Tradução: Marcio de Paula S. Hack
“Em lugar nenhum, nem mesmo na Holanda, onde a correspondência entreas paisagens reais e as pequenas e refinadas pinturas é tão constantee tão graciosa, arte e vida parecem tão interligadas e, por assimdizer, tão consanguíneas. Todo o esplendor de luz e de cores, toda aatmosfera e história venezianas estão nas paredes e nos tetos dospalácios; e todo o gênio dos mestres, todas as imagens e visões quepuseram em suas telas, parecem tremer sob a luz do sol e dançar porsobre as ondas. Este é o interesse perpétuo do lugar – que você vivenuma espécie de conhecimento, como se em uma nuvem rósea. Não se vaiàs igrejas e galerias à procura de algo que as ruas não oferecem;vai-se a elas porque oferecem uma delicada reprodução das coisas quenos cercam. Toda Veneza foi ao mesmo tempo modelo e artista, e a vidaera tão pictórica que a arte não podia deixar de sê-lo. Mesmo comtodas as decadências, a vida é ainda pictórica, e este fato dá umfrescor extraordinário à percepção das grandes obras venezianas.Você as julga não como um connoiseur, mas como um homem do mundo, ese deleita por que são muito sociais e verdadeiras. Talvez, de todasas obras de arte igualmente grandes, elas exijam menos reflexão daparte daquele que as vê – o gozo delas não é tão cheio demistério. A reflexão apenas confirma a sua admiração, mas quase quese envergonha de mostrar sua face. Estas coisas falam com tal franquezae benignidade aos sentidos que, mesmo quando atingem o estilo maiselevado – como na “Apresentação da pequena Virgem no Templo”, deTintoretto – são ainda assim mais íntimas.
Mas é difícil, como eu dizia, exprimir tudo isso, e também édoloroso tentá-lo – doloroso por que, na memória das horas perdidas,tão plenas de beleza, a consciência da perda presente oprime. Horasdeliciosas, envoltas em luz e silêncio, tê-las conhecido uma vez épossuir sempre um terrível ideal de satisfação. Certas manhãsadoráveis de maio e junho retornam com uma objetividadeindestrutível. Veneza não está coberta de flores nesta estação, àmaneira de Roma e Florença; mas o próprio mar e o próprio céuparecem florescer e farfalhar. A gôndola espera nos degraus banhadospelas ondas, e se você é sábio, tomará seu lugar ao lado de umacompanhia judiciosa. Tal companhia em Veneza deve, é óbvio, ser dosexo que julga com mais fineza. Uma mulher inteligente que conhece asua Veneza parece duplamente inteligente, e mulher nenhuma teria apercepção embotada ao notar que é inevitável parecer graciosaenquanto levam-na por sobre as ondas. O belo Pasquale, de remo erguido,espera por seu comando, sabendo, assim por alto, a partir daobservação dos seus hábitos, que sua intenção é ir ver uma ouduas pinturas. Talvez não importe demais qual pintura você escolha:é tudo tão charmoso. É charmoso vagar pelas luzes e sombras decanais labirínticos, com arquitetura perpétua acima, e fluidezperpétua abaixo. É charmoso desembarcar nos degraus polidos de umpequeno campo vazio – uma praça alquebrada e ensolarada, com um velhopoço no meio, uma velha igreja de um lado e altas janelas venezianasolhando de cima. Por vezes, as janelas estão desocupadas; noutras, umasenhora num robe puído se inclina distraidamente sobre o peitoril.Sempre há um velho estendendo o seu chapéu, pedindo moedas; hásempre três ou quatro garotos se esquivando de possíveis estocadas deguarda-chuva enquanto o precedem, à maneira dos guardiães, à porta daigreja.”
[1882]
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Trecho da parte V do ensaio “Venice”, em Italian Hours [Penguin, 1995], páginas 21-22.
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Trecho da parte V do ensaio “Venice”, em Italian Hours [Penguin, 1995], páginas 21-22.
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