Mas existem outras tantas histórias que levam o herói para uma jornada interior, uma jornada da mente, do coração ou do espírito. Em qualquer boa história, o herói cresce e se transforma, fazendo uma jornada de um modo de ser para outro: do desespero à esperança, da fraqueza à força, da tolice à sabedoria, do amor ao ódio, e vice-versa. Essas jornadas emocionais é que agarram uma platéia e fazem com que valha a pena acompanhar uma história. p. 33
Estágios da Jornada do Herói
1. Mundo Comum
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A maioria das histórias desloca o herói para fora de seu mundo ordinário, cotidiano, e o introduz em um Mundo Especial, novo e estranho. É a conhecida idéia de "peixe fora d'água",
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Os momentos iniciais são uma poderosa oportunidade para dar o tom e criar uma impressão. Você pode criar uma atmosfera, uma imagem ou uma metáfora que dará à platéia um quadro ou uma referência para viver melhor a sua obra. O enfoque mitológico da história, no fundo, é a maneira como você vai usar metáforas e comparações, a fim de transmitir seus sentimentos sobre a vida (pag. 85)
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Um prólogo pode servir a várias funções. Poderá dar ao público uma informação essencial sobre o passado da história, poderá sugerir à platéia que tipo de filme ou história vai ser esse, ou, também, dar início à história com um impacto, e só então permitir que a platéia se acomode em seus assentos. (p. 87)
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Outra importante função do Mundo Comum é sugerir a questão dramática da história. Toda boa história levanta uma série de perguntas sobre o herói. Será que ele vai atingir seu objetivo, superar seu defeito, aprender a lição que precisa? (p. 89)
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Todo herói precisa de um problema interno e outro externo. (...)Personagens que não têm um problema interno parecem chatos e superficiais, por mais heróicos que sejam em suas ações. A fim de evitar essa impressão, é preciso que esses personagens tenham um problema íntimo, uma falha de personalidade ou um dilema moral, para que funcionem bem. (pág 90)
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A primeira ação do personagem é uma magnífica oportunidade para informar uma porção de coisas sobre sua atitude, estado emocional, contexto, forças e problemas. A primeira ação deve ser um modelo da atitude característica do herói e dos futuros problemas e soluções que dela resultam. O primeiro comportamento que vemos deve ser característico, deve definir e revelar o personagem, a não ser que se queira, expressamente, iludir a platéia e esconder a verdadeira natureza dele. (p. 91)
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o Mundo Comum estabelece um vínculo entre as pessoas e destaca alguns interesses comuns, para que seja possível o diálogo começar. De algum modo, devemos reconhecer que o herói é como nós. Num sentido muito real, uma história nos convida a entrar na pele do herói, ver o mundo com seus olhos. Como se fosse mágica, projetamos no herói uma parte de nossa consciência. Para que essa mágica funcione, é preciso que se estabeleça um vínculo forte de solidariedade ou interesse comum entre o herói e o público. (p. 92-93)
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O Mundo Comum é o melhor lugar para se lidar com a história pregressa e a exposição. História Pregressa é o conjunto de toda informação relevante sobre o passado e os antecedentes de um personagem — aquilo que o deixou na situação de risco exposta no começo da história. Exposição é a arte de ir revelando com elegância essa história pregressa e qualquer outra informação pertinente sobre o enredo: a classe social do herói, sua formação, seus hábitos, experiências, bem como as condições sociais dominantes e as forças adversárias que podem afetá-lo. A exposição soma tudo o que a platéia precisa saber para compreender o herói e a história. Na verdade, a História Pregressa e a Exposição estão entre as maiores dificuldades de se escrever. Uma exposição desajeitada tende a congelar a história. (p. 96)
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2. Chamado à Aventura
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Apresenta-se ao herói um problema, um desafio, uma aventura a empreender. Uma vez confrontado com esse Chamado à Aventura, ele não pode mais permanecer indefinidamente no conforto de seu Mundo Comum.
