O livro é composto de cinco romances - A primeira história narra a saga de quatro críticos europeus em busca de Benno von Archimboldi, um escritor alemão recluso do qual não se conhecem fotos. Na segunda, há a agonia de um professor mexicano às voltas com seus problemas existenciais. O terceiro romance conta a história de um jornalista esportivo que acaba se envolvendo com crimes cometidos contra mulheres da cidade de Santa Teresa, no México. Na quarta parte do livro, os crimes de Santa Teresa são narrados com o distanciamento próprio da linguagem jornalística das páginas policiais. E, na quinta história o leitor é conduzido de volta à Segunda Guerra, tornando-se testemunha do passado misterioso de Benno von Archimboldi. A parte dos críticos - Quatro intelectuais e críticos literários: um francês, um espanhol, um italiano e uma inglesa, especialistas em literatura alemã contemporânea, mais especificamente obcecados pelo misterioso e fictício autor Benno von Archimboldi, um escritor alemão recluso do qual não se conhecem fotos ou dados biográficos, resolvem seguir uma pista que os leva até a cidade de Santa Teresa, no México (ficcionalização de Ciudad Juárez). Na violenta cidade mexicana, entram em contato com uma realidade local bem diferente da que estavam acostumados em suas respectivas capitais européias e as relações entre eles são influenciadas pelo novo ambiente. O tema dos assassinatos é apenas introduzido de passagem neste capítulo.
A parte de Amalfitano - Este capítulo, o mais curto do livro, é dedicado aos problemas existenciais do melancólico professor de filosofia Oscar Amalfitano que relembra a sua relação na Espanha com a ex-mulher Lola que o abandonou por um poeta. Amalfitano sofre o início de um processo de loucura quando começa a escutar vozes e agir estranhamente. Ele teme pela segurança de sua filha Rosa devido aos assassinatos em Santa Teresa.
Em primeiro lugar, a interessante representação da loucura. Em uma prosa poética que não chega a constituir um exemplo de realismo fantástico, vemos um professor universitário questionando-se sobre seu estado mental. Os sonhos estranhos, a paranoia relativa à segurança de sua filha, as vozes que ninguém mais ouve, o Testamento geométrico que ele usa numa experiência à Duchamp, a degradação do corpo em um ambiente estranho – a água do lugar, que provoca o amarelecimento dos dentes, lembrou-me deAreia nos dentes, de Antônio Xerxenesky, lido no mesmo período desta parte –, tudo corrobora o clima de insanidade.O ambiente mexicano modifica as vidas de outros personagens, à maneira da de Amalfitano: há os que passam a ter sonhos bizarros, os que mudam de pensamento e os que se dão conta de uma realidade totalmente diferente da que tinham presenciado. Mais uma característica que permeia toda a obra.
Finalmente, a segunda coisa à qual me referi. Lá pelo final dessa parte, Amalfitano divaga sobre a literatura, por causa de um farmacêutico que lhe confidencia seus gostos literários: Escolhia A metamorfose em vez de O processo, escolhia Bartleby em vez de Moby Dick, escolhia Um coração simplesem vez de Bouvard e Pecúchet, e Um conto de Natal em vez de Um conto de duas cidades ou As aventuras do sr. Pickwick. Que triste paradoxo, pensou Amalfitano. Nem mais os farmacêuticos ilustrados se atrevem a grandes obras, imperfeitas, torrenciais, as que abrem caminhos no desconhecido. Escolhem os exercícios perfeitos dos grandes mestres. Ou o que dá na mesma: querem ver os grandes mestres em sessões de treino de esgrima, mas não querem saber dos combates de verdade, nos quais os grandes mestres lutam contra aquilo, esse aquilo que atemoriza a todos nós, esse aquilo que acovarda e põe na defensiva, e há sangue e ferimentos mortais e fetidez. (p.225)
No momento da leitura desse trecho, não conseguia parar de pensar em como estava gostando de ler um livro tão longo e bem escrito, em como tinha agido como o farmacêutico ultimamente e em como deveria dar mais chances a diversos “combates de verdade” clássicos, como Um conto de duas cidades – que comprei há anos. EnfimA parte de Fate - O repórter negro americano Oscar Fate, após o falecimento de sua mãe, vem cobrir uma luta de boxe em Santa Teresa e acaba se envolvendo com o narcotráfico local, em um clima de literatura noire tendo um caso com Rosa. Bolaño, como em todos os capítulos, costura narrativas secundárias que podem se conclusivas ou não, histórias se desdobrando em outras histórias.Só depois de algum tempo n’A parte de Fate é que me dei conta que estava diante de um “Fêite” (destino, em inglês), não um “Fáte”: um jornalista cultural, cuja mãe acabou de morrer – sua reação à morte dela me lembrou d’O estrangeiro, de Camus –, enviado ao México para cobrir uma luta de boxe, pois o jornalista especializado na área estava morto. Como sempre, um resumo sem muitos detalhes.
