops, the flaring stalls, the dark, shining dampness of everything. That evening, at her hotel, she wrote to Madame Merle that she should start in a day or two for Rome. She made her way down to Rome without touching at Florence--having gone first to Venice and then proceeded southward by Ancona. She accomplished this journey without other assistance than that of her servant, for her natural protectors were not now on the ground. Ralph Touchett was spending the winter at Corfu, and Miss Stackpole, in the September previous, had been recalled to America by a telegram from the Interviewer. This journal offered its brilliant correspondent a fresher field for her genius than the mouldering cities of Europe, and Henrietta was cheered on her way by a promise from Mr. Bantling that he would soon come over to see her. Isabel wrote to Mrs. Touchett to apologise for not presenting herself just yet in Florence, and her aunt replied characteristically enough. Apologies, Mrs. Touchett intimated, were of no more use to her than bubbles, and she herself never dealt in such articles. One either did the thing or one didn't, and what one "would" have done belonged to the sphere of the irrelevant, like the idea of a future life or of the origin of things. Her letter was frank, but (a rare case with Mrs. Touchett) not so frank as it pretended. She easily forgave her niece for not stopping at Florence, because she took it for a sign that Gilbert Osmond was less in question there than formerly. She watched of course to see if he would now find a pretext for going to Rome, and derived some comfort from learning that he had not been guilty of an absence. Isabel, on her side, had not been a fortnight in Rome before she proposed to Madame Merle that they should make a little pilgrimage to the East. Madame Merle remarked that her friend was restless, but she added that she herself had always been consumed with the desire to visit Athens and Constantinople. The two ladies accordingly embarked on this expedition, and spent three months in Greece, in Turkey, in Egypt. Isabel found much to interest her in these countries, though Madame Merle continued to remark that even among the most classic sites, the scenes most calculated to suggest repose and reflexion, a certain incoherence prevailed in her. Isabel travelled rapidly and recklessly; she was like a thirsty person draining cup after cup. Madame Merle meanwhile, as lady-in-waiting to a princess circulating incognita, panted a little in her rear. It was on Isabel's invitation she had come, and she imparted all due dignity to the girl's uncountenanced state. She played her part with the tact that might have been expected of her, effacing herself and accepting the position of a companion whose expenses were profusely paid. The situation, however, had no hardships, and people who met this reserved though striking pair on their travels would not have been able to tell you which was patroness and which client. To say that Madame Merle improved on acquaintance states meagrely the impression she made on her friend, who had found her from the first so ample and so easy. At the end of an intimacy of three months Isabel felt she knew her better; her character had revealed itself, and the admirable woman had also at last redeemed her promise of relating her history from her own point of view--a consummation the more desirable as Isabel had already heard it related from the point of view of others. This history was so sad a one (in so far as it concerned the late M. Merle, a positive adventurer, she might say, though originally so plausible, who had taken advantage, years before, of her youth and of an inexperience in which doubtless those who knew her only now would find it difficult to believe); it abounded so in startling and lamentable incidents that her companion wondered a person so eprouvee could have kept so much of her freshness, her interest in life. Into this freshness of Madame Merle's she obtained a considerable insight; she seemed to see it as professional, as slightly mechanical, carried about in its case like the fiddle of the virtuoso, or blanketed and bridled like the "favourite" of the jockey. She liked her as much as ever, but there was a corner of the curtain that never was lifted; it was as if she had remained after all something of a public performer, condemned to emerge only in character and in costume. She had once said that she came from a distance, that she belonged to the "old, old" world, and Isabel never lost the impression that she was the product of a different moral or social clime from her own, that she had grown up under other stars.
cap. xxxi
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The elation of success, which surely now flamed high in Osmond, emitted meanwhile very little smoke for so brilliant a blaze. Contentment, on his part, took no vulgar form; excitement, in the most self-conscious of men, was a kind of ecstasy of self-control. This disposition, however, made him an admirable lover; it gave him a constant view of the smitten and dedicated state. He never forgot himself, as I say; and so he never forgot to be graceful and tender, to wear the appearance--which presented indeed no difficulty--of stirred senses and deep intentions. He was immensely pleased with his young lady; Madame Merle had made him a present of incalculable value
Cap. XXXV
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She had taken all the first steps in the purest confidence, and then she had suddenly found the infinite vista of a multiplied life to be a dark, narrow alley with a dead wall at the end. Instead of leading to the high places of happiness, from which the world would seem to lie below one, so that one could look down with a sense of exaltation and advantage, and judge and choose and pity, it led rather downward and earthward, into realms of restriction and depression where the sound of other lives, easier and freer, was heard as from above, and where it served to deepen the feeling of failure.
Cap. LXII

domingo, setembro 13, 2009

HENRY JAMES: O Retrato de uma Senhora-


RALPH TOUCHETT


"Uma reserva de indiferença- como uma grossa fatia de bolo que uma babá antiga e afetuosa tivesse escondido em sua primeira pasta escolar-veio em seu auxilio e ajudou-o a aceitar o sacrificio , pois, na melhor das hipóteses , estava demasiado doente para qualquer coisa que não fosse esse árduo jogo. Como disse a si mesmo, não havia realmente nada que quisesse muito fazer, de modo que ao menos não renunciara ao campo de batalha. Entretanto, no momento, a frangrância do fruto proibido parecia, de vez em quando, flutuar por perto e lembrar-lhe de que o melhor dos prazeres é impeto da ação. Viver como vivia era como ler um livro bom numa tradução ruim- parca diversão para um jovem que talvez esperasse um dia se tornar um excelente linguista" p. 63

terça-feira, setembro 08, 2009

HENRY JAMES: Retrato de uma senhora

'Retrato de uma senhora', publicado pela primeira vez em 1881, é o primeiro grande romance de Henry James, e talvez sua obra máxima. Num século em que a esposa burguesa insatisfeita tornou-se um personagem literário central, e o adultério um motivo romanesco recorrente, Henry James colocou em cena uma heroína singular, cuja carência essencial é de outra ordem. Com uma narrativa que, astuciosamente, começa lenta, quase contemplativa, e aos poucos se acelera, ganhando dramaticidade, James constrói sua história como um jogo em que cada coisa se transmuta em seu oposto - liberdade em destino, afeto em traição, pureza em artimanha - e vice-versa.



