quinta-feira, setembro 24, 2009

JANE AUSTEN: Mansfield Park

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Por esse tempo Sir Thomas estava certo de que sua cunhada iria reclamar os seus direitos sobre a sobrinha; a mudança de situação de Mrs. Norris e a idade atual de Fanny, pareciam, não só abolir qualquer antiga objeção de viverem juntas, mas, até, indicar que essa seria a medida mais acertada. E como a sua própria situação já não estava tão boa quanto antes, em vista das recentes perdas que havia sofrido em suas propriedades de West Índia, além das extravagâncias do filho mais velho, era para ele muito a desejar ver-se livre das despesas de manutenção da sobrinha e da obrigação de as prover no futuro. Na certeza de que tal coisa deveria se dar, falou com a mulher sobre a sua probabilidade e como Fanny estivesse presente na ocasião, ela virou-se calmamente para a sobrinha e disse: “Quer dizer, Fanny, que você vai nos deixar para viver com minha irmã? Que acha disso?”
Fanny ficou tão surpreendida que não pôde senão repetir as palavras da tia, — Vou deixá-los?
— Sim, querida; por que está tão admirada? Você morou cinco anos conosco e minha irmã sempre pensou em levá-la depois que Mr. Norris morresse. Mas você virá nos ver sempre que quiser.
A notícia foi para Fanny tão desagradável quanto inesperada. A tia Norris nunca lhe tinha feito um agrado e não lhe podia querer bem.
— Terei muita pena de ir, disse ela com voz trêmula.
— Sim, acredito que terá; é muito natural. Creio que ninguém no mundo seria tão bem tratada quanto você o foi, desde que veio para esta casa.
— Não creia que eu seja ingrata, titia, disse Fanny modestamente.
— Não, minha filha, não o creio. Sempre achei que você era uma boa menina.
— E eu nunca mais voltarei para aqui?
— Nunca, meu bem; mas pode ficar certa de que lá você será tão bem tratada quanto o foi aqui. E o fato de morar em uma casa ou em outra não fará grande diferença para você.
Fanny saiu com o coração apertado; achava que a diferença era bastante grande e que não poderia conceber a idéia de viver com a tia. Logo que encontrou Edmund, contou-lhe a sua desgraça.
— Primo, disse ela, vai acontecer uma coisa de que não estou gostando nada; e embora você esteja sempre me dizendo que eu devo procurar me habituar às coisas de que não gosto à primeira vista, neste caso creio que não me poderá convencer. De agora em diante vou passar a viver com a tia Norris.
— É verdade?
— É sim; a tia Bertram acabou de me dizer. Já está tudo combinado. Vou deixar Mansfield Park para morar na White House, creio, logo que ela se mudar para lá.
— Bem, Fanny, se o plano não fosse desagradável para você, diria que era excelente.
— Oh, primo!
— Sim, a não ser isso, tudo o mais é a favor dele. Minha tia está afinal agindo como uma pessoa sensata. Está procurando uma amiga, uma companheira exatamente onde a deve procurar e eu me sinto feliz em ver que sua avareza não interferiu. Tenho esperança de que você não se sinta muito infeliz, Fanny.
— Mas o fato é que me sentirei; não me conformo com a idéia. Gosto desta casa e de tudo o que ela tem; não gostarei de nada lá. Você sabe que eu não me sinto bem junto dela.
— Não me refiro à maneira como ela tratou você me criança; com todos nós foi a mesma, ou quase a mesma coisa. Nunca soube agradar uma criança. Mas você agora está em idade de ser tratada com mais consideração; creio que ela já está mesmo se portando melhor; e quando ela depender unicamente de você, você vai ter muita importância para ela.
— Eu nunca terei importância para ninguém.
— Quem o impede?
— Tudo. Minha situação, minha ignorância, minha timidez.
— Quanto à sua ignorância e timidez, minha cara Fanny, creia-me, você nunca teve nenhuma sombra de uma ou de outra, apenas está empregando as palavras impropriamente. Não há motivo para que você deixe de ter importância para aqueles que a conhecem. Você tem bom senso, o temperamento dócil, e um coração que, estou certo, é incapaz de receber uma bondade sem desejar retribuir. Não vejo melhores qualidades para uma amiga e uma companheira.