Assim como demorei pra sacar a provável pronúncia do nome do cara, só depois de algum tempo percebi que ele era negro. Ele chega a se questionar em um momento a razão de ter dito que era “americano” a uma vendedora de cachorro quente, e não “afro-americano” – se ele não estava nos Estados Unidos, ele passava a ser outra pessoa? A parte de Fate, ao partir do ponto de vista do estadunidense – politicamente correto pro que todo mundo chama de americano – abre espaço pra uma série de questões sobre a alteridade. A relação entre negros e brancos, entre mexicanos e americanos, ou entre mexicanos de diferentes classes sociais, tudo passa em algum momento pela cabeça de Fate. E o confronto entre os boxeadores Count Pickett e Lino (“El Merolino”) Fernández é apenas uma das peças duma metáfora maior.
Outro detalhe que esperei este momento para comentar é um complemento à comparação que fiz anteriormente com Lost, Monster e A história sem fim. Quem já viu Lost, por exemplo, sabe que há diversas cenas em que vemos um personagem conversando com outro, oculto na cena e cuja voz ouvimos antes de finalmente vermos o rosto e sermos surpreendidos com uma faceta nova do caráter de alguém que achávamos que conhecíamos. Complicado demais? Concordo. Outro exemplo: duas pessoas, que só se conheceram na ilha, já tinham se esbarrado anos antes e não lembravam. Tá, o exemplo foi bobo demais.
Essas estranhas coincidências e conexões entre personagens também estão presentes em 2666 e, de vez em quando, ocorrem da mesma maneira com que descrevi Lost: às vezes uma característica mínima denuncia que estamos lendo sobre um personagem que já conhecemos: físico, pensamento, atitudes ou voz. Voz? Sim, voz. Mesmo com tantas pessoas habitando as 848 páginas, Bolaño escreveu um 2666repleto de individualidades críveis: tem muito escritor por aí com 15 personagens que são exatamente os mesmos. Se isso já é difícil de fazer, imagina criar uma teia de conexões entre eles que não soe forçada?
N’A parte de Fate, por exemplo, Rosa Amalfitano, filha do protagonista da segunda parte, não só aparece, como se torna essencial para o avanço da trama de Fate no México. Vários outros personagens se cruzam, têm breves encontros, cada um deles imerso em si e sem ideia de seu papel no grande panorama que se forma. Igual a tudo na vida.
A parte dos crimes - É o capítulo mais violento do livro, com descrições dos cadáveres de mulheres violentadas que são abandonados nos enormes terrenos baldios e lixões clandestinos próximos às inúmeras fábricas maquiladoras da região. Chama a atenção o nome do maior desses lixões:El Chile, homenagem estranha ao país natal do autor. As investigações não conseguem ser conclusivas.A parte dos crimes
Na primeira parte, a situação não passa de um ruído no televisor ligado, em que ninguém presta atenção; na segunda, é motivo de preocupação para um pai, que não consegue discernir direito se o que ocorre é um fato externo ou mais um sintoma de sua sanidade mental questionável; na terceira, isso incomoda um jornalista de tal forma que ele chega a pensar em investigar o assunto, só para descobrir que os seus editores não querem a pauta por não ser sobre negros, nem sobre americanos.
Mais de duzentas mulheres foram mortas violentamente, a maioria depois de estuprada, em Santa Tereza. Alguns suspeitos foram presos, mas os crimes continuam ocorrendo.
Esta é a parte mais esquemática e jornalística do romance. Após a descrição dos corpos encontrados, com vocabulário médico legal, pouco dá pra saber das vidas das vítimas. A maior parte trabalhava nas diversas maquiladoras, fábricas que utilizam mão-de-obra barata e que tornam a taxa de desemprego da cidade uma das menores do país. Muitas são jovens, entre 18 e 30 anos, mas crianças com pouco mais de 10 anos também entram nas estatísticas. Em geral, são encontradas com as roupas como que intocadas, como se o(s) estuprador(es) e assassino(s) calmamente as houvesse despido e vestido novamente.