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Uma série de acasos e coincidências pode ser a mensagem que chama o herói para a aventura. Essa é a misteriosa força da sincronicidade, que C. G. Jung explorou em seus escritos. A recorrência acidental de palavras, idéias ou acontecimentos pode adquirir significado e chamar a atenção para a necessidade de ação e mudança. p. 101
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Um Chamado à Aventura pode chegar sob a forma de uma perda ou subtração da vida do herói no Mundo Comum. (..) Em algumas histórias, o Chamado à Aventura pode ser simplesmente a total falta de opções por parte do herói. Os mecanismos de defesa deixam de funcionar, outras pessoas se enchem do herói, ou ele é encurralado num beco sem saída, de tal modo que só lhe resta mergulhar na aventura. (p. 104- 105)
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3. Recusa do Chamado
Agora é a hora do medo. Com freqüência, o herói hesita logo antes de partir em sua aventura, Recusando o Chamado, ou exprimindo relutância. Afinal de contas, está enfrentando o maior dos medos — o terror do desconhecido. O herói ainda não se lançou de cabeça em sua jornada, e ainda pode estar pensando em recuar. É necessário que surja alguma outra influência para que vença essa encruzilhada do medo — uma mudança nas circunstâncias, uma nova ofensa à ordem natural das coisas, ou o encorajamento de um Mentor.
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Geralmente, os heróis Recusam o Chamado, dando uma interminável lista de desculpas. Numa evidente tentativa de adiar o momento de enfrentar o destino inevitável, dizem que aceitariam, se não fosse por uma série premente de compromissos. Trata-se de bloqueios temporários na estrada, geralmente derrubados pela urgência da busca. (p. 108)
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A Recusa do Chamado pode ser uma oportunidade para redirecionar o foco da aventura. Uma aventura que entrou num desvio ou necessita escapar a alguma conseqüência desagradável pode aproveitar para enfronhar-se em algo mais profundo, algo do espírito. (p. 113)
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4. Encontro com o Mentor
A relação entre Herói e Mentor é um dos temas mais comuns da mitologia, e um dos mais ricos em valor simbólico. Representa o vínculo entre pais e filhos, entre mestre e discípulo, médico e paciente, Deus e o ser humano. p.37
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Entretanto, o Mentor só pode ir até um certo ponto com o herói. Mais adiante, o herói deve ir sozinho ao encontro do desconhecido. E, algumas vezes, o Mentor tem que lhe dar um empurrão firme, para que a aventura possa seguir em frente p. 38
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Muitas vezes não é má idéia recusar um Chamado, até que se tenha tempo para sentir-se bem preparado para tomar o rumo da "região desconhecida" que está à espera. Na mitologia e no folclore, essa preparação pode ser feita com a ajuda da figura sábia e protetora do Mentor, cujos inúmeros serviços ao herói incluem a proteção, orientação, experimentação, treinamento e fornecimento de dons ou presentes mágicos. Em seu estudo sobre os contos populares russos, Vladimir Propp chama esse tipo de personagem de "doador" ou "provedor", porque sua função exata é fornecer ao herói algo de que ele vai precisar na jornada. O Encontro com o Mentor é o estágio da Jornada do Herói em que este recebe as provisões, o conhecimento e a confiança necessários para superar o medo e começar sua aventura. (p. 114)
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Os Mentores, nas histórias, agem, principalmente, nas mentes dos heróis, mudando a consciência ou redirecionando a vontade. Mesmo quando dão presentes físicos, os Mentores também reforçam a mente do herói, para enfrentar uma provação com confiança. Menos também significa coragem. (p. 117)
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5. Travessia do Primeiro Limiar
O Primeiro Limiar marca a passagem do primeiro para o segundo ato. Tendo dominado seu medo, o herói resolveu enfrentar o problema e partir para a ação. Acaba de partir em sua jornada, e não pode mais voltar atrás p.38
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Ao se aproximar do Limiar, provavelmente você vai encontrar seres que tentam impedir sua passagem. São os chamados Guardiões de Limiar, um arquétipo poderoso e útil. Podem surgir para bloquear o caminho, em qualquer ponto da história, mas tendem a ficar junto a portas, portões e desfiladeiros próximos das travessias de limiar. (p. 124)
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6. Testes, Aliados, Inimigos
Uma vez ultrapassado o Primeiro Limiar, o herói naturalmente encontra novos desafios e Testes, faz Aliados e Inimigos, e começa a aprender as regras do Mundo Especial.
