'Retrato de uma senhora', publicado pela primeira vez em 1881, é o primeiro grande romance de Henry James, e talvez sua obra máxima. Num século em que a esposa burguesa insatisfeita tornou-se um personagem literário central, e o adultério um motivo romanesco recorrente, Henry James colocou em cena uma heroína singular, cuja carência essencial é de outra ordem. Com uma narrativa que, astuciosamente, começa lenta, quase contemplativa, e aos poucos se acelera, ganhando dramaticidade, James constrói sua história como um jogo em que cada coisa se transmuta em seu oposto - liberdade em destino, afeto em traição, pureza em artimanha - e vice-versa.
COMEÇO....
Em determinadas circunstâncias, há poucas horas na vida mais agradáveis do que aquela dedicada à cerimônia conhecida como chá da tarde. Há circunstâncias em que, tomemos ou não o chá - algumas pessoas, logicamente, jamais o fazem -, a situação é, em si, encantadora. As que tenho em mente ao começar a narrativa desta simples história criaram um cenário admirável para um inocente passatempo. Os apetrechos do pequeno banquete haviam sido dispostos sobre o gramado de uma velha casa de campo inglesa, no que eu poderia chamar de perfeito decorrer de uma esplêndida tarde de verão. Parte da tarde já se esvaíra, mas boa parte dela ainda restava, e o que ali havia era da mais fina e rara qualidade. O verdadeiro crepúsculo tardaria ainda algumas horas; porém a torrente de luz de verão já refluía, a atmosfera tornara-se branda, as sombras alongavam-se sobre a relva macia e densa. Porém cresciam lentas; e a cena expressava aquela sensação de inatividade ainda por vir, que é talvez a fonte principal do prazer de se viver tal cena nesse horário. Das cinco às oito horas é, em certas ocasiões, uma pequena eternidade; mas numa ocasião como esta, o intervalo só podia ser uma eternidade de prazer. As pessoas nela envolvidas absorviam esse prazer tranqüilamente, e não pertenciam ao sexo que supostamente fornece os habituais partidários da cerimônia que mencionei. As sombras sobre o gramado perfeito em retilíneas e angulosas; eram as sombras de um velho sentado em uma ampla cadeira de vime próxima à mesa baixa sobre a qual fora servido o chá, e as de dois homens mais jovens, andando de um lado para o outro, conversando à toa diante dele. O velho segurava a xícara nas mãos; era uma xícara de tamanho inusitado, de desenho diferente do restante do aparelho e decorada com cores brilhantes. Ele se servia de seu conteúdo com muita circunspecção, mantendo-a por longo tempo próxima a seu queixo, com a face voltada em direção à casa. Seus companheiros haviam terminado o chá ou estavam indiferentes a tal privilégio; fumavam cigarros enquanto continuavam a passear por ali. Um deles, de quando em quando, ao passar olhava com certa atenção para o homem mais velho, que, sem notar que estava sendo observado, mantinha o olhar fixo sobre a suntuosa fachada vermelha de sua residência. A casa que se erguia além do gramado era uma estrutura que merecia tal consideração e era o objeto mais característico no quadro peculiarmente inglês que tentei esboçar.Erguia-se sobre uma colina baixa, acima do rio - sendo este o Tâmisa, a cerca de sessenta e cinco quilômetros de Londres. Uma fachada de tijolos vermelhos e cumeeira alta, com a aparência marcada por proezas pictóricas infligidas pelo tempo e pelo clima que, no entanto, apenas a tinham melhorado e refinado, apresentava ao gramado suas heras, suas chaminés agrupadas, suas janelas afogadas em trepadeiras. A casa possuía um nome e uma história; o velho cavalheiro tomando seu chá teria tido o maior prazer em contar-lhes essas coisas: como ela fora construída no reinado de Eduardo VI, oferecera hospitalidade por uma noite para a grande Elizabeth (cuja augusta pessoa se estendera numa cama imensa, magnífica e terrivelmente angulosa que ainda constituía a