Pensar em teologia, sem passar pelo pensamento, ou por aquilo que se pensa que é Kierkegaard é um paradoxo hoje. Ricardo Quadros Gouveia oferece neste livro um trabalho magistral de introdução a obra kieerkegaardiana, busca um pensador além dos seus rótulos e usos. Sobre Marx, diz-se que os marxitas eram mais marxistas que o próprio Marx, sobre o filósofo dinamarquês a sentença também é verdade.
Kierkegaard, que nunca foi ordenado, e que dizia que seus sermões eram discursos:
"...discursos, não sermões, porque o amor não tem a autoridade para pregar, discursos edificantes, não discursos para a edificação, porque o orador não alega de modo algum ser um professor... Ele também disse, minha tarefa é uludir as pesoas- dentro do sentido de verdade- para o compromisso religioso, que eles lançaram fora, mas eu não tenho autoridade, emlugar de autoridade eu uso o oposto, eu digo, a tarefa toda é para minha própria disciplina e educação. Isto novamente é um modo genuinamente socrático. Exatamente como ele era o ignorante, assim aqui, em vez de ser o professor, sou eu o que deve ser educado" p.22
Sobre si mesmo, Kierkegaard fez a seguinte profecia:
"As condições estão longe de serem confusas o suficiente para que se faça uso correto de mim. Mas isto tudo terminará, como eles verão, com as condições tornando-se tão desesperadas que eles terão que fazer uso de pessoas desesperadas como eu e meus semelhantes" p. 30
"Kierkegaard é um homem cuja vida do início ao fim desconhece tudo que é chamado deleite...iniciado no que e chamado sofrimento...um homem que na pobreza testemunha a verdade- na pobreza, na humildade, no rebaixamento, e assim não é apreciado, é desprezado e então ridicularizado, insultado, zombado,..um homem que é escorraçado, maltratado, arrastado de uma prisão para outra.... então por fim crucificado, ou decapitado, ou queimado, ou calcinado sobre uma grade, seu corpo sem vida jogado pelo carrasco num lugar ermo... ou queimado até as cinzas e jogado aos quatro ventos, para que qualquer traço do impuro seja obliterado" p. 54
Sobre a semelhança entre Barth e Kierkegaard, Ricardo Quadros Gouveia diz:
" Tanto Kierkegaard quanto Barth tentaram antepor uma theologia crucis contra a predominância de uma theologia gloriae. Outros importantes pontos em comum são o desvelamento da auto-revelação de Deus, uma ênfase na humilhação de Cristo e na possibilidade de Cristo e na possibilidade da ofensa -ainda que Barth estenda e modifique o uso da idéia de Kierkegaard, dizendo que todas as pessoas ofendem-se com Cristo e não apenas os incrédulos, e dizendo que esta ofensa é experimentada também pela própria igreja-" (p.79)
"a renúncia de Barth de tudo que fosse humano, incluindo a assim chamada humanidade renascida, é muito mais radical do que foi a de Soreen Kierkegaard. Isto, por sua vez, significa que a tendência para o ascetismo que aparece gradualmente em Soreen Kierkegaard nunca encontrou eco na mente de Barth... Hans Urs von Balthasar... mostra as atitudes completamente diferentes dos dois teologos em relação a Mozart ... Nos anos 1921, ele Barth podia imprecar contra nossa existência esquecida por Deus em termos tão violentos que não é díficil entender por que ele pode ser acusado de Marcionismo. Mas precisamente a abrangente violência de duas expressões impedem qualquer tendência a escapar para um tipo de ascetismo. Na prática, o NÃO, totalmente radical tornou-se um SIM. O ponteiro do mostrador da negação girou 360 graus - e parou no ponto de partida. (,,,) Na teologia de Hegel há apenas um movimento abstrato de lógica, mas não há necessidade de uma ação ou decisão do indivíduo ou de Deus para reestabelecer um elo, uma relação rompida pelo pecado. Para Kierkegaard, nossa relação para com Deus requer ação divina como ação humana"p. 85
Para o autor seria exagero dizer que o dinamarques foi precurssor de Barth, como também a afirmação de uma paternidade em relação ao existencialismo, que para o autor seria mais o resultado de uma má leitura do texto de Kierkegaard.
A nova leitura de Kierkegaard como autor cristão, parte de Gowens, que lê um desenvolvimento religioso em três estágios, primeiro, há fé, que é uma feliz paixão, depois, a esperança, que está relacionada ao sofrimento, e por último, o amor, significaria imitar a Cristo em obras que são frutos de gratidão.