COMEÇO....

Em determinadas circunstâncias, há poucas horas na vida mais agradáveis do que aquela dedicada à cerimônia conhecida como chá da tarde. Há circunstâncias em que, tomemos ou não o chá - algumas pessoas, logicamente, jamais o fazem -, a situação é, em si, encantadora. As que tenho em mente ao começar a narrativa desta simples história criaram um cenário admirável para um inocente passatempo. Os apetrechos do pequeno banquete haviam sido dispostos sobre o gramado de uma velha casa de campo inglesa, no que eu poderia chamar de perfeito decorrer de uma esplêndida tarde de verão. Parte da tarde já se esvaíra, mas boa parte dela ainda restava, e o que ali havia era da mais fina e rara qualidade. O verdadeiro crepúsculo tardaria ainda algumas horas; porém a torrente de luz de verão já refluía, a atmosfera tornara-se branda, as sombras alongavam-se sobre a relva macia e densa. Porém cresciam lentas; e a cena expressava aquela sensação de inatividade ainda por vir, que é talvez a fonte principal do prazer de se viver tal cena nesse horário. Das cinco às oito horas é, em certas ocasiões, uma pequena eternidade; mas numa ocasião como esta, o intervalo só podia ser uma eternidade de prazer. As pessoas nela envolvidas absorviam esse prazer tranqüilamente, e não pertenciam ao sexo que supostamente fornece os habituais partidários da cerimônia que mencionei. As sombras sobre o gramado perfeito em retilíneas e angulosas; eram as sombras de um velho sentado em uma ampla cadeira de vime próxima à mesa baixa sobre a qual fora servido o chá, e as de dois homens mais jovens, andando de um lado para o outro, conversando à toa diante dele. O velho segurava a xícara nas mãos; era uma xícara de tamanho inusitado, de desenho diferente do restante do aparelho e decorada com cores brilhantes. Ele se servia de seu conteúdo com muita circunspecção, mantendo-a por longo tempo próxima a seu queixo, com a face voltada em direção à casa. Seus companheiros haviam terminado o chá ou estavam indiferentes a tal privilégio; fumavam cigarros enquanto continuavam a passear por ali. Um deles, de quando em quando, ao passar olhava com certa atenção para o homem mais velho, que, sem notar que estava sendo observado, mantinha o olhar fixo sobre a suntuosa fachada vermelha de sua residência. A casa que se erguia além do gramado era uma estrutura que merecia tal consideração e era o objeto mais característico no quadro peculiarmente inglês que tentei esboçar.Erguia-se sobre uma colina baixa, acima do rio - sendo este o Tâmisa, a cerca de sessenta e cinco quilômetros de Londres. Uma fachada de tijolos vermelhos e cumeeira alta, com a aparência marcada por proezas pictóricas infligidas pelo tempo e pelo clima que, no entanto, apenas a tinham melhorado e refinado, apresentava ao gramado suas heras, suas chaminés agrupadas, suas janelas afogadas em trepadeiras. A casa possuía um nome e uma história; o velho cavalheiro tomando seu chá teria tido o maior prazer em contar-lhes essas coisas: como ela fora construída no reinado de Eduardo VI, oferecera hospitalidade por uma noite para a grande Elizabeth (cuja augusta pessoa se estendera numa cama imensa, magnífica e terrivelmente angulosa que ainda constituía a principal honra dos aposentos de dormir), fora bastante atingida e desfigurada durante as guerras de Cromwell, e então, durante a Restauração, reparada e muito ampliada; e como, finalmente, após haver sido remodelada e descaracterizada no século XVIII, passara para a cuidadosa guarda de um arguto banqueiro norte-americano, que a comprara originalmente porque (devido a circunstâncias demasiadamente complicadas para expor aqui) lhe foi oferecida por uma pechincha: comprara-a com muitas queixas por sua feiúra, sua antigüidade, sua falta de conforto, e agora, vinte anos depois, tornara-se consciente de sua verdadeira paixão estética por ela, de modo que conhecia todos os seus recantos e poderia dizer exatamente onde postar-se para vê-los em harmonia e exatamente a hora em que as sombras de suas várias protuberâncias - que caíam tão suavemente sobre a cálida e fatigada alvenaria de tijolos -tinham a medida apropriada. Além disso, como já mencionei, ele poderia desfiar a maioria dos sucessivos proprietários e ocupantes, vários dos quais eram de fama publicamente reconhecida; fazendo isso, entretanto, com uma convicção velada de que a última fase de seu destino não era a menos honrosa. A fachada da casa voltada para aquela porção do gramado na qual estamos interessados não era a da entrada principal; esta localizava-se em local bem diverso. A privacidade, aqui, reinava soberana, e o amplo carpete de relva que cobria a parte plana do topo da colina parecia ser apenas a extensão de um luxuoso interior. Os grandes e silenciosos carvalhos e faias projetavam sombra tão densa como cortinas de veludo, e o local estava mobiliado como um aposento, com poltronas estofadas, tapetes de cores vivas, livros e papéis que jaziam sobre a grama. O rio ficava a certa distância; onde o terreno começava a descer, o gramado propriamente dito terminava. Mas mesmo assim era encantadora a caminhada até a água.O velho cavalheiro à mesa de chá, que viera da América do Norte trinta anos antes, trouxera consigo, no alto de sua bagagem, a fisionomia americana; e não somente a trouxera consigo, como também a conservara em perfeito estado, de modo que, caso necessário, poderia tê-la levado de volta a seu país de origem com total confiança. No momento, obviamente, contudo, ele não parecia disposto a transferir-se; suas viagens tinham terminado e agora ele desfrutava do repouso que precede o grande repouso. Tinha o rosto fino e bem barbeado, com feições proporcionalmente distribuídas e uma expressão de plácida sagacidade. Era evidentemente um rosto no qual a amplitude de representação não era grande, de forma que o ar de argúcia satisfeita era de ainda mais mérito. Parecia dizer que seu portador fora bem-sucedido na vida, mas também que todo seu sucesso não fora exclusivo e hostil, mas possuíra muito da inocência do fracasso. Ele certamente tinha grande experiência dos homens, mas percebia-se uma simplicidade quase rústica no débil sorriso que lhe pairava na face magra e larga e lhe iluminava os olhos bem-humorados, quando ele, por fim, pousou com lentidão e cuidado a grande xícara de chá sobre a mesa. Estava bem vestido, com trajes de um preto lustroso; mas tinha um xale dobrado sobre os joelhos, e os pés enfiados em chinelos grossos e bordados. Um belo collie estava deitado sobre a grama próximo de sua cadeira, olhando para o rosto do dono quase com tanta ternura quanto a que este dedicava à ainda mais dominadora fisionomia da casa; e um pequeno terrier, alvoroçado e de pêlo eriçado, dispensava vaga atenção aos outros cavalheiros.Um deles era um homem notavelmente bem-apessoado, de trinta e cinco anos, com feições tão inglesas quanto não o eram as do idoso cavalheiro que acabei de descrever; um rosto muito atraente, corado, claro e franco, de feições firmes e corretas, olhos de um cinza intenso e o rico adorno de uma barba castanha. Tal pessoa possuía um certo ar afortunado, brilhante e excepcional - o ar de um temperamento feliz, fertilizado por uma elevada civilização - que teria feito qualquer observador quase invejá-lo ao acaso. Calçava botas com