“Se eu tivesse que escolher um só filme de Alfred Hitchcock seria Interlúdio e a razão é Ingrid Bergman. Uma relação amorosa imaginária entre Alfred Hitchcock e Ingrid Bergman tendo Cary Grant ao meio. A cena final deve ser a mais perfeita da História do cinema, onde tudo se resolve em três minutos: a história de amor, o
drama familiar e a trama de espionagem. Poucas tomadas, magníficas e inesquecíveis.”
Jacques Rivette
Mais lembrado como um mestre do suspense (ou até do terror, o que não deixa de ser um erro), Hitchcock também fez vários filmes policiais e de espionagem. "Interlúdio" é um dos melhores, com um trama simples, mas bem eficiente, e um desempenho admirável de Ingrid Bergman. Dizem que Hitchcock referia-se a seus atores como "gado". Também dizem que suas heroínas não passavam de louras geladas e desmioladas. "Interlúdio", contudo, desmente estas bobagens. Alicia (Bergman) - linda, mas com uma péssima reputação - é a filha americana de um espião nazista, que é condenado e preso nos Estados Unidos, suicidando-se logo após. Devlin (Cary Grant) trabalha para o governo dos EUA e tem a missão de transformar Alicia numa contra-espiã. Para isso, ela deve viajar para o Rio de Janeiro e encontrar-se com Sebastian, um alemão suspeito de espionagem que já esteve apaixonado por ela (o que facilita muito as coisas). Mas há um problema: Alicia e Devlin apaixonam-se no começo do filme. A trama até pode parecer rocambolesca (e é), mas aí aparece o talento de Hitchcock. Ele não está interessado na espionagem em si, nem nas conseqüências do conflito para os agentes americanos e alemães da história, e muito menos para as duas nações. Ele está interessado nos dramas mais íntimos de seus personagens, que envolvem, como sempre, amor e sexo. Ou melhor: amor, sexo e culpa. Patriotismo, como diz Alicia no próprio filme, não passa de um assunto que dá dor de cabeça. O conflito básico envolve a dificuldade de Alicia e Devlin para fingir que não estão apaixonados e, mais do que isso, para impedir que a sua relação atrapalhe a espionagem de Alicia. Ingrid Bergman está muito longe de ser uma loura burra e gelada em "Interlúdio". Ela é muito quente e muito esperta, tanto que antecipa o que será obrigada a fazer, dizendo que vai agir "como Mata Hari, que se entregava para obter segredos". As velhas preocupações morais de Hitchcock afloram a todo momento. Apesar de discreto em relação à imagem, os diálogos de "Interlúdio" são bastante explícitos. Alicia fica noiva, transa e depois casa com Sebastian, mesmo apaixonada por Devlin, para cumprir o papel que esperam dela. Devlin, por sua vez, morre de ciúmes, mas é orgulhoso demais para compreender o sacrifício de sua amada. Bobamente, acha que Alicia voltou à sua vida de festas, bebidas e amores inconseqüentes. Grant sempre fez muito bem esse papel de idiota romântico sob a pele de um homem de ação. A cena final, realizada com o costumeiro cuidado de Hitchcock com os enquadramentos e os movimentos de câmara, sustenta-se exclusivamente pelas motivações dos personagens. Não há um só tiro em "Interlúdio". Ninguém corre nem eleva o tom da voz. Em compensação, há o prazer de ver o velho Hitch em plena forma, rindo de si mesmo e de seus pobres personagens, enquanto nós, espectadores, nos deliciamos com um cinema sofisticado, capaz de reunir suspense e bom-humor numa mesma seqüência. O melhor de tudo é que "Interlúdio" é apenas uma amostra. Corra para a locadora e descubra tudo o que aquele velho careca era capaz de fazer com uma câmara e uma loura.
Carlos Gerbase é jornalista e trabalha na área audiovisual, como roteirista e diretor. Já escreveu duas novelas para o ZAZ (A gente ainda nem começou e "Fausto"). Atualmente finaliza seu terceiro longa-metragem, Tolerância, com Maitê Proença e Roberto Bomtempo.