Como disse Fernanda Takai, “a gente se acostuma com tudo”. Com parágrafos técnicos sobre os laudos intercalados com outros que dão continuidade à trama, acabamos em situação semelhante à de um dos policiais encarregados do caso do serial killer: (…) e então Juan de Dios Martínez deixava a xícara de café em cima da mesa, cobria a cabeça com as mãos e de seus lábios escapava um ulular tênue e preciso, como se chorasse ou lutasse para chorar, mas quando finalmente retirava as mãos apareciam, iluminada pela tela da tevê, suas fuças de sempre, sua pele infecunda e seca de sempre, sem o mais ínfimo rastro de uma lágrima. (p. 511)
Quem me conhece sabe que eu não sou nada fã de arte engajada: não funciona comigo, fico com os dois pés atrás; panfleto eu guardo no bolso até chegar próximo de uma lixeira, pra não jogar na rua. A questão é que o livro conta tão bem suas histórias que não tem como não pensar em desigualdades e no descaso dos mais ricos com a situação dos mais necessitados. A situação de Fate e o editor de sua revista é uma das menores metáforas para a situação do México na América do Norte, por exemplo. Há também posicionamentos políticos dos personagens, características muito próprias de cada um, mas nada que tenha me parecido doutrinário, o que me causou alguma admiração.
A parte de Archimboldi - Neste capítulo final, o mais perfeito do ponto de vista literário no meu entendimento, o mistério sobre a biografia de Benno von Archimboldi é desvendado e Bolaño, com a sua cultura invejável, nos leva a uma convincente história que tem início no front oriental da Segunda Guerra até revelar os motivos que levam Archimboldi a Santa Teresa.
A parte de Archimboldi
Limito-me a dizer que praticamente tudo que os críticos queriam saber sobre seu escritor alemão favorito está nesta parte. De 1920 até os dias atuais, o panorama é o maior dentre as cinco partes do romance. Belíssimo, violento, poético, criador de novos sentidos e de novas lacunas e pontas soltas, o pedaço final reservado à Archimboldi potencializa o que a obra já tinha apontado.
Li em um mês e duas semanas, mas, além de ter alternado com outras leituras, admito que fiz uma pausa de cerca de duas semanas na metade d’A parte dos crimes, por causa da Bienal do Livro, principalmente. Apesar de longo, o livro tem uma linguagem gostosa de ler e merece ter um tempo reservado só pra ele. Não recomendaria que a leitura se estendesse por muito tempo: há interessantes temas que são retomados, conexões sutis que são feitas e que se notam mais facilmente quando se está devorando o livro.
Podia citar algumas dezenas de coisas que a leitura de 2666 me provocou, mas 1) só vou lembrar quando tiver postado no blog; e 2) já estou escrevendo esse post há quase 10 dias, tentando editar mentalmente o que escrever. Resumindo tudo, diria que a obra me fez quebrar uma série de preconceitos, que já vinham sendo quebrado aos poucos – só não digo como, a respeito da cultura latino-americana e a língua espanhola. Preconceitos relacionados a outros, mais brasileiros, e que durante muito tempo me impediram de ser uma pessoa melhor.
Elipse? Mais uma influência do Bolaño.
TRECHOS
Besides Archimboldi, there was one thing Morini, Pelletier, and Espinoza had in common. All three had iron wills. Actually, they had one other thing in common, but we'll get to that later.
My friend (if I may still call him that) believed in humanity, and so he also believed in order, in the order of painting and the order of words, since words are what we paint with.
go to work for an American university, where the literature departments are just as bad as in Mexico, but that doesn't mean they won't get a late-night call from someone speaking in the name of the state, someone who offers them a better job, better pay, something the intellectual thinks he deserves, and intellectuals always think they deserve better.
POR GABRIEL INNOCENTINI EM 05/09/2010 ÀS 05:15 PM
Anotações sobre ‘2666’
publicado em livros
Se me pedissem um resumo de “2666”, com suas 852 páginas, eu responderia citando Carlos Fate: “2666” é sobre “a variedade interminável de formas com que destroçamos a nós mesmos”. Ou ainda: “Um retrato do mundo industrial do Terceiro Mundo, um ‘aide-mémoire’ da situação atual do México, uma panorâmica da fronteira, uma narrativa policial de primeira magnitude, porra”. É um resumo bastante incompleto, por isso aponto abaixo alguns aspectos do livro de Roberto Bolaño — acredite no hype! — que se relacionam às falas de Fate.
Das cinco partes de que é composto, “2666” vale por três. A primeira, cerca de 160 páginas alucinantes sobre quatro acadêmicos que estudam Benno von Archimboldi, a figura-chave do romance monumental. A quarta, sobre a centena de assassinatos das mulheres em Santa Teresa, versão fictícia de Ciudad Juarez — em que pese algumas partes chatas e dispersas. E finalmente a quinta parte, que amarra algumas, não todas, pontas do livro.