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A função mais importante desse período de adaptação ao Mundo Especial são os testes. Os contadores de histórias usam esta fase para testar o herói, fazendo-o passar por uma série de provas e desafios, com o objetivo de prepará-lo para provações maiores que ainda virão pela frente. (p. 130)
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Os heróis também podem fazer inimizades amargas, neste estágio. Podem encontrar a Sombra ou seus servidores. O aparecimento do herói no Mundo Especial pode chamar a atenção da Sombra, e, assim, desencadear uma série de acontecimentos ameaçadores. (p. 132)
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Lugar de beber água
Por que tantos heróis passam por bares e saloons, neste ponto da história? A resposta está na metáfora de caça da Jornada do Herói. Ao sair do Mundo Comum da aldeia ou da caverna, muitas vezes os caçadores dirigem-se diretamente ao local de beber água, para procurar caça. Outras numerosas vezes, os predadores seguem as pegadas que as presas deixam na lama junto ao poço, quando ali vieram beber. O "lugar de beber água" é um local natural de reunião, um bom ponto para observar os outros e obter informação.A Travessia do Primeiro Limiar pode ter sido longa, solitária e seca. Os bares são lugares naturais para quem quer se recuperar, restaurar as forças (repare no nome "restaurante"), ouvir fofocas, fazer amigos, encarar Inimigos. Também nos deixam observar as pessoas sob pressão, naquele momento especial em que revelam seu verdadeiro caráter. (p.134)
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7. Aproximação da Caverna Oculta
Finalmente, o herói chega à fronteira de um lugar perigoso, às vezes subterrâneo e profundo, onde está escondido o objeto de sua busca
Na mitologia, a Caverna Oculta pode representar a terra dos mortos. O herói pode ter que descer aos infernos para salvar a amada (Orfeu) ou a uma caverna para enfrentar um dragão e ganhar um tesouro (Sigurd, nos mitos noruegueses), ou a um labirinto para se defrontar com um monstro (Teseu e o Minotauro).
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No caminho, encontram outra zona misteriosa, com seus próprios Guardiões de Limiar, seus próprios testes. É a Aproximação da Caverna Oculta, onde, finalmente, vão encontrar a suprema maravilha e o terror supremo. É hora dos preparativos finais para a provação central da aventura. A esta altura, os heróis são como alpinistas que já subiram até um acampamento básico, por meio dos trabalhos dos testes, e agora vão fazer o assalto final ao ponto culminante. (p.136)
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A Aproximação reúne todos os preparativos finais para a Provação Suprema. Geralmente, traz o herói à cidadela da oposição, àquele âmago bem defendido em que terão de entrar em cena todas as lições e aliados da Jornada recebidos até agora. Novas percepções são testadas, superam-se os obstáculos finais para se chegar ao coração da aventura. Agora, a Provação Suprema pode começar. (p. 145)
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8. Provação
Aqui se joga a sorte do herói, num confronto direto com seu maior medo. Ele enfrenta a possibilidade da morte e é levado ao extremo numa batalha contra uma força hostil. A Provação é um "momento sinistro" para a platéia, pois ficamos em suspense e em tensão, sem saber se ele vive ou morre. O herói, como Jonas, está "no ventre da fera".
Esse é um momento crítico em qualquer história. É uma Provação em que o herói tem de morrer ou parecer que morre, para poder renascer em seguida. É uma das principais fontes da magia do mito heróico. As experiências dos estágios precedentes levaram a platéia a se identificar com o herói e seu destino. O que acontece com ele está acontecendo conosco. Somos encorajados a viver com ele esse momento de iminência de morte. Nossas emoções são temporariamente deprimidas, para poderem reviver no "quando o herói retorna da morte". O resultado desse reviver é uma sensação de entusiasmo e euforia.