— É bondade sua, disse Fanny corando diante de tais elogios; não sei como agradecer a você por fazer tão bom juízo de mim. Oh! Se eu tiver de ir, hei de me lembrar de sua bondade até o último dia de minha vida.
— Não precisa ir tão longe, Fanny; é bastante que você se lembre de mim enquanto você estiver em White House. Você fala como se fosse morar a duzentas milhas daqui, em vez do outro lado do parque; e no entanto você nos pertencerá tanto quanto até aqui. As duas famílias estarão juntas todos os dias do ano. A única diferença é que você morando com sua tia, terá a educação que deveria ter. Aqui há muita gente atrás de quem você pode se esconder; mas com ela você será forçada a responder por si mesma.
— Oh! Não diga isso.
— Digo sim, e digo com prazer. Mrs. Norris é muito mais indicada do que minha mãe para cuidar de você agora. Ela tem disposição para fazer grandes coisas pelas pessoas por quem realmente se interessa.
Fanny suspirou e disse: — Não posso ver as coisas como você vê; no entanto devo reconhecer que tem mais razão do que eu e agradeço muito seu esforço para me reconciliar com o que tem de ser. Se eu pudesse acreditar que minha tia realmente se interessa por mim, seria um prazer sentir-me útil a alguém. Aqui, eu sei que não sou de utilidade a ninguém e mesmo assim sou tão apegada a este meio.
— Este meio, Fanny, você não precisa deixar, embora deixe a casa. Terá tanta liberdade de usar o parque e os jardins como sempre teve. Nem mesmo o seu constante coraçãozinho precisa amedrontar-se por causa da mudança. Terá os mesmos caminhos para andar, a mesma biblioteca, as mesmas pessoas para ver, o mesmo cavalo para montar.
— É verdade. Sim, o velho pônei querido! Ah! primo, quando me lembro de como tinha medo de montar, o terror que me dava ouvir que seria bom para minha saúde! E então o trabalho que você teve para me convencer a não ter medo, e pensar que depois de pouco tempo eu iria gostar! Vendo como você tinha razão, tenho esperança de que suas profecias sejam sempre certas.
— Estou certo de que sua permanência junto de Mrs. Norris será tão salutar para seu caráter como a equitação foi para sua saúde e da mesma forma também, para sua felicidade futura.
Assim terminou a discussão, a qual, por muito aproveitável que fosse a Fanny, foi inteiramente inútil, pois Mrs. Norris não tinha a menor intenção de levar consigo a sobrinha. Foi idéia que absolutamente não lhe ocorreu, naquela ocasião, senão como coisa de que se deveria livrar por todos os meios. E para evitar que esperassem dela uma tal atitude, instalou-se na menor casa que havia na paróquia de Mansfield, a White House, na qual apenas havia espaço suficiente para ela própria morar com as suas criadas e só um quarto vago destinado a uma amiga, — amiga essa de que ela fazia absoluta questão. Os quartos vagos no Presbitério nunca tinham sido utilizados, mas agora era imprescindível que houvesse um quarto para receber uma amiga. Contudo, nem com todas as suas precauções se livrou que a julgassem melhor do que o merecia; ou, talvez a importância que deu à necessidade daquele quarto a mais, tenha enganado Sir Thomas que imaginou tratar-se realmente de Fanny. Lady Bertram, porém, em pouco tempo esclareceu o negócio quando, inconscientemente, observou a Mrs. Norris:
— Acho, minha irmã, que quando Fanny for morar com você nós não precisamos mais conservar Miss Lee.
Mrs. Norris teve um sobressalto. — Morar comigo querida Lady Bertram! Que significa isto?
— Pois ela não vai para a sua companhia? Pensei que você tinha combinado com Sir Thomas.