esporas, como se houvesse acabado de chegar de uma longa cavalgada; usava chapéu branco, que parecia ser grande demais para ele; mantinha as mãos às costas, e uma delas - de punho largo, branco e bem talhado - apertava um par de luvas de couro de cachorro, manchadas.Seu companheiro, que a seu lado dava largas passadas pelo gramado, era uma pessoa de tipo bem diferente que, embora podendo talvez despertar grave curiosidade, não teria, como o outro, provocado em alguém o desejo quase imprudente de estar em seu lugar. Alto, magro, de constituição débil e deselegante, tinha um rosto feio e doentio, embora espirituoso e fascinante, dotado, mas de modo algum adornado, de um bigode irregular e suíças. Parecia inteligente e enfermo - combinação absolutamente infeliz -, e vestia um paletó de veludo marrom. Tinha as mãos nos bolsos, e havia algo na maneira como o fazia que mostrava que o hábito era inveterado. Seu modo de andar era trôpego e errante; não tinha muita firmeza nas pernas. Como já disse, sempre que passava pelo velho na cadeira, pousava o olhar nele; e nesse momento, relacionando os rostos, seria fácil perceber que se tratava de pai e filho. O pai cruzou finalmente o olhar do filho e deu um sorriso suave em resposta.- Estou me sentindo muito bem - disse ele.- Bebeu seu chá? - perguntou o filho.- Sim, e apreciei-o bastante.- Quer mais um pouco?O velho ponderou, plácido.- Bem, creio que esperarei um pouco. - Seu sotaque era norte-americano.- Está com frio? - indagou o filho. O pai esfregou lentamente as pernas:- Bem, não sei. Só poderei dizer quando sentir.- Talvez alguém possa sentir por você - disse o rapaz, rindo.- Oh, espero que alguém sempre sinta por mim! O senhor não sente por mim, lorde Warburton?- Oh, sim, imensamente - disse prontamente o cavalheiro mencionado como lorde Warburton. - Sou obrigado a dizer que o senhor me parece maravilhosamente confortável.- Bem, acredito que esteja, sob muitos aspectos. - E o velho baixou o olhar para o xale verde, ajeitando-o sobre os joelhos. - O fato é que tenho estado confortável durante tantos anos que devo ter me acostumado tanto a isso a ponto de já não saber mais.- Sim, esse é o fastio do conforto - disse lorde Warburton. - Só nos damos conta quando estamos desconfortáveis.- Parece-me que somos muito exigentes - notou seu companheiro.- Oh, sim, não há dúvida de que somos exigentes - murmurou lorde Warburton. E então os três permaneceram em silêncio por algum tempo; os dois mais jovens de pé, olhando para o terceiro, que dali a pouco pediu mais um pouco de chá. - Eu teria imaginado que o senhor se sentiria muito infeliz com esse xale - continuou lorde Warburton, enquanto seu companheiro enchia novamente a xícara do velho.- Oh, não, ele deve ficar com o xale! - exclamou o cavalheiro do paletó de veludo. - Não coloque essas idéias na cabeça dele.- Ele pertence à minha mulher - disse o velho, simplesmente.- Se é por razões sentimentais... - E lorde Warburton fez um gesto de desculpas.- Creio que deva devolvê-lo quando ela chegar - continuou o velho.- Por favor, não faça nada disso. Fique com ele para cobrir suas velhas pernas.- Ora, você não deve criticar minhas pernas - disse o velho. - Acho que são tão boas quanto as suas.- Oh, o senhor tem toda a liberdade para criticar as minhas - respondeu seu filho, estendendo-lhe a xícara.- Ora, somos dois inválidos; não creio que haja muita diferença.- Sou-lhe muito grato por chamar-me de inválido. Como está o chá?- Bem, um tanto quente.- Isso deve ser considerado um mérito.- Há grande mérito, realmente - murmurou o velho, bondosamente. - Ele é um ótimo enfermeiro, lorde Warburton.- Não é um pouco desajeitado? - perguntou o lorde.- Oh, não, ele não é desajeitado, considerando-se que também é um inválido. É ótimo enfermeiro, para um doente. Eu o chamo de meu enfermeiro doente, porque ele próprio está doente.- Ora, vamos, papai! - exclamou o rapaz feio.- Mas você está; gostaria que não estivesse. Porém creio que não pode evitar isso.- Posso tentar; é uma idéia - disse o rapaz.- Já ficou doente, lorde Warburton? - perguntou o velho.Lorde Warburton refletiu por um momento.- Sim, senhor, fiquei uma vez, no golfo Pérsico.- Ele está brincando com o senhor, papai - disse o outro jovem. - É só gracejo.- Bem, parece haver muitos gracejos hoje em dia - respondeu o pai, serenamente. - De qualquer modo, não parece que o senhor esteve doente, lorde Warburton.- Ele está farto da vida; estava me falando justamente sobre isso; falando sem parar sobre o assunto - disse o amigo de lorde Warburton.- Isso é verdade, senhor? - perguntou o velho, sério.- Se é, seu filho não me ofereceu nenhum consolo. Ele é um péssimo parceiro para se conversar, um cínico completo. Parece não acreditar em coisa alguma.- Esse é outro gracejo - disse a pessoa acusada de cinismo.- É porque sua saúde é ruim - explicou o velho a lorde Warburton. - Afeta-lhe a mente e matiza sua maneira de encarar as coisas; parece que ele sente que jamais teve uma chance. Porém tudo isso é quase só na teoria, sabe, não parece afetar-lhe o ânimo. Quase nunca o vi desanimado - mais ou menos como está agora. Ele geralmente me alegra.O rapaz assim descrito olhou para lorde Warburton e riu.- Isso é um elogio exaltado ou uma acusação de leviandade? Gostaria que eu pusesse em prática minhas teorias, papai?- Por Deus, veríamos coisas bastante estranhas! - exclamou lorde Warburton.- Espero que não tenha adotado esse tom - disse o velho.- O tom de Warburton é pior que o meu; ele finge estar entediado. Eu não estou nem um pouco entediado; até considero a vida interessante demais.- Ah, interessante demais; não deve permitir que ela seja assim, sabe disso!- Jamais fico entediado quando venho aqui - disse lorde Warburton. - A conversa é sempre inusitadamente boa.- Isso é outro gracejo? - perguntou o velho. - O senhor não tem desculpa de se sentir entediado em lugar algum. Quando eu tinha a sua idade, jamais ouvi falar de algo semelhante.- O senhor deve ter amadurecido bem tarde.- Não, amadureci bem rápido; esse foi exatamente o motivo. Quando eu tinha vinte anos de idade, já estava muitíssimo amadurecido. Trabalhava com unhas e dentes. O senhor não se sentiria entediado se tivesse o que fazer; mas vocês, jovens, são todos ociosos. Pensam demais no próprio prazer. São exigentes demais, indolentes demais e ricos demais.- Ah, alto lá - exclamou lorde Warburton. - O senhor não é a pessoa mais indicada para acusar um semelhante de ser rico demais!- Diz isso porque sou banqueiro? - perguntou o velho.- Por isso, se quiser, e porque o senhor tem, não é mesmo?, recursos ilimitados.- Ele não é muito rico - defendeu-o misericordiosamente o rapaz. - Distribuiu uma quantidade imensa de dinheiro.- Bem, suponho que o dinheiro era dele - disse lorde Warburton -; e, nesse caso, haveria maior prova de riqueza? Não está certo um benfeitor público dizer que outros prezam demais o prazer.- Papai preza muito o prazer... dos outros. O velho meneou a cabeça.- Não tenho pretensões de ter contribuído em nada para a diversão de meus contemporâneos.- Meu caro pai, o senhor é modesto demais!- Isso é outro gracejo, senhor - disse lorde Warburton.- Vocês, jovens, gracejam demais. Quando não há mais do que gracejar, não lhes resta nada.- Felizmente há sempre do que gracejar - observou o rapaz feioso.