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Agora, o herói está no aposento mais profundo da Caverna Oculta, enfrentando o maior desafio e o mais temível adversário. Este, sim, é o âmago da questão, o que Joseph Campbell chamou de Provação. É a mola-mestra da forma heróica, a chave de seu poder mágico. (p.147)
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O segredo simples da Provação é este: 05 Heróis têm que morrer para poderem renascer. O movimento dramático de que a platéia mais gosta, acima de qualquer outro, é o de morte e renascimento. De algum modo, em toda história os heróis enfrentam a morte ou algo semelhante: seus maiores medos, o fracasso de um empreendimento, o fim de uma relação, a morte de uma personalidade velha. Na maioria das vezes, os heróis sobrevivem, magicamente, a essa morte e renascem — literal ou simbolicamente — para colher as conseqüências de terem derrotado a morte. Passaram pelo teste principal, aquele que consagra um herói.
(p. 147)
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A crise, não o clímax
A Provação é um dos principais núcleos nervosos da história. Muitos fios da história do herói conduzem a ela, e muitos fios de possibilidades e mudanças saem dela para um outro lado. Mas não deve ser confundida com o clímax da Jornada do Herói — este é outro centro nervoso, mais adiante, perto do fim da história (como o cérebro, na base da cauda de um dinossauro).
A Provação, geralmente, é o acontecimento central da história, ou o principal acontecimento do segundo ato. Vamos chamá-la de crise, para diferenciá-la do clímax (o grande momento do terceiro ato, que é o coroamento de toda história). (p.148)
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Pontos de tensão
O segundo ato é um longo trecho, tanto para o escritor como para a platéia, com duração de quase uma hora, num filme médio. Pode-se considerar uma estrutura em três atos como uma linha dramática esticada entre dois grandes pontos de tensão, os intervalos entre os atos. Como uma lona de circo apoiada em grandes postes, a estrutura está sujeita à gravidade — a diminuição da atenção do público, no tempo decorrido entre esses pontos de tensão. Uma história que não tenha um momento central de tensão pode pesar como uma lona de circo que precisa de um poste de sustentação extra no meio. O segundo ato é um estirão no seu filme, umas cem páginas no seu romance. Precisa de uma estrutura que o mantenha tenso.
A crise no meio é um divisor de águas, uma divisão continental na Jornada do Herói, que mostra que o viajante alcançou o meio da viagem. As Jornadas se arrumam, naturalmente, em redor de um acontecimento central: chegar ao topo da montanha, ao ponto mais profundo da caverna, ao coração da floresta, ao interior mais íntimo de um país estrangeiro, ao lugar mais secreto de sua própria alma. Tudo na viagem levava a esse momento, e tudo depois de tal momento será apenas a volta para casa. Pode haver ainda aventuras maiores no futuro — os momentos finais de uma viagem podem ser os mais emocionantes e memoráveis — mas toda jornada parece ter um centro, um fundo ou um pico, em algum ponto perto do meio.
A palavra "crise" — e também "crítico, criticar" — vem de uma palavra grega que significa "separar". Uma crise é um evento que separa duas metades da história. Após cruzar essa zona, muitas vezes nos limites da morte, o herói renasce, literal ou metaforicamente, e nada jamais será igual. (p. 150)
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As emoções humanas, ao que parece, têm certas propriedades elásticas, como bolas de basquete. Se jogadas com muita força para baixo, quicam de volta. Em qualquer história, quando você estiver tentando estimular o público, aumente seu grau de consciência, amplie as emoções. A estrutura da história age como uma bomba, para intensificar o envolvimento da platéia. Uma boa estrutura funciona através de uma diminuição e um aumento alternados da sorte do herói e, paralelamente, da emoção do público. Deprimir as suas emoções tem o mesmo efeito que segurar uma bola com força debaixo d'água. Quando a pressão é retirada, a bola pula com força para cima. As emoções deprimidas pela presença da morte podem quicar de volta, em um dado instante, a uma altura ainda não atingida antes. Isso pode se tornar a base sobre a qual você vai construir um nível ainda mais alto. A Provação é uma das "depressões" mais fundas de uma história e, portanto, leva em seguida a um dos picos mais altos. (p.152)
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De longe, a forma mais comum de Provação é algum tipo de batalha ou confrontação com uma força oposta. Pode ser um inimigo mortal, vilão, antagonista, adversário, ou mesmo uma força da natureza. Uma idéia que, de certo modo, abrange todas essas possibilidades, é o arquétipo da Sombra. Um vilão pode ser um personagem externo mas, num sentido mais amplo, essas palavras todas representam as possibilidades negativas do próprio herói. Em outras palavras, o maior adversário do herói é sua própria Sombra.