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Um exemplo do arquétipo do herói como motivador num filme pode ser o de Interlúdio, de Alfred Hitchcock. Cary Grant faz o papel de um agente secreto, tentando atrair para uma causa nobre Ingrid Bergman, a filha de um espião nazista. A um só tempo, ele oferece a ela um desafio e uma oportunidade. Ela pode superar sua má reputação e a vergonha da família dedicando-se à nobre causa de Cary. (No fim das contas, a causa acaba não sendo tão nobre, mas isso é outra história.)
Como a maioria dos heróis, o personagem dela tem medo da mudança e reluta em aceitar o desafio. Mas Grant, à maneira de um arauto medieval, faz a moça recordar seu passado e dá a ela motivação para agir. Faz com que a moça ouça a gravação de uma discussão que ela teve com o pai, na qual renunciava à espionagem dele e declarava sua lealdade aos Estados Unidos. Confrontada com a prova de seu patriotismo, ela aceita o Chamado à Aventura. Está motivada. (p. 70)
Desorientação e desconforto
Muitas vezes, o Chamado à Aventura pode ser perturbador e desorientador para o herói. Em outras ocasiões, os Arautos enganam os heróis, falseando a própria aparência para ganhar sua confiança e, depois, trocando de forma para fazer a entrega do Chamado. Alfred Hitchcock nos dá um poderoso exemplo em Interlúdio. A heroína, vivida por Ingrid Bergman, é uma moça que só quer se divertir, e cujo pai fora condenado como espião nazista. O Chamado à Aventura chega através de um Arauto, na forma de Cary Grant, um agente americano que tenta obter a ajuda dela, para poder infiltrar-se num círculo de espiões nazistas.
Primeiramente, ele joga seu charme e entra na vida da moça, fingindo ser um playboy que só pensa em bebida, carros velozes e... nela. Depois que ela descobre, por acaso, que o sedutor é da polícia, ele muda de conversa, põe a máscara de Arauto e transmite a ela um desafiante Chamado à Aventura.
Ingrid Bergman acorda na cama, de ressaca, depois de uma noite de festas. Grant, enquadrado na moldura da porta, dá a ela uma bebida efervescente, para acalmar o estômago. O gosto é horrível, mas Grant faz com que a moça beba de qualquer jeito.
A beberagem simboliza a nova energia da aventura — mesmo com aquele gosto de veneno, se for comparada com as bebidas finas a que a moça está acostumada — mas que, afinal, vai ser um bom remédio.
Nessa cena, Grant está encostado no marco da porta, numa silhueta, como se fosse um anjo negro. Do ponto de vista de Ingrid Bergman, esse Arauto de aparência imprecisa pode ser um anjo ou um demônio. A hipótese demoníaca é sugerida pelo nome dele, revelado pela primeira vez: Devlin (em inglês, Devlin aproxima-se de devil, que significa demônio). Quando ele avança pelo quarto, em direção à moça, para transmitir o Chamado, Hitchcock faz a câmera segui-lo, numa tomada em que o ponto de vista oscilante e estonteante reflete o estado de ressaca da heroína, deitada. Parece que Grant está caminhando no teto. Na linguagem simbólica do filme, essa tomada expressa o momento de mudança da posição do personagem de Cary Grant, de playboy a Arauto, e seu efeito desorientador sobre a heroína. Grant faz o Chamado — um convite patriótico para que ela se infiltre no círculo de espiões nazistas. E quando transmite a mensagem, Grant é visto, pela primeira vez na cena, totalmente iluminado e inteiramente na vertical, o que representa o efeito da sobriedade no personagem de Bergman.
Enquanto o casal conversa, um aplique de cabelo artificial, parecido com uma coroa, escorrega da cabeça de Bergman, mostrando que aquela existência enganosa e viciada de princesa de conto de fadas tem que chegar ao fim. Simultaneamente, na trilha sonora, pode-se ouvir o som distante de um trem afastando-se da cidade, sugerindo o começo de uma longa jornada. Nessa seqüência, Hitchcock usou todos os elementos disponíveis para assinalar que se aproxima um limiar de mudança importante. O Chamado à Aventura desorienta a heroína e a repugna, mas é necessário ao crescimento dela. (p. 102)
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