— Eu! Nunca. Nunca disse uma palavra sobre isso a Sir Thomas nem ele a mim. Imagine, Fanny morar comigo! A última coisa no mundo que eu seria capaz de pensar ou que alguém poderia desejar, conhecendo-nos a nós duas. Santo Deus! Que faria eu com Fanny? Eu? Uma pobre viúva, sozinha, desamparada, inteiramente alquebrada, imprestável para qualquer coisa; que faria eu com uma menina dessa idade? Uma mocinha de quinze anos! Justamente na idade em que todas necessitam de maior atenção e cuidado e quando justamente precisam de alegria! Sem dúvida Sir Thomas não espera isso seriamente. Sir Thomas é muito meu amigo. Pessoa alguma que me queira bem, estou certa, faria tal proposta. Como se explica que Sir Thomas lhe tenha falado sobre isto?
— Na verdade não sei. Creio que ele julgou ser o melhor.
-Mas que disse ele? Não poderia ter dito ser desejo dele que eu levasse Fanny. Tenho certeza que no íntimo não poderia exigir de mim tal sacrifício.
— Não, apenas disse que o achava provável; e eu concordei com ele. Ambos pensamos que lhe seria um consolo. Mas se você não quer, não se fala mais nisso. Ela não nos incomoda aqui.
— Minha cara irmã, se você refletir sobre a minha triste situação, compreenderá que ela não me poderá reconfortar. Agora veja, uma pobre viúva desolada como eu, privada do melhor dos maridos, a saúde gasta nas longas vigílias que passei tratando-o, o espírito ainda pior, toda a minha paz neste mundo destruída, com uma renda apenas suficiente para manter-me em situação digna e viver de modo a não desonrar a memória do querido ausente — que possível consolo poderei encontrar em carregar sobre os ombros um peso como Fanny? Ainda que estivesse em condições de poder desejar isto para meu próprio bem, não faria uma tal injustiça à pobre menina. Ela está em boas mãos e por certo será muito feliz. Eu que me arranje como puder com as minhas tristezas e dificuldades.
— Então você não se importa de viver sozinha?
— Minha cara Lady Bertram, para que sirvo eu senão para a solidão? Uma vez ou outra espero receber uma amiga em minha casa (terei sempre um quarto para receber uma amiga); mas a maior parte dos meus dias futuros serão passados na maior solidão. E não desejo mais nada.
-Creio, minha irmã, que as coisas não estão assim tão ruins para você, considerando-se o que disse Sir Thomas, que você vai receber seiscentas libras por ano.
— Não me queixo. Sei que não posso viver como vivia, mas hei de poupar o quanto possa e aprender a administrar melhor minhas economias. Fui uma dona de casa bastante liberal mas agora não me envergonharei de ser mais econômica. Não só a minha renda quanto a minha situação estão agora muito diferentes. Não se pode esperar que eu continue com todos os encargos que o pobre Mr. Norris tinha como pastor desta paróquia. Ninguém sabe o que se gastava com mantimentos lá em casa, com os estranhos que entravam e saíam a toda hora. Em White House essas coisas têm que ser melhor controladas. Preciso viver dentro dos meus rendimentos se não quiser ficar na miséria; confesso que teria grande satisfação se pudesse no fim de cada ano guardar nem que fosse uma pequena quantia.
— E garanto que guardará. Você sempre guardou, não é?
— Meu fim, Lady Bertram, é ser útil àqueles que vierem depois de mim. É para bem de seus filhos que desejo enriquecer. Não penso em mais nada; apenas desejaria deixar alguma coisa para eles.
— Você é muito boa, mas não deve incomodar-se por causa deles. Todos ficarão bem de vida. Isto compete a Sir Thomas.
— Pois olhe, a fortuna de Sir Thomas ficará bem desfalcada se as suas propriedades em Antigua continuarem do jeito que estão.
— Ora, isto logo se arranjará. Sei que Sir Thomas já está providenciando.
— Bem, Lady Bertram, disse Mrs. Norris levantando-se para sair. — Digo apenas que meu único desejo é ser útil à sua família; e assim, se por acaso Sir Thomas lhe falar novamente em eu levar Fanny, diga-lhe por favor que minha saúde e meu estado de espírito mo impedem absolutamente; além disso não teria realmente acomodações para Fanny, visto que preciso do único quarto vago para uma amiga.
Cap. III (trad. Rachel de Queiroz)

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