Em geral, a Sombra representa os medos e as qualidades desagradáveis e rejeitáveis do herói — tudo aquilo de que não gostamos em nós mesmos e tendemos a projetar em outras pessoas. Essa forma de projeção é chamada de demonização. Pessoas que, às vezes, estão numa crise emocional projetam todos os seus problemas numa certa área em outra pessoa ou grupo, que passam a ser o símbolo de tudo o que odeiam ou temem em si mesmos. (p. 154)
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Os vilões podem ser vistos como a Sombra do herói em forma humana. Por mais diferentes que sejam os valores do vilão, de alguma forma eles são um reflexo escuro dos próprios desejos do herói, aumentados e distorcidos, reflexo de seus maiores medos. (p. 155)
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O fio de Ariadne
O fio de Ariadne é um poderoso símbolo da força do amor, da ligação quase telepática que prende as pessoas numa relação intensa. É algo capaz de puxar você, como um cabo. É algo próximo à "barra do avental" ou ao "cordão umbilical" que prende os filhos, mesmo adultos, a suas mães — são fios invisíveis, mas com força de tensão maior que a do aço.O fio de Ariadne é uma fita elástica que liga um herói às pessoas que ama. Um herói pode se aventurar bem longe, para dentro da loucura ou da morte, mas geralmente é puxado de volta por esses vínculos (p. 157)
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9. Recompensa (Apanhando a Espada)
A Provação do herói pode assegurar a ele uma compreensão maior do sexo oposto, uma capacidade de ver além da aparência exterior que se transforma. E, com isso, pode levar a uma reconciliação.
O herói também pode se tornar mais atraente, em razão de ter sobrevivido à Provação. Conquistou o título de "herói" por ter corrido riscos extremos em favor de sua comunidade.
Muitas histórias têm, nessa etapa, algum tipo de cena de fogueira, onde o herói e seus companheiros reúnem-se em volta do fogo — ou equivalente — para fazer uma revisão dos acontecimentos recentes. É também uma oportunidade de dar risada e contar vantagem. É compreensível que haja alívio por terem sobrevivido à morte. Caçadores e pescadores, pilotos e navegadores, soldados e exploradores, todos gostam de exagerar seus feitos. (p. 167)
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Um dos aspectos essenciais dessa etapa é que o herói toma posse daquilo que veio procurar. Os caçadores de tesouro pegam o ouro, os espiões roubam o segredo, os piratas ocupam o navio capturado, o herói inseguro adquire a auto-estima, o escravo passa a controlar seu próprio destino. Foi feita uma transação — o herói correu risco de vida ou sacrificou sua vida, e agora ganha algo em troca.
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Como recompensa, o herói pode ganhar a compreensão de um mistério que o faça ver o que há por trás de uma decepção. Lidando com um parceiro camaleônico, pode conseguir ver como ele é por detrás dos disfarces, e, pela primeira vez, perceber a realidade. Apanhar a espada pode ser um momento de iluminação (p. 170)
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Outros também podem ver o herói de modo mais claro. Podem ver na mudança do comportamento do herói sinais de que ele renasceu e agora participa da imortalidade dos deuses. Essa visão clara e total é o que, às vezes, recebe o nome de um momento de epifania, uma abrupta percepção da divindade. (p. 171)
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10. Caminho de Volta
Mas o herói ainda não saiu do bosque. Estamos passando agora para o terceiro ato, no qual ele começa a lidar com as conseqüências de ter-se confrontado com as forças obscuras da Provação. Se ainda não conseguiu se reconciliar com os pais, os deuses, ou as forças hostis, estes podem vir furiosos ao seu encalço.
Essa fase marca a decisão de voltar ao Mundo Comum. O herói compreende que, em algum momento, vai ter que deixar para trás o Mundo Especial, e que ainda há perigos, tentações e testes à sua frente.
