terça-feira, abril 06, 2004

Senhor Deus dos Desgraçados.
Ricardo Gondim

A cidadezinha de Muritiba aparece como um ponto de alfinete nos maiores mapas da Bahia. Nada acontece por ali, mas num dia qualquer de 1847 nascia Antônio Frederico de Castro Alves, considerado o maior poeta do romantismo brasileiro. Ele conseguiu colocar em poema a dor de Deus. O seu Navio Negreiro descreve a sorte de milhões de negros que, arrancados de sua pátria, seguiam feito bichos, para um inferno humano. Não consigo lê-lo sem que alguns de meus músculos se retesem e que minha boca seque.

Era um sonho dantesco... o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!
Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são? Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz, Perante a noite confusa...
Dize-o tu, severa Musa, Musa libérrima, audaz!...

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!...
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades! Varrei os mares, tufão! ...

Retirados os nossos freios morais e de posse de poderes absolutos, podemos nos tornar monstros de perversidade e iniqüidade. Will Durant descreveu a tortura da Inquisição Católica: “a vítima era imobilizada e depois vertiam-lhe água na garganta até quase sufocá-la; outras vezes amarravam cordas em volta dos braços e das pernas que iam sendo apertadas a ponto de cortarem a carne até o osso. Podia ser flagelado com um ou 200 açoites até “o limite de segurança”. Chegados à praça preparada para a execução, os que tinham confessado eram estrangulados, depois queimados; os recalcitrantes eram queimados vivos. As fogueiras eram alimentadas até não sobrar nada dos mortos além das cinzas, que eram espalhadas por campos e rios. O padres e os espectadores voltavam para seus altares e lares, convencidos de que se tinha feito uma oferenda propiciatória a um Deus insultado pela heresia”.

Causou asco uma cena do filme a Lista de Schindler; um graduado nazista pratica tiro ao alvo em um indefeso judeu que, feito animal selvagem, corre para se salvar. Não há como se imaginar como aconteceu o genocídio de Ruanda. Qual mente consegue recriar cenas em que religiosos orquestram a morte de mais de quinhentas mil pessoas em menos de 45 dias? E o extermínio do Khemer Vermelho que transformou o Camboja em um vasto cemitério a céu aberto?

Quando o meu Nordeste padece sem água, o povo olha para o céu limpo, sem qualquer prenúncio de se cumprir a promessa de que a chuva cairá sobre justos e injustos, Luis Gonzaga lamenta: “Quando olhei a terra ardendo, como fogueira de São João, perguntei a Deus do céu, ai. Por que tamanha judiação”?

Eu já vi o enterro de anjinhos – meninos e meninas que morrem muitas vezes de fome no Ceará. – Aquela procissão silenciosa e macabra de outros meninos e meninas carregando um corpinho dentro de uma caixa de sapatos, deixa seqüelas pronfundas.

Há uma verdade que queremos sempre fugir e evitar: vivemos em um mundo violento, bárbaro, sanguinário e inclemente. Aliás, faltam palavras em qualquer idioma que expresse o tamanho da nossa perversidade. Assim como Guernica de Picasso não consegue retratar a maldição de uma guerra, nem Roots mostrou o quanto sofreu Kunta Kinte, o filme do Mel Gibson não exauriu o tamanho do sofrimento de Jesus, o Cristo.

Mas todos precisamos assistí-lo. Pelo bem da humanidade, Mel Gibson precisa ser levado a sério. Seu esforço artístico não é violência pela violência, seu trabalho não pode ser jogado na vala comum dos vulgares. O sofrimento particular de Maria – como de todas as mães negras que viram seus filhos apanhando na chibata dos fazendeiros ricos – é sobreposta pelo riso de soldados que, donos de todo o poder político, surram seu filho até se cansarem. A macro política que gera o desdém do Procurador romano para com a ralé colonizada, vale mais que a sensibilidade de uma esposa que chama seu marido a um mínimo de bom senso.

Por que as pessoas não gostam de assistir as trinta e nove chicotadas do flagelo romano? Porque não queremos reconhecer nossa tragédia humana e nem imaginar um Deus frágil e impotente. Somos seletivos e preferimos recitar as mensagens de Jesus sobre o perdão e amor ao nosso próximo. Mas as pessoas conspiraram contra Jesus exatamente porque ele era Jesus e não um ídolo à semelhança de Hércules.

Ver o filme de Gibson foi uma experiência marcante para mim. Lembrou-me que minha salvação não foi barata. Confrontado pelo preço que o Cordeiro de Deus pagou, não quero esse evangelho gasoso proclamado nos “shows gospel” da pós-modernidade. Sentado confortavelmente na poltrona do cinema, recordei-me de suas palavras em Lucas 9:23-24: “Se alguém quiser acompanhar-me, negue-se a si mesmo, tome diariamente a sua cruz e siga-me. Pois quem quiser salvar a sua vida, a perderá; mas quem perder a sua vida por minha causa, este a salvará”.

Quando entraram os letreiros finais do filme, levantei-me cabisbaixo e em silêncio. Perguntava-me a mim mesmo: “Até que ponto estou disposto a sofrer pela causa de Jesus, o Cristo”? Paulo convidou Timóteo a suportar as aflições como bom soldado da cruz; lembrava seu discípulo que seguir o Caminho é se dispor a encarnar toda a missão de Jesus. Quantos querem partilhar empaticamente a sorte dos que gritam desesperados nesse imenso mar de lágrimas que se transformou o viver humano?

Soli Deo Gloria