Bolaño tem um poder narrativo excepcional e uma capacidade espantosa para a criação de personagens. De certo modo, é como se ele dispusesse de um orçamento infinito para ter à sua disposição os melhores atores da história do cinema, sendo que a maioria deles faz apenas pequenas participações.
O autor de “2666” põe em cena uma ampla galeria de personagens para abandoná-los depois sem necessidade de explicá-los ou retomá-los. É mais ou menos como se Greta Garbo fosse contratada apenas para aparecer tomando um drinque como figurante enquanto Johnny Deep diz uma fala enigmática e desaparece para sempre. De um parágrafo para outro, o foco da narrativa muda, sem garantias de que voltará ao ponto de onde foi cortado de modo brusco.
Esse processo não é novo na obra de Bolaño. Remete, de imediato, para a segunda parte de “Os Detetives Selvagens”, na qual dezenas e dezenas de personagens contam sua ligação com Arturo Belano e Ulisses Lima.
Em “2666”, mais do que em “Detetives Selvagens”, Bolaño abre a narrativa para um sem-número de possibilidades: novos personagens, novas histórias. Assim como a vida, muitas delas não têm explicação, o que pode soar misterioso para alguns, ou simplesmente frouxo para outros.
A ideia de que “nada fica para trás” é central em “2666”, mesmo que o passado não explique o presente, mesmo que a busca seja fracassada ao final. Assim, o papel do escritor se identifica com o de um indagador: “Fazer-se essa pergunta, uma pergunta que não pensava responder de nenhuma maneira, já o deixou feliz, o encheu de uma felicidade que de certo modo o justificava como pessoa e como escritor”.
O papel do leitor, óbvio, é refletir sobre as indagações perpetradas pelo escritor: “é sempre preciso fazer perguntas, e é sempre preciso se perguntar o porquê das nossas próprias perguntas. Sabe por quê? Porque nossas perguntas, ao primeiro descuido, nos dirigem para lugares aos quais não queremos ir. Consegue enxergar o miolo do assunto, Harry? Nossas perguntas são, por definição, suspeitas. Mas necessitamos fazê-las. E isso é o mais foda de tudo. A vida é assim, disse Harry Magaña”.
Roberto Bolaño também discute o papel da escrita e da leitura, reforçando as ideias acima: “A leitura é prazer e alegria de estar vivo ou tristeza de estar vivo, e sobretudo é conhecimento de perguntas. A escrita, em compensação, costuma ser vazio. Nas entranhas do homem que escreve não há nada”.
Numa conversa entre Ingeborg e Reiter, a moça se refere ao fato de as estrelas estarem mortas e continuarem brilhando para nós. A resposta de Reiter é um dos mais belos elogios jamais feitos aos livros: “Um livro velho também é o passado, um livro escrito e publicado em 1789 é o passado, seu autor já não existe, tampouco existe seu impressor nem seus primeiros leitores nem a época em que o livro foi escrito, mas o livro, a primeira edição desse livro, ainda está aqui”.
Um dos temas fundamentais de “2666” é a oposição entre aparência e realidade. Essa discussão ocorre em todas as partes do livro, envolvendo prostitutas, acadêmicos, discos mágicos de brinquedo, letras de bolero, escritores russos, etc. Na quinta parte, depois de contar uma parábola envolvendo essa oposição, agora aprofundada em desejo x realidade, um personagem finca a bandeira ética do romance: “Não se trata de acreditar (na parábola) — disse Ansky, trata-se de compreender e depois de mudar”.
No meio do livro, um personagem faz uma defesa dos chamados tijolos, os livros enormes. No Brasil, Paulo Roberto Pires, editor da Planeta e da Ediouro, afirmou em seu blog que não lê mais tijolões. Num tempo em que a leitura é cada vez mais rara, em que predominam os microcontos, ler um catatau é uma tarefa para poucos mesmo.
A decisão do editor de “2666”, Ignacio Echevarría, de publicar a obra em volume único se revelou acertada no final das contas. Mas a extensão do livro, repita-se: 860 páginas, muitas vezes é prejudicada por certo gosto de Bolaño em ‘retardar’ a narração, divertindo-se em fatos supérfluos, dispensáveis, que cansam o leitor e pouco sentido conferem à narrativa.
Se fossemos nos basear numa das propostas de Italo Calvino para a literatura deste milênio — a velocidade — Bolaño não passaria no teste. “Nos tempos cada vez mais congestionados que nos esperam, a necessidade da literatura deverá focalizar-se na máxima concentração da poesia e do pensamento”, defende Calvino. O que prova que não há um caminho único a trilhar quando se fala em arte.