- Não acredito nisso, acredito que as coisas estão se tornando mais sérias. E vocês, jovens, descobrirão que estou certo.- A crescente seriedade das coisas. Essa é a grande oportunidade para gracejos.- Terão que ser gracejos cruéis - disse o velho. - Estou convencido de que haverá grandes mudanças; e nem todas para melhor.- Concordo plenamente com o senhor - declarou lorde Warburton. - Tenho absoluta certeza de que haverá grandes mudanças e que todo tipo de coisas estranhas acontecerá. Eis por que encontro tanta dificuldade em pôr em prática seu conselho; como sabe, disse-me outro dia que eu deveria "agarrar-me" a alguma coisa. Hesito, porém, em agarrar-me a algo que, no momento seguinte, poderá ser mandado para o espaço.- Você deveria agarrar-se a uma bela mulher - disse seu companheiro. - Ele está muito empenhado em apaixonar-se - acrescentou, à guisa de explicação, dirigindo-se ao pai.- As belas mulheres também podem ir pelos ares! - exclamou lorde Warburton.- Não, não, elas permanecerão firmes - retorquiu o velho -; não serão afetadas pelas mudanças sociais e políticas que acabei de mencionar.- Quer dizer que elas não serão abolidas? Muito bem, então lançarei as mãos sobre uma tão logo seja possível e a amarrarei ao pescoço como um salva-vidas.- As damas nos salvarão - disse o velho -; quero dizer, as melhores o farão - pois faço uma distinção entre elas. Corteje uma boa mulher e case-se com ela, e sua vida se tornará muito mais interessante.Um silêncio momentâneo marcou, talvez, por parte dos ouvintes, o senso da magnanimidade desse discurso, pois não era segredo nem para o filho nem para o visitante que sua própria experiência matrimonial não fora feliz. Como dissera, no entanto, ele fazia uma distinção; e essas palavras podem ter tido a intenção de uma confissão de erro pessoal; embora, é claro, não fosse apropriado que nenhum de seus dois companheiros observasse que aparentemente a dama de sua escolha não fora das melhores.- Se eu me casar com uma mulher interessante, ficarei interessado; é isso que quer dizer? - perguntou lorde Warburton. - Não estou nem um pouco entusiasmado para casar - seu filho deturpou minhas intenções. Mas não sei o que uma mulher interessante poderia fazer por mim.- Eu gostaria de ver qual é a sua idéia de uma mulher interessante - disse-lhe o amigo.- Meu caro, não se podem ver idéias, especialmente idéias tão altamente etéreas como as minhas. Se ao menos eu mesmo conseguisse vê-las, isso já seria um grande avanço.- Bem, o senhor pode se apaixonar por quem lhe agradar; porém não deve fazê-lo por minha sobrinha - disse o velho.O filho caiu na risada.- Ele pensará que o senhor diz isso como uma provocação! Meu querido pai, o senhor convive com os ingleses há trinta anos e já assimilou muitas de suas expressões. Mas ainda não aprendeu o que eles não dizem!- Eu digo o que me agrada - respondeu o velho, com toda a serenidade.- Não tenho a honra de conhecer sua sobrinha - disse lorde Warburton. - Creio que é a primeira vez que ouço falar dela.- Ela é sobrinha de minha esposa; a senhora Touchett a está trazendo para a Inglaterra.Então o jovem senhor Touchett explicou:- Minha mãe, como sabe, passou o inverno na América, e estamos aguardando sua volta. Ela escreveu dizendo que descobriu uma sobrinha e convidou-a a vir também.- Entendo, muito gentil da parte dela - disse lorde Warburton. - A jovem é interessante?- Sabemos tanto quanto você a respeito dela; minha mãe não entrou em detalhes. Ela se comunica conosco principalmente por telegramas, e seus telegramas são bastante inescrutáveis. Dizem que as mulheres não sabem redigi-los, mas minha mãe dominou completamente a arte da condensação. "Cansada América, clima quente horrível, volto Inglaterra com sobrinha, primeiro navio cabine decente." É esse o tipo de mensagem que recebemos dela - essa foi a última. Porém houve uma outra antes, que acredito conter a primeira menção à sobrinha. "Troquei hotel, muito ruim, funcionário insolente, endereço aqui. Adotei filha da irmã, morta ano passado, viagem à Europa, duas irmãs, muito independente." Meu pai e eu não conseguimos decifrar de todo o conteúdo; pode admitir muitas interpretações.- Mas há uma coisa bastante clara - disse o velho -; ela passou um sabão no funcionário do hotel.- Nem sequer disso estou certo, uma vez que ele a tirou de perto. A princípio pensamos que a irmã mencionada pudesse ser a irmã do funcionário; porém a menção subseqüente de uma sobrinha parece provar que a alusão refere-se a uma de minhas tias. Aí restou a questão sobre de quem eram as duas outras irmãs; são provavelmente duas das filhas de minha falecida tia. Mas quem é "muito independente", e em que sentido o termo é usado? Esse ponto ainda não está esclarecido. A expressão aplica-se especificamente à jovem que minha mãe adotou, ou caracteriza suas irmãs? E é usada em sentido moral ou financeiro? Significa que elas ficaram em boa situação, ou que elas não desejam assumir nenhuma obrigação? Ou simplesmente significa que elas gostam de fazer as coisas do seu jeito?- O que quer que signifique além disto, certamente é isto o que quer dizer - observou o senhor Touchett.- Julgarão por si mesmos - disse lorde Warburton. - Quando chega a senhora Touchett?- Estamos completamente no escuro; assim que encontrar uma cabine decente em algum navio. Talvez ela ainda esteja à espera; ou quem sabe até já desembarcou na Inglaterra.- Nesse caso, provavelmente teria telegrafado a vocês.- Ela jamais telegrafa quando se espera que o faça, somente quando não se espera - disse o velho. - Ela gosta de apanhar-me de surpresa; pensa que me encontrará fazendo algo errado. Ainda não conseguiu, mas tampouco desanimou.- É o que toca a ela no acordo familiar, a independência que menciona. - A apreciação do filho sobre o assunto em questão era mais favorável. - Seja qual for a independência daquelas jovens, não é páreo para a dela. Ela gosta de fazer tudo por conta própria e não acredita que alguém seja capaz de ajudá-la. Ela me considera tão útil quanto um selo sem cola, e jamais me perdoaria se eu me atrevesse a ir até Liverpool para recebê-la.- Poderei ao menos ser informado quando sua sobrinha chegar? - perguntou lorde Warburton.- Somente com a condição de não se apaixonar por ela! - retrucou o senhor Touchett.- Isso me parece muito duro. Não me considera bom o bastante?- Considero-o bom demais, porque não gostaria que ela o desposasse. Ela não veio até aqui à procura de um marido, espero; tantas jovens estão fazendo isso, como se não houvesse bons partidos em seu país de origem. E talvez ela esteja comprometida; as moças norte-americanas geralmente têm compromisso, creio eu. Além disso, não estou certo, afinal de contas, de que o senhor seria um bom marido.- Provavelmente ela está comprometida; conheci muitas moças norte-americanas, e elas sempre estavam. Mas não creio que isso faça alguma diferença, dou-lhe minha palavra. Quanto ao fato de eu ser um bom marido - prosseguiu o visitante do senhor Touchett -, também não estou certo a respeito disso. Só me resta tentar!- Tente quanto lhe aprouver, mas não com minha sobrinha - sorriu o velho, cuja oposição à idéia era bastante jocosa.- Bem - disse lorde Warburton em tom ainda mais jocoso -, é possível, afinal de contas, que ela não valha sequer a tentativa!



