“A partir desse ponto de vista novo e íntimo, ela aprendeu uma coisa simples e óbvia que sempre soubera, e que todos sabiam: uma pessoa é, acima de tudo, uma coisa material, fácil de danificar e difícil de consertar” p.364
Resenha de Martim Vasques da Cunha:
Na verdade, o livro que pensavámos que era de Ian McEwan revela-se ser de Briony Tallis, num xeque-mate metalingüístico digno de Machado de Assis. Diagnosticada com progressiva paralisia cerebral, ela decide contar a sua versão dos fatos antes que perca o controle de sua consciência e de sua memória. Com o anúncio da morte, Briony encontra na literatura a única maneira de redimir sua alma, mesmo que isso implique em sacrificar alguns fatos no lugar de uma ficção mais verossímil.
É nesta lacuna entre o que é o real e o que é o imaginário que a literatura vive, mas a peregrinação de Briony se torna comovente porque ela busca nada mais, nada menos que o perdão daqueles que seu ato prejudicou. No encontro final entre Briony, Robbie e Cecilia, os dois perguntam a ela porque não havia decidido antes mudar seu testemunho. Briony apenas responde: "Porque cresci". Parece ser uma resposta tola. Contudo, como diria Eric Voegelin, são as respostas aparentemente simples que mostram os verdadeiros "saltos no ser" que a consciência provoca no espírito humano. Briony teve que crescer com seu pecado para assumir que o realizou, aceitar sua responsabilidade e, enfim, querer recuperar o que perdeu com seu erro. É justamente essa qualidade que nos torna seres humanos, e algo além de uma massa de carbono flutuante ou de um mero animal: a capacidade de reconhecer a fragilidade de nossa podridão e, a partir desta conclusão, querer fazer o bem, por mais dolorido que este seja. O grande problema da arte (e, por conseqüência, da escrita) é captar as nuances de uma alma que toma essa decisão, uma das manifestações mais nobres da alma e aquela que indica o caminho para o equilibrio da virtude.
Resenha de Sérgio Rodrigues:
“Reparação”, lançado na Inglaterra em 2001, é a meu ver um dos grandes livros deste início de milênio. Consigo imaginá-lo sendo lido dentro de cem anos, isto é, caso ainda se leia alguma coisa daqui a cem anos. McEwan tem a capacidade rara de trabalhar com a forma tradicional do romance, de corte, digamos, oitocentista, e atualizá-la de modo sutil mas radical. Essa atualização pode se dar pela temática, quando a atenção quase maníaca do autor a detalhes de composição na horizontal e na vertical – na ambientação e na psicologia dos personagens – é posta a serviço de histórias agudamente atuais, como em “A criança no tempo” e “Sábado”. Mas também pode, de forma mais fecunda, estar no próprio núcleo do livro, num pacto novo entre o que se conta, como se conta e por que se conta, numa desnaturalização da narrativa que não deixa dúvida: eis uma literatura que não passou pelo século XX fingindo ignorar seus bombardeios estéticos, embora também não se tenha deixado estilhaçar por eles. É o caso de “Reparação”.
O salto reflexivo do romance de Ian McEwan, que não vou entregar aqui para não estragar o prazer de futuros leitores, bate o recorde mundial de relevância dramática com uma folga tão absurda que, de certa forma, me curou da obsessão com a metalinguagem.
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