Quanto ao estilo, Roberto Bolaño gosta de ‘inchar’ o texto, muitas vezes repetindo a palavra quase até o esgotamento ou reiterando a mesma ideia com palavras diferentes, num processo que, na falta de expressão melhor, poderíamos chamar de ‘enumeração tripla’. Um exemplo tirado ao acaso: “chegou a se perguntar seriamente se aquela gente não estava lhe pedindo nas entrelinhas que caísse fora, que parasse de enchê-los, que não voltasse mais”.
Esse inchaço do texto se manifesta em todos os níveis: seja na própria frase; seja nos capítulos; seja nos acontecimentos — é um ritmo de suspense, lento, que vai num crescendo. A informação principal é retardada ao máximo (“as palavras costumavam se exercitar mais na arte de esconder do que na arte de desvelar”, defende um personagem na Parte de Fate). O próprio processo de repetir as palavras como se buscasse se aproximar do objeto, de rodear a coisa na tentativa de fixá-la.
Aqui, entramos no território da ‘coincidência’. Como é óbvio, em algum momento, espera-se que todas as partes do livro se combinem, se iluminem, se respondam. Um personagem que enlouqueceu defende a seguinte ideia: “Meu amigo acreditava na humanidade, portanto acreditava na ordem, na ordem da pintura, na ordem das palavras (...). A coincidência, pelo contrário, é a liberdade total a que estamos expostos por nossa própria natureza. A coincidência não obedece a lei, e se as obedece nós as desconhecemos. A coincidência, se me permite a comparação, é como Deus que se manifesta a cada segundo em nosso planeta. Um Deus incompreensível com gestos incompreensíveis dirigidos a suas criaturas incompreensíveis. Nesse furacão, nessa implosão óssea, se realiza a comunhão. A comunhão da coincidência com seus rastros e a comunhão de seus rastros com os nossos”. O que volta ao ponto já discutido: o de que a vida não tem explicação, de que o quebra-cabeça nem sempre se encaixa, de que algumas coisas não têm resposta, apenas acontecem.
Notar também as apresentações dos personagens. Em uma frase Bolaño é capaz de resumi-los, sem gastar tempo e sempre de uma maneira original. O inchaço do texto como contraponto à economia de descrições e apresentações.
Os nomes também são um capítulo à parte. A escolha não parece ser gratuita. Lalo Cura, que já havia participado de um conto em “Putas Assassinas” chamado “Prefiguração de Lalo Cura”, é o mais são e racional dos policiais que investigam os assassinatos em Cidade de Juárez.
A aproximação entre cultura e barbárie. Dito de outra forma, o fato de que a cultura não é garantia de civilização, ou antes: o fato de que a violência é parte da civilização, de que pessoas cultas não estão imunes à prática da violência. Uma cena, em especial, reforça tal ideia — quando dois acadêmicos, a representação da cultura, da tolerância, da ciência ‘par excellence’, agridem um taxista por um motivo estúpido. Daqui, sai uma frase instigante sobre a violência: “Uma mistura de sonho e desejo sexual”. Convém, também, não esquecer a epígrafe, uma citação de Baudelaire: “Um oásis de horror no meio de um deserto de tédio”. Sempre a violência, sempre a cultura.
Não é de estranhar, portanto, a aproximação entre os crimes ocorridos no México e a Segunda Guerra Mundial, com os campos de concentração nazistas. Os leitores brasileiros ficam à espera da tradução de “La Literatura Nazi em America” para aprofundar tal relação.
Bolaño parece trabalhar com a ideia de que a literatura não tem nenhum valor, nenhum poder, diante da barbárie e da violência. Sua obra, no entanto, é o grande contra-argumento sobre o assunto: ao afirmar essa desimportância da palavra em face da violência do mundo, a própria palavra termina por ser uma afirmação dela mesma como arte, visto a excelência de Bolaño como escritor. Se o mundo é um lugar inabitável, somente na leitura do romance o leitor pode sentir-se integrado ao mundo novamente.
Para encerrar, um pensamento de Amalfitano que também é um resumo de tudo que Bolaño se propôs a fazer em “2666”: “Transformava um bárbaro relato de injustiças e abusos, um ulular incoerente sem princípio nem fim, numa história bem estruturada onde sempre cabia a possibilidade de suicidar-se. Transformava a fuga em liberdade, inclusive se a liberdade só servisse para continuar fugindo. Transformava o caos em ordem, mesmo que a preço do que comumente se conhece como sensatez”.
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