"Um caráter assim" dizia a si mesmo " ter a chance de ter essa força ardente em ação é a coisa mais bela da natureza . É mais bela que a mais bela obra de arte : um baixo-relevo grego, um grande Ticiano, uma catedral gótica. É muito agradável ser tão bem tratado por quem menos se tinha esperado. Eu nunca estive tão melancólico, tão entediado como na semana anterior à chegada dela; nunca teria esperado que algo agradável fosse acontecer. De repente, recebo um Ticiano pelo correio, para pendurar na parede, um baixo relevo grego para pregar sobre a lareira. A chave de um belo palácio é posta em minha mão e alguém me diz que posso entrar e admirar. Meu pobre rapaz, você foi muito ingrato e agora é mlehor que fique bem quietinho e não reclame mais" trad. Gilda Stuart., Cia de Bolso, p. 88
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Harold Bloom, em Como e Por que Ler.
Por que ler Retrato de uma Senhora! Por muitas razões, e para obter imensos benefícios, mas o cultivo de uma consciência individual seria, certamente, um objetivo primeiro, bem como o grande benefício decorrente de uma leitura intensa. Energia intelectual e introvisão: eis os atributos da consciência do leitor solitário que mais se desenvolvem através da leitura. Informação social, seja sobre o passado ou sobre a contemporanei-dade, a meu ver, constitui um benefício periférico à leitura, e conscientização política um ganho ainda mais tênue (p. 166)