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Em termos psicológicos, este estágio representa a resolução do herói de voltar para o Mundo Comum e aplicar as lições aprendidas no Mundo Especial. Pode não ser nada fácil. O herói tem motivos para supor que a sabedoria e a magia da Provação poderão evaporar à luz da vida cotidiana. Pode ser que ninguém acredite nessa sua miraculosa salvação da morte. As aventuras podem ser encaradas racionalmente pelos céticos. Mas a maioria dos heróis resolve tentar. (p. 176)
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O Caminho de Volta é um ponto de mudança de direção, mais uma travessia de Limiar, que marca a passagem do segundo para o terceiro ato. Assim como na Travessia do Primeiro Limiar, pode haver uma mudança no objetivo da história. Uma história sobre a chegada a uma meta pode transformar-se numa história de fuga. Um foco nos perigos físicos poderá deslocar-se para os riscos emocionais. O combustível que impulsiona uma história para fora das profundezas do Mundo Especial pode ser um novo desenrolar dos acontecimentos ou uma informação que, tragicamente, redireciona a história. Na verdade, o Caminho de Volta causa o terceiro ato. Pode ser um novo momento de crise, que situa o herói numa nova estrada cheia de vicissitudes — desta vez, finais. (p. 177)
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11. Ressurreição
Muitas vezes, este é um segundo momento de vida-ou-morte, quase uma repetição da morte e renascimento da Provação. A morte e a escuridão fazem um último esforço desesperado, antes de serem finalmente derrotadas. É uma espécie de exame final do herói, que deve ser posto à prova, ainda uma vez, para ver se realmente aprendeu as lições da Provação.
O herói se transforma, graças a esses momentos de morte-e-renascimento, e assim pode voltar à vida comum como um novo ser, com um novo entendimento.
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Agora vem um dos trechos mais difíceis e mais desafiantes, tanto para o herói como para o escritor. Para que uma história fique completa, a platéia precisa experimentar mais um momento de morte e renascimento, parecido com a Provação Suprema, mas ligeiramente diferente. É o clímax — não a crise —, o último encontro com a morte e o mais perigoso. Os heróis precisam passar por uma purgação final, uma purificação, antes de ingressar de volta no Mundo Comum. Mais uma vez, devem mudar. O truque do escritor, nessa ocasião, deve ser explicitar a mudança em seus personagens, no comportamento e na aparência, e não apenas falar sobre ela. Os escritores precisam descobrir um modo de demonstrar que seus heróis passaram por um processo de Ressurreição. (p. 182)
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A Ressurreição, geralmente, marca o clímax do drama. Em grego, clímax significava "escada". Para nós, que contamos histórias, é um momento explosivo, o ponto mais alto de energia, ou o último grande acontecimento de uma obra. Pode ser um duelo físico, ou uma batalha final, mas também uma escolha difícil, um clímax sexual, um crescendo musical, ou um enfrentamento altamente emocional e decisivo. (p. 187)
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12. Retorno com o Elixir
O herói retorna ao Mundo Comum, mas a jornada não tem sentido se ele não trouxer de volta um Elixir, tesouro ou lição do Mundo Especial. O Elixir é uma poção mágica com o poder de curar. Pode ser um grande tesouro, como o Graal, que, magicamente, cura a terra ferida, ou pode, simplesmente, ser um conhecimento ou experiência que algum dia poderá ser útil à comunidade.
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O conceito de arquétipo é uma ferramenta indispensável para se compreender o propósito ou função dos personagens em uma história. Se você descobrir qual a função do arquétipo que um determinado personagem está expressando, isso pode lhe ajudar a determinar se o personagem está jogando todo o seu peso na história. Os arquétipos fazem parte da linguagem universal da narrativa. Dominar sua energia é tão essencial ao escritor como respirar. p.46
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A palavra herói vem do grego, de uma raiz que significa "proteger e servir" (aliás, o lema do Departamento de Polícia de Los Angeles). Um Herói é alguém que está disposto a sacrificar suas próprias necessidades em benefício dos outros. Como um pastor que aceita se sacrificar para proteger e servir a seu rebanho. A raiz da idéia de Herói está ligada a um sacrifício de si mesmo. (Notem que eu uso a palavra para designar um personagem central ou um protagonista, independente do seu sexo.) (pag. 49)
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Em termos psicológicos, o arquétipo do Herói representa o que Freud chamou de ego — a parte da personalidade que se separa da mãe, que se considera distinta do resto da raça humana. Em última análise, um Herói é aquele que é capaz de transcender os limites e ilusões do ego, mas, de início, os Heróis são inteiramente ego, se confundem com o ego, o "eu", com aquela identidade pessoal que pensa que é distinta do resto do grupo. A jornada de muitos Heróis é a história dessa separação da família ou da tribo, equivalente ao sentido de separação da mãe, que uma criança vivência.
