sexta-feira, janeiro 12, 2007

Atonement

"Não há ninguém, nenhuma entidade ou ser mais elevado, a que ela possa apelar, ou quem possa reconciliar-se, ou que possa perdoá-la.Não há nada fora dela. Na sua imaginação ela determina os limites e as condições. Não há reparação possível para Deus nem para os romancistas, nem mesmo para romancistas ateus. Desde o início a tarefa era inviável, e era justamente essa a questão. A tentativa era tudo” p. 444


“A partir desse ponto de vista novo e íntimo, ela aprendeu uma coisa simples e óbvia que sempre soubera, e que todos sabiam: uma pessoa é, acima de tudo, uma coisa material, fácil de danificar e difícil de consertar” p.364



Resenha de Martim Vasques da Cunha:
Na verdade, o livro que pensavámos que era de Ian McEwan revela-se ser de Briony Tallis, num xeque-mate metalingüístico digno de Machado de Assis. Diagnosticada com progressiva paralisia cerebral, ela decide contar a sua versão dos fatos antes que perca o controle de sua consciência e de sua memória. Com o anúncio da morte, Briony encontra na literatura a única maneira de redimir sua alma, mesmo que isso implique em sacrificar alguns fatos no lugar de uma ficção mais verossímil.

É nesta lacuna entre o que é o real e o que é o imaginário que a literatura vive, mas a peregrinação de Briony se torna comovente porque ela busca nada mais, nada menos que o perdão daqueles que seu ato prejudicou. No encontro final entre Briony, Robbie e Cecilia, os dois perguntam a ela porque não havia decidido antes mudar seu testemunho. Briony apenas responde: "Porque cresci". Parece ser uma resposta tola. Contudo, como diria Eric Voegelin, são as respostas aparentemente simples que mostram os verdadeiros "saltos no ser" que a consciência provoca no espírito humano. Briony teve que crescer com seu pecado para assumir que o realizou, aceitar sua responsabilidade e, enfim, querer recuperar o que perdeu com seu erro. É justamente essa qualidade que nos torna seres humanos, e algo além de uma massa de carbono flutuante ou de um mero animal: a capacidade de reconhecer a fragilidade de nossa podridão e, a partir desta conclusão, querer fazer o bem, por mais dolorido que este seja. O grande problema da arte (e, por conseqüência, da escrita) é captar as nuances de uma alma que toma essa decisão, uma das manifestações mais nobres da alma e aquela que indica o caminho para o equilibrio da virtude.

Assim, fica palpável a visão de Ian McEwan de que a arte não só deve ter uma função moral, como também é uma forma limitadora de retratar a complexidade da vida. Nesta encruzilhada, nasce o fascínio da literatura como a possibilidade do homem ter um gosto da divindade. Ao mesmo tempo que não há expiação para os homens, talvez não haja expiação para Deus, que age como um escritor que manipula como quiser suas criaturas, pelo menos segundo o pensamento de Briony, já velha e esperando somente pelo sono da morte. Mas este sono é perigoso: seus personagens podem se tornar sombras de uma realidade que nem a mente, em toda a sua profundidade, pode iluminar- uma realidade que nenhuma imaginação pode fazer a devida reparação.





Resenha de Sérgio Rodrigues:
“Reparação”, lançado na Inglaterra em 2001, é a meu ver um dos grandes livros deste início de milênio. Consigo imaginá-lo sendo lido dentro de cem anos, isto é, caso ainda se leia alguma coisa daqui a cem anos. McEwan tem a capacidade rara de trabalhar com a forma tradicional do romance, de corte, digamos, oitocentista, e atualizá-la de modo sutil mas radical. Essa atualização pode se dar pela temática, quando a atenção quase maníaca do autor a detalhes de composição na horizontal e na vertical – na ambientação e na psicologia dos personagens – é posta a serviço de histórias agudamente atuais, como em “A criança no tempo” e “Sábado”. Mas também pode, de forma mais fecunda, estar no próprio núcleo do livro, num pacto novo entre o que se conta, como se conta e por que se conta, numa desnaturalização da narrativa que não deixa dúvida: eis uma literatura que não passou pelo século XX fingindo ignorar seus bombardeios estéticos, embora também não se tenha deixado estilhaçar por eles. É o caso de “Reparação”.

O salto reflexivo do romance de Ian McEwan, que não vou entregar aqui para não estragar o prazer de futuros leitores, bate o recorde mundial de relevância dramática com uma folga tão absurda que, de certa forma, me curou da obsessão com a metalinguagem.

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