terça-feira, setembro 01, 2009

DAVID GILMOUR: Clube do Filme


Como um livro ruim pode te ajudar a fazer coisas bem legais?


Assim foi com Clube do Livro, que é a história de diálogo entre um pai desempregado e crítico de cinema e seu filho que não sabe o que vai fazer da vida.


O legal é a lista dos filmes.

Good Books Don't Have to Be Hard

Good Books Don't Have to Be Hard
A novelist on the pleasure of reading stories that don't bore; rising up from the supermarket racks




A good story is a dirty secret that we all share. It's what makes guilty pleasures so pleasurable, but it's also what makes them so guilty. A juicy tale reeks of crass commercialism and cheap thrills. We crave such entertainments, but we despise them. Plot makes perverts of us all.


It's not easy to put your finger on what exactly is so disgraceful about our attachment to storyline. Sure, it's something to do with high and low and genres and the canon and such. But what exactly? Part of the problem is that to find the reason you have to dig down a ways, down into the murky history of the novel. There was once a reason for turning away from plot, but that rationale has outlived its usefulness. If there's a key to what the 21st-century novel is going to look like, this is it: the ongoing exoneration and rehabilitation of plot.
Where did this conspiracy come from in the first place—the plot against plot? I blame the Modernists. Who were, I grant you, the single greatest crop of writers the novel has ever seen. In the 1920s alone they gave us "The Age of Innocence," "Ulysses," "A Passage to India," "Mrs. Dalloway," "To the Lighthouse," "Lady Chatterley's Lover," "The Sun Also Rises," "A Farewell to Arms" and "The Sound and the Fury." Not to mention most of "In Search of Lost Time" and all of Kafka's novels. Pity the poor Pulitzer judge for 1926, who had to choose between "The Professor's House," "The Great Gatsby," "Arrowsmith" and "An American Tragedy." (It went to "Arrowsmith." Sinclair Lewis prissily declined the prize.) The 20th century had a full century's worth of masterpieces before it was half over.
But let's look back for a second at where the Modernists came from, and what exactly they did with the novel. They drew a tough hand, historically speaking. All the bad news of the modern era had just arrived more or less at the same time: mass media, advertising, psychoanalysis, mechanized warfare. The rise of electric light and internal combustion had turned their world into a noisy, reeking travesty of the gas-lit, horse-drawn world they grew up in. The orderly, complacent, optimistic Victorian novel had nothing to say to them. Worse than nothing: it felt like a lie. The novel was a mirror the Modernists needed to break, the better to reflect their broken world. So they did.
One of the things they broke was plot. To the Modernists, stories were a distortion of real life. In real life stories don't tie up neatly. Events don't line up in a tidy sequence and mean the same things to everybody they happen to. Ask a veteran of the Somme whether his tour of duty resembled the "Boy's Own" war stories he grew up on. The Modernists broke the clear straight lines of causality and perception and chronological sequence, to make them look more like life as it's actually lived. They took in "The Mill on the Floss" and spat out "The Sound and the Fury."
This brought with it another, related development: difficulty. It's hard to imagine it now, but there was a time when literary novels were not, generally speaking, all that hard to read. Say what you like about the works of Dickens and Thackeray, you pretty much always know who's talking, and when, and what they're talking about. The Modernists introduced us to the idea that reading could be work, and not common labor but the work of an intellectual elite, a highly trained coterie of professional aesthetic interpreters. The motto of Ezra Pound's "Little Review," which published the first chapters of Joyce's "Ulysses," was "Making no compromise with the public taste." Imagine what it felt like the first time somebody opened up "The Waste Land" and saw that it came with footnotes. Amateur hour was over.
But we don't live in the Modernists' world anymore. We have different problems. We've had plenty of bad news of our own. Some of which has to do with the book business itself—sales of adult trade books declined 2.3% last year, compared with 2007. Should we still be writing difficult novels? Isn't it time we made our peace with plot?
After all, the discipline of the conventional literary novel is a pretty harsh one. To read one is to enter into a kind of depressed economy, where pleasure must be bought with large quantities of work and patience. The Modernists felt little obligation to entertain their readers. That was just the price you paid for your Joycean epiphany. Conversely they have trained us, Pavlovianly, to associate a crisp, dynamic, exciting plot with supermarket fiction, and cheap thrills, and embarrassment. Plot was the coward's way out, for people who can't deal with the real world. If you're having too much fun, you're doing it wrong.
There was a time when difficult literature was exciting. T.S. Eliot once famously read to a whole football stadium full of fans. And it's still exciting—when Eliot does it. But in contemporary writers it has just become a drag. Which is probably why millions of adults are cheating on the literary novel with the young-adult novel, where the unblushing embrace of storytelling is allowed, even encouraged. Sales of hardcover young-adult books are up 30.7% so far this year, through June, according to the Association of American Publishers, while adult hardcovers are down 17.8%. Nam Le's "The Boat," one of the best-reviewed books of fiction of 2008, has sold 16,000 copies in hardcover and trade paperback, according to Nielsen Bookscan (which admittedly doesn't include all book retailers). In the first quarter of 2009 alone, the author of the "Twilight" series, Stephenie Meyer, sold eight million books. What are those readers looking for? You'll find critics who say they have bad taste, or that they're lazy and can't hack it in the big leagues. But that's not the case. They need something they're not getting elsewhere. Let's be honest: Why do so many adults read Suzanne Collins's young-adult novel "The Hunger Games" instead of contemporary literary fiction? Because "The Hunger Games" doesn't bore them.
Turn the Page