No capítulo 7, Ricardo Quadros Gouveia entra no caráter essencial da obra kierkegaardiana do ponto de vista cristã, um corretivo. Para o autor, muitos cristãos de todas as denominações não têm idéia do que seja o cristianismo, pois a verdadeira resolução e transformação interna raramente é conhecida. Estes precisam ouvir Kierkegaard (p. 122)
Sobre o liberalismo teológico:
"É uma cosmovisão, uma Weltanschauung para a qual uma igreja se move na qual se funde sem perceber, quando ela se rende às tendências culturais de seu tempo (no caso concreto de nosso tempo a mercadologia da sociedade de consumo) e mancha o evangelho com comprometimentos que, ao contrário do que se imagina,. tem mais a haver com orgulho e interesses pessoais (e nacionais) do que com teorias teológicas, filosóficas e científicas" (p.122)
Para Kierkegaard, os dogmas não o problema da igreja, os cristãos é que são. Ele dizia que "A doutrina na Igreja estabelecida e sua organização são muito boas. Mas as vidas, as nossas vidas - acredite-me, estas é que são mediocres" p. 126
A grande questão era saber da existencialidade do tornar-se cristão, esclarecer o que está envolvido em ser um cristão. Para ele, não é posse garantida de ninguém ser cristão, pois não se é cristão por ter nascido em um país cristão, ou numa família cristã. Nem por ter sido batizado, ou confessado sua fé alguma vez. O crente não pode se colocar frente a sua fé como mero expectador, deve estar dinamicamente ativo em sua fé, participante da edificação pessoal e espiritual, autor de obras de amor com um empenho nascido da gratidão.
"Sob uma ótica cristã, a ênfase não é sobre a que ponto ou quão longe uma pessoa chegou para alcançar ou preencher os requisitos, se ele realmente se empenha... de modo q1ue ele aprenda mesmo a ser humilhado e a confiar na graça. Reduzir os requisitos de forma a estar apto a melhor preenche-los ...a isto o cristianismo em sua mais profunda essência se opõe. Não... humilhação infinita e graça, e então um empenho nascido da gratidão - isto é cristianismo" p. 130
A Fé em Kierkegaard
"Parece-me que a fé é também o conceito teológico em referência ao qual a teologia cristã se sustenta ou cai. Portanto, sob uma ótica cristã. só há uma única fé que pode ser depositada em Deus ou idolatricamente e rebeldemente em algo que não é Deus. A fé é sempre e unicamente um posicionamento em relação ao Criador e nunca, como sugerem alguns compêndios de teologia, uma realidade psicológica ou antropológica pré-religiosa ou pré-confessional" p. 147
A fé tem uma concepção relacional, de fidelidade ou lealdade a uma pessoa, como relação pessoal direta. Significa um ato pessoal e subjetivo de acreditar - fides qua creditur. Também designa a religião cristã, fides quae creditur.
"No cristianismo, a fé envolve não apenas entendimento doutrinal - notitia-, confiança ou confidência (fiducia) e submissão obediente (assensus),mas também outras noções paralelas como crença (credulitatis), fidelidade (fidelitas), esperança (spes), e firme convicção (persuasio), todas as quais têm seu lugar sob a palavra valise fé" p. 148
A fé não é somente sobre Cristo, ou meramente em direção a Cristo, mas em Cristo. É uma atividade que vive de Cristo, do saber de Cristo e querer Cristo, uma vida de união com Cristo. Não é algo que acontece num evento isolado da vida, mas uma ação contínua, que representa um modo de ser no mundo. Seria a alegre e consensual afirmação da mente, coração e vontade à verdade daquilo que não visto empiricamente, que é a auto-revelação de Deus. Seria uma visão espiritual, a contemplação do invisível. Sendo um presente de Deus, enquanto é totalmente desejada pela vontade humana. "A tensão desta dialética entre receptividade e atividade é vista na prece "Senhor, ajuda-me na minha falta de fé - Mc. 9,24-e repetidamente aparece nas epístolas paulinas, cf. Cl 2,6 Fp. 3, 7-9" (p 151).
A justificação pela fé, tendo em vista, a fé como recepção da graça, pode levar a um engano já que sugere que a nossa fé salva, e não a graça de Deus. a salvação depende da fé dada pela graça, e não da absoluta claridade das definições da fé.
A fé e subjetividade.
"O caminho da reflexão objetiva torna o indíviduo subjetivo em algo acidental e com isto torna a existência em algo diferente, desvanescente. O caminho para a verdade objetiva afasta-se do sujeito, e enquanto o sujeito e a subjetividade se tornam indiferentes, a verdade também
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