terça-feira, novembro 03, 2009

NICK HORNBY:The Polysyllabic Spree





MAIO DE 2004
TÍTULOS COMPRADOS:
* "Random Family: Love, Drugs, Trouble, and Coming of Age in the Bronx"- Adrian Nicole LeBlanc
* "What Narcissism Means to Me"- Tony Hoagland
* "David Copperfield"- Charles Dickens (duas vezes)
TÍTULOS LIDOS:
* "David Copperfield"- Charles Dickens
Qualquer pessoa que esteja fazendo uma oficina literária sabe que o segredo de um bom texto é enxugá-lo, retirar os excessos, peneirar, cortar, podar, aparar, remover tudo quanto é palavra supérflua, resumir, resumir, resumir. Em toda resenha sobre um escritor como, por exemplo, o sul-africano Coetzee, encontra-se a palavra "econômica" ou "econômico", usada de maneira elogiosa; acabei de entrar no Google, onde digitei "J. M. Coetzee + econômico" e consegui 907 resultados, com raríssimas repetições. "A linguagem econômica, porém rica, de Coetzee", "neutro no tom e econômico no estilo", "uma sucessão de sentenças refinadas e econômicas", "O grande dom de Coetzee-- e trata-se de um dom que ele nos oferece gentilmente --reside em sua bela e econômica linguagem", "linguagem econômica e poderosa", "um livro econômico e arrepiante", "paradoxalmente econômico e ao mesmo tempo ricamente escrito", "beleza econômica e dura". Sacou? Economia é uma coisa boa.
Coetzee, obviamente, é um ótimo romancista, de forma que não considero nenhum pecado ressaltar que ele não é o escritor mais engraçado que existe. Na verdade, quando paramos para analisar, vemos que pouquíssimos romances na tradição Econômica são lá muito animadores. As piadas são praticamente extirpadas, de forma que, em um processo de adequação de registro na prosa, elas são as primeiras coisas a saltarem fora. E, na peneiração, existe um lance que eu simplesmente não entendo. Por que sempre para quando o trabalho em questão foi reduzido a 60 ou 70 mil palavras? Será que esse é o tamanho mínimo para um romance publicável? Tenho certeza de que, com um pouco de esforço, daria para chegar até a 20 ou 30. Na verdade, por que parar em 20 ou 30? Por que escrever qualquer coisa? Por que não rabiscar o enredo e uns dois temas em um envelope e deixar tudo assim? A verdade é que na ficção ou na sua criação não há nada de muito utilitário, e acho que as pessoas ficam loucas para dar a impressão de que se trata de um trabalhão desgraçado, e que dão um duro danado, que é coisa de macho, pois, no fundo no fundo, trata-se de uma coisinha bem "fresca". A obsessão pela austeridade é uma tentativa de compensar, de fazer com que a literatura se pareça com um trabalho de verdade, tipo pegar na enxada ou derrubar árvores. (É também por isso que o pessoal de publicidade trabalha vinte horas por dia.) Mandem brasa, jovens escritores --desfrutem de uma piadinha ou de um advérbio! Deitem e rolem! Os leitores não vão se importar! Vocês já viram a grossura dos livros vendidos nos aeroportos? A verdade é que as pessoas curtem informações inúteis. (E, de forma contrária, os escritores dos escritores, os que podam e peneiram, tendem a depender mais da aprovação dos críticos do que dos direitos autorais para viverem.)