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O propósito dramático do herói é dar à platéia uma janela para a história. Cada pessoa que ouve uma história ou assiste a uma peça ou filme é convidada, nos estágios iniciais da história, a se identificar com o Herói, a se fundir com ele e ver o mundo por meio dos olhos dele. Para conseguir fazer isso, os narradores dão a seus heróis uma combinação de qualidades que é uma mistura de características universais e únicas. (pag. 50).
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Como qualquer verdadeira obra de arte, eles precisam, ao mesmo tempo, de universalidade e originalidade. Ninguém quer ver um filme ou ler uma história sobre qualidades abstratas em forma humana. Queremos histórias sobre gente de verdade. Um personagem real, como uma pessoa real, não é apenas um traço, mas uma combinação única de muitas qualidades e impulsos, alguns deles conflitantes. E quanto mais conflitantes, melhor.
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Defeitos interessantes humanizam um personagem. Podemos reconhecer pedaços de nós mesmos num Herói desafiado a ultrapassar dúvidas internas, erros de pensamento, culpa ou trauma no passado, ou medo do futuro. Fraquezas, imperfeições, cacoetes e vícios imediatamente tornam um Herói ou qualquer personagem mais real e atraente. Parece que quanto mais os personagens forem neuróticos, mais as platéias gostam deles e se identificam com eles. (pag. 53)
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O caminho dos heróis
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Os Heróis são símbolos da alma em transformação, e da jornada que cada pessoa percorre na vida. Os estágios dessa progressão, os estágios naturais da vida e do crescimento, formam a Jornada do Herói. O arquétipo do Herói é um campo rico para ser explorado por escritores e por quem está numa busca espiritual. (p. 57)
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Um arquétipo que freqüentemente encontramos nos sonhos, mitos e histórias é o Mentor— em geral, uma figura positiva que ajuda ou treina o herói. O nome que Campbell dá a essa força é Velho Sábio ou Velha Sábia. Esse arquétipo se expressa em todos aqueles personagens que ensinam e protegem os heróis e lhes dão certos dons.
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Na anatomia da psique humana, os mentores representam o self, o deus dentro de nós, o aspecto da personalidade que está ligado a todas as coisas. O se//superior é a parte mais sábia, mais nobre, mais parecida com um deus em nós.
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Dar presentes também é uma importante função desse arquétipo. (...)A doação de presentes, ou seja, a função de doador do Mentor, desempenha um papel importante na mitologia. Muitos heróis receberam presentes de seus Mentores, os deuses. (...) O presente ou ajuda deve ser conquistado, merecido, por meio de um aprendizado, um sacrifício ou um compromisso.
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Os Mentores fornecem aos heróis motivação, inspiração, orientação, treinamento e presentes para a jornada. Todo herói é guiado por alguma coisa, e uma história que não reconheça isso e não deixe um espaço para essa energia estará incompleta. Quer se exprima como um personagem concreto ou como um código de conduta interno, o arquétipo do Mentor é uma arma poderosa nas mãos do escritor.
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Todos os heróis encontram obstáculos na estrada da aventura. Em cada portão de entrada a um novo mundo há guardiões poderosos defendendo esse limiar, e ali colocados para impedir a passagem e a entrada de quem não for digno. Eles exibem ao herói uma cara ameaçadora, mas, se forem devidamente compreendidos, podem ser ultrapassados, superados, e até transformados em aliados. pag. 66
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Esses Guardiões podem representar os obstáculos comuns, que todos nós temos que enfrentar no mundo que nos cerca: azar, preconceitos, opressão ou pessoas hostis
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Testar o herói é a função dramática primordial do Guardião de Limiar. Quando os heróis se confrontam com uma dessas figuras, precisam decifrar um enigma, ou passar por um teste. Como a Esfinge, que apresenta um enigma a Édipo, para que ele possa continuar sua jornada, um Guardião de Limiar desafia o herói e o experimenta, em seu caminho.
