terça-feira, abril 14, 2009

Fim da Memória

Memória emocional
Professor em Yale, o teólogo Miroslav Volf fala de seu novo livro e diz que o esquecimento também é necessário para superar o mal
A memória de males sofridos confere energia e legitimação ao conflito
CAIO LIUDVIKCOLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Um dos mais influentes nomes da teologia contemporânea, o croata Miroslav Volf fala, na entrevista abaixo, sobre seu livro "O Fim da Memória". Com rico repertório filosófico, literário e religioso, o livro é pontuado por lembranças autobiográficas. O hoje professor da Universidade Yale (EUA) evoca os longos interrogatórios a que foi submetido -sob o comando de um oficial de segurança que ele chama de "Capitão G."- durante o serviço militar obrigatório que prestou em 1984, na então Iugoslávia comunista. E é justamente a partir das angústias e sequelas da experiência de perseguido político que Volf investiga os meandros da "memória da maldade sofrida por alguém que não deseja nem odiar nem ignorar, mas sim amar o malfeitor".

FOLHA - Seria realista ou mesmo "humano" dizer a um pai que ele deve perdoar e amar os assassinos de sua filha? O sr. perdoou realmente o capitão G.?
MIROSLAV VOLF - Sim, perdoei o capitão G., mas o perdão não é simplesmente algo que se faz de uma só vez. Ele acontece quando nos movemos em espiral, por assim dizer, em volta da memória do fato que nos feriu. Perdoamos parte do que aconteceu, mas não o todo; perdoamos, e então retiramos nosso perdão em momentos de ira, e assim por diante. O perdoar é sempre um processo, e frequentemente um processo marcado por reveses inesperados. Não, nunca devemos dizer a um pai que ele "deve" perdoar nem pedir para outros para perdoar (embora seja verdade que "deveríamos" perdoar). O perdão é uma dádiva, e, se é dado, é dado livremente.

FOLHA - Por que existe, em suas palavras, esta "obsessão" do mundo contemporâneo pelA recordação? O 11 de Setembro é um exemplo nesse sentido?VOLF - Hoje construímos e interpretamos nossa identidade em termos narrativos: somos aquilo que nos aconteceu, o que fizemos, o que outros fizeram a nós, como reagimos ao que outros fizeram a nós etc. Se isso é o que somos, então a memória é essencial. A memória, nesse caso, é nossa identidade; se você perde sua memória, perde seu eu. Quanto maior é o impacto que um ato tem sobre uma pessoa, mais é significativo para nós nos lembrarmos dele. É por isso que juramos nunca esquecer acontecimentos como o 11 de Setembro. Entretanto frequentemente fazemos mau uso dela. A memória do 11 de Setembro, especialmente da maneira como foi manipulada e empregada pela administração George W. Bush, é um caso quase emblemático de quão danosa ela pode ser. Cada conflito -quer aconteça numa sala de jantar ou num gabinete do governo- é movido pela memória. A memória de males sofridos confere energia e legitimação ao conflito. Ao mesmo tempo em que nos asseguramos de não nos expor à violência de outros, podemos fazer da memória dos sofrimentos que nos foram impostos pontes que nos unem aos outros e fontes de motivação para consertar o mundo.
FOLHA - O mundo contemporâneo é marcado por muitas formas de violência e traumas, além da proliferação de terapias para lidar com elas. Em sua opinião, sem um contexto religioso de interpretação desses males, essas terapias tendem a fracassar?
VOLF - Embora algumas terapias sejam contraproducentes, muitas são úteis -dentro de seus limites. Mas frequentemente elas não vão suficientemente longe. Por exemplo, elas frequentemente tratam apenas dos indivíduos, tentando ajudá-los a enfrentar as feridas que sofreram. Mas precisamos consertar também os relacionamentos, mesmo os relacionamentos que nos feriram. E nós mesmos não vamos nos curar a contento se nossos relacionamentos não forem consertados.
FOLHA - Como essa perspectiva teológica sobre o esquecer e o perdoar aqueles que cometem o mal influencia o conceito e a prática da lei e da justiça na sociedade secular?
VOLF - O perdão é o oposto da retaliação, mas não é oposto do castigo. Pode-se punir por outras razões que não apenas a de cobrar o castigo para compensar pelo mal feito. Uma pessoa pode ser perdoada e ainda assim cumprir pena! E uma coisa muito importante: o perdão não é o oposto da justiça. Perdoar significa afirmar o que exige a justiça, porque é afirmar que um malfeito aconteceu e que é um malfeito. É claro que perdoar também significa não nutrir ressentimento pelo malfeitor devido ao malfeito dele.
FOLHA - De que modo "A Divina Comédia" de Dante ilustra o conceito cristão de memória?
VOLF - Como muitos grandes escritores espirituais e teólogos ao longo da história, Dante tinha consciência de que, por estranho isso possa nos parecer, a memória do mal representa uma espécie de triunfo do mal. Se o mal for eternamente recordado, ele continuará a viver eternamente. É por isso que Dante escreve que na entrada do mundo que está por vir -na entrada do paraíso- passaremos por dois rios, o rio do esquecimento dos malfeitos e o rio da recordação das boas ações.

FOLHA - Soa estranho ver Freud mobilizado como defensor de algum "esquecimento" de sofrimentos passados. O sr. poderia explicar esse ponto?
VOLF - Estou usando uma observação simples, mas importante feita por Freud e também por muitos outros (mas o que é significativo é que Freud, cujo trabalho inteiro girou em torno de memórias reprimidas, não a repudiou). A observação é a seguinte: a memória se mantém viva pela energia emocional. Quando essa energia emocional deixa de existir, a memória vai pouco a pouco desaparecendo. Isso é compreensível, porque sempre fazemos algo com as memórias (sempre nos lembramos "para quê" -por exemplo, para que possamos encontrar nossas chaves, para que saibamos como chegar a um lugar, para que possamos evitar o perigo etc.), e, quando perdemos a razão para fazer o que precisamos fazer com as memórias, as memórias podem perder força e desaparecer. Isso está estreitamente vinculado ao que quero demonstrar quando digo que a não-recordação coroa o perdão. Depois de termos perdoado, depois de o relacionamento ter sido consertado, as memórias dos males que nos foram feitos perdem combustível emocional, porque não funcionam mais, e podem desaparecer.
Tradução de Clara Allain.

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