No mês passado, concluí a coluna dizendo que estava precisando de uma nutrição a la Dickens, e talvez isso seja porque eu venha há muito tempo chupando os ossos da redação econômica. O que teria sido de David Copperfield se Dickens tivesse feito aulas de redação? Era bem capaz de o livro ter saído com setenta personagens secundários a menos, isso sim. (Você sabia que se estima que Dickens tenha criado 13 mil personagens? Treze mil! A população de uma cidade pequena! Se você quiser falar de livros em termos de trabalho braçal "para macho", então talvez devêssemos pensar no duro que se dá para se escrever muito - livros compridos, exuberantes, cheios de energia, vida e comédia. Sinto muito se isso parece óbvio, mas não é sempre verdade que escrever duzentas páginas é mais difícil do que escrever mil páginas.) Em um ponto próximo ao início do livro, David foge e acaba tendo que vender as roupas do corpo para comprar comida. Bastaria, talvez, descrever as dificuldades físicas envolvidas; mas como se trata de Dickens, ele consegue encontrar um espacinho para um vendedor de roupas usadas, um cretino que fede a cachaça e que não para de gritar coisas como "Ai, os pulmões, o fígado!" e "Goroo!".
Como disse rei Lear --provavelmente quando convidado a Iowa para fazer uma palestra-- "Oh! não faleis sobre a necessidade". Não há necessidade: Dickens está se divertindo e estende a cena muito além de suas funções. Agora, ao ler novamente, parece ter sido concebido como uma contestação à economia, pois o cara quer a todo custo pagar pela jaqueta de David em parcelas de meia-coroa no curso de uma tarde, e assim acaba ficando por duas páginas inteiras. Será que ele poderia ter sido cortado? Com certeza! Só que chega um ponto no processo de criação literária em que o romancista --qualquer um, mesmo que seja muito bom-- tem de aceitar que o que ele está fazendo é manter um fim de um livro afastado do fim do outro, preenchendo páginas, esperando que elas emocionem, provoquem e divirtam o leitor.
Algumas observações aleatórias:
1) David Copperfield é o Hamlet de Dickens. Hamlet é uma peça cheia de frases famosas; Copperfield é um romance cheio de personagens famosos. Eu ainda não o tinha lido, em parte porque eu estava enganado, achando que eu não fosse desfrutar dos prazeres da narrativa devido à possibilidade de relembrar a série produzida pela BBC à qual fui obrigado a assistir quando pequeno. (Acabou que a única coisa de que lembrei foi a frase "Barkis está disposto", e a disposição de Barkis não é de fato o tema central do livro.) Assim, eu não fazia ideia de que encontraria tanto Uriah Heep quanto Sr. Micawber, Peggotty, Steerforth, Betsey Trotwood, Little Em'ly, Tommy Traddles e os demais. Eu tinha pensado que Dickens reservaria pelo menos uns dois desses personagens para alguns dos outros romances que eu ainda não tinha lido --As aventuras do Sr. Pickwick, digamos, ou Barnaby Rudge. Só que agora ele já deu a mancada. Pode ser um erro, como veremos.
2) Por que será que estão sempre tentando adaptar as obras de Dickens para a TV ou para o cinema? No primeiro número da Believer, Jonathan Lethem nos pediu para imaginar os personagens em Dombey and Son como animais, para sacar a essência deles, e é verdade que apenas os personagens centrais em um romance de Dickens são humanos. Há Quilp, em The Old Curiosity Shop, apavorando a mãe de Kit com "muitas chatices extraordinárias; tais como arriscar a vida pendurando-se ao lado da carruagem e encarando com os olhos arregalados... evitando-a desta forma de uma janela a outra; abaixando-se rapidamente sempre que trocavam de cavalos e enfiando a cabeça na janela com uma sombria piscadela..." E eis Uriah Heep: "Quase sem sobrancelhas, e nenhum cílio, olhos castanhos, tão desprotegidos e expostos, que lembro que fiquei imaginando como ele dormia... ombros altos e ossudos... mãos longas e delgadas... suas narinas, finas e pontudas, contraíam-se e expandiam-se de um jeito singular e muito desconfortável; pareciam que piscavam no lugar dos olhos, que quase nunca piscavam." E aí? Quem você escalaria para fazer esses dois papéis? Se os atores certos existissem, aposto como não seriam pessoas muito legais, por não terem vida social, namoradas nem possibilidades de trabalhar em qualquer outra coisa, com exceção de Copperfield 2: A vingança de Heep. E, de qualquer modo, uma vez que esses duendes infernais tirados de desenhos animados tomam forma corpórea, não faz mais sentido que existam. Aqui vai uma nota para os estúdios: uma combinação de efeitos computadorizados e ação de verdade é a única saída. É verdade que não sairia barato, e igualmente verdade que ninguém ia querer pagar para assistir. Mas se você deseja fazer justiça --e estou certo de que é isso que todos vocês, executivos de Hollywood e assinantes da Believer, querem-- então deve valer a pena tentar.