A selection of books that are rife with action
The Golden Compass by Philip Pullman
Fingersmith by Sarah Waters
The Talented Mr. Ripley by Patricia Highsmith
Pride and Prejudice by Jane Austen
The Great Gatsby by F. Scott Fitzgerald
Zeitoun by Dave Eggers
All of this is changing. The revolution is under way. The novel is getting entertaining again. Writers like Michael Chabon, Jonathan Lethem, Donna Tartt, Kelly Link, Audrey Niffenegger, Richard Price, Kate Atkinson, Neil Gaiman, and Susanna Clarke, to name just a few, are busily grafting the sophisticated, intensely aware literary language of Modernism onto the sturdy narrative roots of genre fiction: fantasy, science fiction, detective fiction, romance. They're forging connections between literary spheres that have been hermetically sealed off from one another for a century. Look at Cormac ­McCarthy, who for years appeared to be the oldest living Modernist in captivity, but who has inaugurated his late period with a serial-killer novel followed by a work of apocalyptic science fiction. Look at Thomas Pynchon—in "Inherent Vice" he has swapped his usual cumbersome verbal calisthenics for the more maneuverable chassis of a hard-boiled detective novel.
This is the future of fiction. The novel is finally waking up from its 100-year carbonite nap. Old hierarchies of taste are collapsing. Genres are hybridizing. The balance of power is swinging from the writer back to the reader, and compromises with the public taste are being struck all over the place. Lyricism is on the wane, and suspense and humor and pacing are shedding their stigmas and taking their place as the core literary technologies of the 21st century.
From a hieratic, hermetic art object the novel is blooming into something more casual and open: a literature of pleasure. The critics will have to catch up. This new breed of novel resists interpretation, but not the way the Modernists did. These books require a different set of tools, and a basic belief that plot and literary intelligence aren't mutually exclusive.
In fact the true postmodern novel is here, hiding in plain sight. We just haven't noticed it because we're looking in the wrong aisle. We were trained—by the Modernists, who else—to expect a literary revolution to be a revolution of the avant-garde: typographically altered, grammatically shattered, rhetorically obscure. Difficult, in a word. This is different. It's a revolution from below, up from the supermarket racks.—Lev Grossman is the book critic at Time magazine and the author of "The Magicians," a novel.

quinta-feira, agosto 20, 2009

WILLIAM FAULKNER: Enquanto Agonizo

"É por isso que ele está lá fora embaixo da janela, martelando e serrando aquele maldito caixão. Onde ela pode vê-lo. Onde todo ar que ela aspira está impregnado das marteladas e serradas onde ela pode vê-lo dizendo Veja. Veja que beleza estou fazendo para a senhora" p. 17


Em "Enquanto agonizo", Faulkner costura dezenas de monólogos de 15 pessoas para mostrar o perfil psicológico de uma família que conduz o corpo da matriarca ao cemitério. A partir de "O lugarejo", o destino dos personagens de Faulkner não é mais tão trágico. Ao menos surge alguma esperança para a condição humana como uma promessa de liberação.



Eleito uns dos cem melhores romances do século XX, Enquanto agonizo é um grandioso exemplar da linguagem e do estilo praticados pelo escritor norte-americano William Faulkner. Neste romance publicado em 1930, o autor distancia-se da aristocracia sulista americana para falar sobre a gente comum e humilde da região.


O livro acompanha o cortejo da família Bruden, reunida para cumprir o último desejo da matriarca: ser enterrada na cidade de Jefferson, condado de Yoknapatawpha, longe da miserável cidade de. Sem saber que essa viagem mudaria suas vidas, o marido e os cinco filhos partem com o caixão determinados a cumprir seu objetivo.


Durante o percurso, Faulkner apresenta ao leitor os dramas pessoais familiares, mas também a miséria do sul dos Estados Unidos. A aparente tranqüilidade da vida rural esconde as relações complexas entre os membros da família, reveladas pelo escritor de forma cativante e inovadora: cada capítulo é narrado em primeira pessoa e de forma não-linear pelos personagens, com flashbacks que vão se entrelaçando e formando um espelho da condição humana.


Enquanto Leio

do site odisséia 2005


Quem nunca comprou um produto exclusivamente por causa da marca? Inconscientemente, há a certeza de que aquele produto satisfará nossos anseios, que aquela marca representa qualidade. Para quem conhece um pouco da obra de William Faulkner, o inicio da leitura de um livro do autor se dá mais ou menos da mesma maneira: uma sensação de qualidade, de um autor que domina plenamente a capacidade de narrar. Às vezes isso pode ser até um pouco prejudicial, uma sensação de que não é preciso ficar atento às qualidades da obra, pois elas são evidentes. De fato, livros como "O Som e a Fúria", "Absalão, Absalão", "Luz em Agosto" e "Enquanto Agonizo" são constantemente citados como verdadeiras obras-primas. Mas ao prestar atenção à medida que lemos tais obras, serve para descobrir qualidades literárias que podem passar por alto.


Quando Faulkner escreveu "Enquanto Agonizo" o mundo já conhecia autores que usavam o 'stream-of-consciousness', um recurso literário bastante interessante (algo como descrever exatamente o pensamento dos personagens, com a desordem típica de um pensamento em formação). De fato, Virginia Woolf e James Joyce são autores exemplares neste tipo de escrita e são lidos e estudados até hoje. No entanto, para o leitor que não está acostumado com a atividade de 'ler' pensamentos, o recurso pode causar estranhamento. Muitos enfadados por descrições nada ordenadas - onde tempo, espaço e formas se misturam -, acabam simplesmente abandonando tais obras em busca de algo mais linear. No entanto, Faulkner em "Enquanto Agonizo" consegue oferecer o mesmo recurso literário complexo de um jeito altamente atraente, irresistível, que nos faz avançar a cada página quase que com voracidade.



"Enquanto Agonizo" tem um enredo aparentemente comum: Addie Bundren, a matriarca da família, está gravemente enferma e todos se preparam para seu funeral. Um pedido feito em seu leito de morte, faz com que os outros membros da família se preparem para viajar até Jefferson, uma cidade vizinha, onde a personagem será enterrada. A aparente simplicidade do roteiro esconde relações complexas entre todos os membros da família e a obra procura refletir isso dum modo poderoso e inovador para a época: cada capítulo da história é narrado em primeira pessoa por algum personagem. São, portanto, várias primeiras pessoas nos informando sobre o que acontece ao seu redor e (claro) em seu interior. O recurso põe em evidência assim o 'stream-of-consciousness' de maneira a enriquecer a narrativa, com um domínio que somente um mestre da literatura mundial poderia exercer.