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É comum que apareça no primeiro ato uma força que traduz um desafio ao herói. É a energia do arquétipo do Arauto.
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Os Arautos desempenham função psicológica importante, ao anunciarem a necessidade de mudança. Algo no nosso íntimo sabe quando estamos prontos para mudar, e nos envia uma mensagem. Pode ser uma figura de sonho, uma pessoa real ou uma nova idéia que encontramos.
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Os Arautos fornecem motivação, lançam um desafio ao herói e desencadeiam a ação da história. Alertam o herói (e a platéia) para o fato de que a mudança e a aventura estão chegando.
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O arquétipo do Arauto pode entrar em cena em praticamente qualquer ponto da história, mas é empregado com maior freqüência no primeiro ato, para ajudar a impelir o herói à aventura. Seja um chamado interior, um desenvolvimento externo ou um personagem com notícias de mudança, a energia do Arauto é necessária em quase toda história pag. 71
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É comum que se tenha dificuldade em captar o arquétipo fugidio do Camaleão, talvez porque é de sua própria natureza estar mudando e ser instável. Sua aparência e características mudam assim que é examinado de perto. Entretanto, trata-se de um poderoso arquétipo. Entender seu funcionamento pode ser muito útil — tanto na narrativa como na vida
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Um propósito psicológico importante do arquétipo do Camaleão é expressar a energia do animus e da anima, termos usados pelo psicólogo Carl Jung. O animus é o nome que Jung dá ao elemento masculino no inconsciente feminino, ao emaranhado de imagens positivas e negativas de masculinidade nos sonhos e fantasias de uma mulher. A anima é o elemento feminino correspondente no inconsciente masculino. Segundo essa teoria, as pessoas têm um conjunto completo tanto de qualidades femininas como de masculinas, e ambas são necessárias para a sobrevivência e o equilíbrio interno. pag. 72
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O arquétipo conhecido como Sombra representa a energia do lado obscuro, os aspectos não-expressos, irrealizados ou rejeitados de alguma coisa. Muitas vezes, é onde moram os monstros reprimidos de nosso mundo interior. As Sombras podem ser todas as coisas de que não gostamos em nós mesmos, todos os segredos obscuros que não queremos admitir, nem para nós mesmos. As características a que renunciamos, ou que tentamos arrancar, ainda sobrevivem e agem no mundo das Sombras do inconsciente. A Sombra também pode abrigar qualidades positivas que estão ocultas ou que rejeitamos por um motivo qualquer. A face negativa da Sombra, nas histórias, projeta-se em personagens chamados de vilões, antagonistas ou inimigos. Os vilões e inimigos, geralmente, dedicam-se à morte, à destruição ou à derrota do herói. Os antagonistas podem não ser tão hostis — podem ser aliados que têm o mesmo objetivo, mas discordam do herói quanto à tática. Antagonistas e heróis em conflito são como cavalos numa parelha, que puxam em direções diferentes, enquanto vilões e heróis em conflito são como trens que avançam um de encontro ao outro, em rota de colisão. pág. 77
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O conceito psicológico do arquétipo da Sombra é uma metáfora útil para compreendermos os vilões e antagonistas em nossas histórias, e também para captarmos os aspectos do herói que não se manifestam, ou ficam ignorados, ou ocultos.
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O arquétipo do Pícaro incorpora as energias da vontade de pregar peças e do desejo de mudança. Todos os personagens de uma história que são principalmente palhaços ou manifestações cômicas expressam esse arquétipo. A forma especializada denominada Herói Picaresco é a figura dominante em muitos mitos e é muito popular no folclore e nos contos de fadas. p. 81
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Podam os egos grandes demais, trazem heróis e platéias para a real. Ao provocarem nossas gargalhadas saudáveis, ajudam-nos a perceber nossos vínculos comuns, apontando as bobagens e a hipocrisia.
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