3) Em The Old Curiosity Shop, descobri que no personagem de Dick Swiveller, Dickens oferece a P. G. Wodehouse praticamente toda a sua obra. Em David Copperfield, Spenlow e Jorkins, chefes de David, parecem ser as primeiras representações ficcionais de policial bom/policial mau realizadas no mundo.
4) Já reclamei nesta coluna sobre como todos querem estragar os roteiros dos clássicos. Tudo bem, eu deveria ter lido David Copperfield antes e mereço um castigo. Só que mesmo o mais arrogante dos críticos/editoras/sei lá o quê deve presumivelmente aceitar que todos nós precisamos, em algum momento, ler um livro pela primeira vez. Sei que a única coisa que as pessoas inteligentes fazem na vida é reler grandes obras de ficção, mas não será que mesmo James Wood e Harold Bloom leram antes de reler? (Talvez não. Talvez só tenham relido mesmo, e é isso que nos separa desses sujeitos. Parabéns a eles.) Bem, logo de cara, no primeiríssimo parágrafo de sua introdução da edição da Modern Library que possuo, o grande David Gates deixa escapar algumas informações importantes de como a narrativa se desenrola (e acho que tenho o direito de ler o primeiro parágrafo, só para pegar alguns detalhes biográficos e contextuais); tentei dar uma conferida nas versões cinematográficas na Amazon, e um crítico qualquer deixou escapar mais coisas em uma resenha de três linhas. Isso não teria acontecido se eu estivesse à caça de uma adaptação de algum livro do Grisham.
5) No final do ano passado, fui premiado com uma primeira edição de David Copperfield, e tive a fantasia de que eu me sentaria numa poltrona, leria algumas páginas e sentiria o poder do grande homem penetrar-me pelas pontas dos dedos. Bem, eu tentei, mas não deu em nada. Além disso, a cópia que ganhei é bem pequena, de forma que fiquei com medo de derrubar o livro na banheira, de dar bobeira e apagar um cigarro nele etc. Na verdade, acabei lendo quatro cópias diferentes do livro. Uma velha edição da Penguin se desfez em minhas mãos, daí comprei uma edição da Modern Library para substituir. Então perdi a cópia da Modern Library, temporariamente, e comprei outra cópia baratinha da Penguin. Custou uma libra e meia! É apenas cerca de noventa dólares! (Essa foi minha tentativa de fazer uma piadinha atualizada. Nem vou me dar ao trabalho novamente.)
Depois de ler mais ou menos um terço do livro, chegou um momento em que pensei que David Copperfield pudesse se tornar meu novo romance favorito do Dickens --o que, vendo que acredito que Dickens seja o maior romancista que já existiu, significaria que eu poderia estar no meio do melhor livro que eu já tinha lido. Essa forma superlativa de pensar vai perdendo o efeito dramático à medida que a idade avança, de forma que, quando essa ficha caiu, não fiquei tão empolgado quanto você possa imaginar. Compreendi a lógica, assim como você compreende a lógica daquelas discussões antológicas que os velhos filósofos travavam para provar que Deus existe: Se Dickens = o melhor escritor do mundo e DC = seu melhor livro, logo DC = o melhor livro já escrito, sem senti-lo. Mas, no final, tinha muita coisa errada. As jovens, como sempre, são fracas. Os corpos começam a empilhar-se em uma proximidade desconfortável --há quatro mortes, se for contar com o cachorro chato de Dora, o que eu não faço, mas Dickens conta-- entre as páginas 714 e 740. E bem no momento em que você está louco para que o livro chegue a uma conclusão, Dickens adiciona um capítulo chato, sem pé nem cabeça, sobre reforma penitenciária, faltando vinte páginas para acabar o livro. (Ele é contra o confinamento na solitária. O negócio é bom demais para os caras.)