O eixo da roda
do artigo de Silviano Santiago para folha

O eixo da roda narrativa dramatiza a agonia e morte de Addie Bundren, mulher e mãe, responsável por um único e solitário capítulo no meio do romance. Do eixo central saem e a ele retornam os raios da roda, ou seja, os 59 curtos capítulos do romance. Cada capítulo é um monólogo. Os monólogos são de responsabilidade do marido e dos cinco filhos de Addie, bem como dos vizinhos com quem mantêm laços de amizade. O todo da narrativa constitui o aro externo da roda. Eis o resumo do romance que Faulkner escreveu com a ajuda da água e do fogo. Da água que desce dos céus em chuva, fazendo transbordar o rio, derrubando pontes, isolando ainda mais o grupo social. Do incêndio com que o mais ardiloso dos filhos pretende dar por encerrado o périplo tragicômico, às vezes grotesco, do caixão até o cemitério de uma cidade vizinha. Os raios da roda se articulam ao eixo fixo central no tempo do enquanto -para se valer de palavra tomada de empréstimo ao título da obra.
Tentemos descrever essa forma do tempo mítico, circular, com a ajuda da mecânica da roda. Enquanto a mulher e mãe agoniza, morre e é enterrada, cada um dos membros da família repassa experiências que foram definitivas na sua configuração de seres humanos e por elas se deixa obsedar. No tempo do enquanto, o que é tido como superficial no calendário das pequenas ações e conversas do cotidiano passa a calar fundo graças às reminiscências. O monólogo que constitui um personagem leva água para o monjolo do outro. Na família, cada um é diferente do outro e são todos iguais. Como montar o quebra-cabeça da esquizofrenia familiar faulkneriana? Não há progresso nos 59 micromonólogos que compõem "Enquanto Agonizo". O tempo da narrativa gira sobre si mesmo como a roda na areia. Com a ajuda de Nathalie Sarraute, digamos que a mulher e mãe, semelhante ao sol, afeta a todos da família e da comunidade pelo efeito de tropismo. Tal qual plantas numa paisagem inóspita, todos os personagens reagem a ela. Dela se aproximam em busca de vida, dela se afastam em busca de autonomia e a ela retornam reconciliados com o destino. A mulher e mãe irradia uma luz feiticeira. Ao atrair, sua claridade espetaculariza vontades, desejos e devaneios. Ao refluir, revela a sordidez, a imundície e a miséria em que vivem esses camponeses do Mississippi. Addie é a força amorosa e traiçoeira que deixa à vista essa família de "white trash" (lixo branco), para usar a expressão que os negros usam para designar os brancos que se igualam a eles na pobreza. Como na novela "A Morte de Ivan Ilitch", de Tolstói, o romance exala o cheiro (catinga e perfume) da morte. Um cheiro forte, como teria dito o camponês Guerasim, alçado à condição de ajudante de mordomo, diante do urinol usado pelo patrão. Faulkner, é sabido, teve primeiro sucesso junto aos intelectuais franceses. Anos depois será reconhecido pelos compatriotas e ingleses. Tenho uma hipótese. A literatura francesa, na sua forma mais tradicional, que é a do "récit", sempre se interessou pelo monólogo longo, que no fundo nada mais é do que suporte para a prosa introspectiva (observações sobre a vida íntima pelo próprio sujeito).

Intimidade caipira

De Madame de la Fayette, no século 17, a André Gide, Albert Camus e Patrick Modiano, nos nossos dias, criou-se a tradição do monólogo ficcional francês. Na literatura francesa, cartesiana por definição, o narrador/ personagem da prosa introspectiva tem de ser inteligente, capaz de destrinchar sentimentos e emoções que constituem o sujeito no mundo, ao lado de pares cujo maior prazer é se exercitarem na perversidade e sutileza dos jogos sociais aristocratizantes.

Faulkner não tem medo de usar o monólogo quando o personagem é destituído de raciocínio lógico. Seus colegas de ofício, como Hemingway ou Steinbeck, preferem imitar a técnica do romance policial. Ambos se valem dos recursos da psicologia comportamental (behaviorista) que lhes é proposta por William James e seus seguidores. Nada de vida íntima nos romances dos expoentes da geração perdida europeizada, tudo é ação e gesto. Faulkner trata a brutalidade de outra forma. Ele é o detetive da intimidade caipira. Devassa-a para descobrir (e mostrar) seres tão complexos na sua fúria de viver quanto os citadinos.Calculem a bomba que explode nos arraiais artísticos franceses quando figuras como Valery Larbaud, tradutor de James Joyce, são levadas a defrontar com um, com vários narradores/personagens de Faulkner. Estão diante de seres ignorantes, violentos e brutos, mas ao mesmo tempo extremamente sensíveis, capazes duma fala profética e poética modelar, como é o caso, respectivamente, de Darl e Vardaman. Uma baforada de ar do campo abre as janelas e varre os salões cosmopolitas.

Como não admirar Faulkner por ter dado ao caçula dos Bundren, Vardaman, um capítulo com uma única e curta frase que, na sua verdade poética, exprime a riqueza simbólica tanto do romance imerso na chuva quanto do caixão submerso nas águas furiosas do rio. Pensa Vardaman: "Minha mãe é um peixe". É o mesmo Vardaman que faz furos no caixão para que a mãe defunta possa respirar. Como não admirar Faulkner por ter emprestado a Cash, o mestre carapina da família, uma lógica construtiva que faria inveja a muitos arquitetos diplomados. Ele idealiza e fabrica o caixão da mãe, imaginando que ele teria de ser feito "de esguelha": "O magnetismo animal de um corpo morto faz com que a pressão funcione obliquamente, de forma que as junturas e as ligações de um caixão devem ser feitas de esguelha".

Faca de dois gumes

A ignorância no universo dos personagens faulknerianos é uma faca de dois gumes. Tanto aponta para a iluminação poética de raiz mítico-religiosa como pode ainda apontar para formas inaceitáveis de violência contra o indivíduo e a sociedade.Ao tentar salvar o caixão da mãe das águas revoltosas do rio, Cash quebra uma vez mais a perna. Não recorre a médico ou farmacêutico. Deseja acompanhar o féretro da mãe até a cidade vizinha. Custe o que custar. O pai não titubeia. Compra um saco de cimento. Mistura o pó com água. Encana a perna do filho com a mistura, sem antes untá-la com gordura. Lá vai ele montado no caixão da mãe. No dia seguinte a perna de Cash parece a de um crioulo, como diz o texto. Na profundidade do equívoco assassino do pai não está a evidência da barbárie humana. Antes a vontade de curar pelos meios que estão a bordo da navegação pobre pela vida. Na vítima filial, no seu rosto e palavras resplandece a dor sem sofrimento, tema de que será arauto entre nós o cristão Mário de Andrade. À pergunta do médico: "Está doendo?", Cash responde: "Nada que não seja suportável".