O que emparelha David Copperfield a Bleak House e Grandes esperanças, contudo, é sua natureza doce e sua modernidade surpreendente. Há uns lances metaficcionais, tipo: David cresce e se torna romancista, e o título completo do livro, segundo a biografia de Edgar Johnson (não que eu consiga achar qualquer indício disso em algum lugar), é História, experiência e observações pessoais deDavid Copperfield, o caçula dos Blunderstone Rookery, que ele nunca teve a intenção de publicar. E o lance metaficcional não acontece do nada. O último refúgio do crítico picareta é qualquer versão da seguinte sentença: "Em última análise, esse livro é sobre a própria ficção/esse filme é sobre o próprio filme." Eu mesmo já usei essa frase, na época em que escrevia críticas sobre vários livros, e posso dizer que é tudo balela: invariavelmente o negócio significa apenas que o filme ou o romance chamou a atenção para seu próprio estado ficcional, o que não nos leva a lugar nenhum, e é o motivo pelo qual o crítico nunca nos diz exatamente o que o romance tem a dizer sobre a própria ficção. (Da próxima vez que você se deparar com a frase, o que é provável de acontecer nos próximos sete dias caso você leia muitas resenhas, escreva para o crítico e peça que ele esclareça o que quer dizer.)
Bem, a profissão de David Copperfield permite que ele tenha alguns desses momentos agudos de arrependimento e nostalgia; o que não falta no livro, aliás, são recordações, e em um romance autobiográfico, a memória e a ficção se entrelaçam. Dickens utiliza esse entrelace a seu favor, e não consigo me lembrar de já ter ficado tão emocionado com um de seus romances. Outra coisa que me parece diferente em David Copperfield é a sofisticação de dois personagens e relacionamentos. Dickens não é o escritor mais sofisticado que existe, e quando ele realmente consegue atingir certa complexidade, é porque já existem várias camadas de enredos secundários, e mais e mais camadas de personagens, até que ele fica sem saída e tem de fazer alguma coisa acontecer. No entanto, há uma consciência surpreendentemente moderna da insatisfação matrimonial em Copperfield, por exemplo, um reconhecimento de falta e de um desejo não específico que associaríamos mais a Rabbit Angstrom do que a alguém que passa metade do romance enchendo a cara de ponche com Sr. Micawber. Dickens acaba retirando o estilo vitoriano do mal-estar do século XX, mas mesmo assim... Ao fazer anotações para esta coluna, acho que escrevi que "ele é de outro planeta"; David Gates pergunta na introdução: "Será que o cara era marciano?" E pensar que algumas pessoas não o estimam! Pensar que algumas pessoas o descreveram como "o pior escritor a amaldiçoar a língua inglesa"! Pois é. A decisão é sua: ou você acredita nesse povo ou fica do lado de Tolstói, Peter Ackroyd e David Gates. E do meu lado também.
Pela primeira vez desde que comecei a escrever esta coluna, a conclusão de um livro me deixou desolado: estou com saudade de todos os personagens. Ah, vamos ser sinceros: geralmente ficamos felizes da vida só de concluirmos mais um da lista, mas passei o último mês num mundo hiper-real, repleto de pessoas inesquecíveis e excêntricas, risadas (espero que você descubra que Dickens é engraçadíssimo) e histórias cheias de reviravoltas que dão vontade de acompanhar. Desconfio que será difícil ler um romance econômico, sequinho e objetivo por um tempo.

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