principal honra dos aposentos de dormir), fora bastante atingida e desfigurada durante as guerras de Cromwell, e então, durante a Restauração, reparada e muito ampliada; e como, finalmente, após haver sido remodelada e descaracterizada no século XVIII, passara para a cuidadosa guarda de um arguto banqueiro norte-americano, que a comprara originalmente porque (devido a circunstâncias demasiadamente complicadas para expor aqui) lhe foi oferecida por uma pechincha: comprara-a com muitas queixas por sua feiúra, sua antigüidade, sua falta de conforto, e agora, vinte anos depois, tornara-se consciente de sua verdadeira paixão estética por ela, de modo que conhecia todos os seus recantos e poderia dizer exatamente onde postar-se para vê-los em harmonia e exatamente a hora em que as sombras de suas várias protuberâncias - que caíam tão suavemente sobre a cálida e fatigada alvenaria de tijolos -tinham a medida apropriada. Além disso, como já mencionei, ele poderia desfiar a maioria dos sucessivos proprietários e ocupantes, vários dos quais eram de fama publicamente reconhecida; fazendo isso, entretanto, com uma convicção velada de que a última fase de seu destino não era a menos honrosa. A fachada da casa voltada para aquela porção do gramado na qual estamos interessados não era a da entrada principal; esta localizava-se em local bem diverso. A privacidade, aqui, reinava soberana, e o amplo carpete de relva que cobria a parte plana do topo da colina parecia ser apenas a extensão de um luxuoso interior. Os grandes e silenciosos carvalhos e faias projetavam sombra tão densa como cortinas de veludo, e o local estava mobiliado como um aposento, com poltronas estofadas, tapetes de cores vivas, livros e papéis que jaziam sobre a grama. O rio ficava a certa distância; onde o terreno começava a descer, o gramado propriamente dito terminava. Mas mesmo assim era encantadora a caminhada até a água.O velho cavalheiro à mesa de chá, que viera da América do Norte trinta anos antes, trouxera consigo, no alto de sua bagagem, a fisionomia americana; e não somente a trouxera consigo, como também a conservara em perfeito estado, de modo que, caso necessário, poderia tê-la levado de volta a seu país de origem com total confiança. No momento, obviamente, contudo, ele não parecia disposto a transferir-se; suas viagens tinham terminado e agora ele desfrutava do repouso que precede o grande repouso. Tinha o rosto fino e bem barbeado, com feições proporcionalmente distribuídas e uma expressão de plácida sagacidade. Era evidentemente um rosto no qual a amplitude de representação não era grande, de forma que o ar de argúcia satisfeita era de ainda mais mérito. Parecia dizer que seu portador fora bem-sucedido na vida, mas também que todo seu sucesso não fora exclusivo e hostil, mas possuíra muito da inocência do fracasso. Ele certamente tinha grande experiência dos homens, mas percebia-se uma simplicidade quase rústica no débil sorriso que lhe pairava na face magra e larga e lhe iluminava os olhos bem-humorados, quando ele, por fim, pousou com lentidão e cuidado a grande xícara de chá sobre a mesa. Estava bem vestido, com trajes de um preto lustroso; mas tinha um xale dobrado sobre os joelhos, e os pés enfiados em chinelos grossos e bordados. Um belo collie estava deitado sobre a grama próximo de sua cadeira, olhando para o rosto do dono quase com tanta ternura quanto a que este dedicava à ainda mais dominadora fisionomia da casa; e um pequeno terrier, alvoroçado e de pêlo eriçado, dispensava vaga atenção aos outros cavalheiros.Um deles era um homem notavelmente bem-apessoado, de trinta e cinco anos, com feições tão inglesas quanto não o eram as do idoso cavalheiro que acabei de descrever; um rosto muito atraente, corado, claro e franco, de feições firmes e corretas, olhos de um cinza intenso e o rico adorno de uma barba castanha. Tal pessoa possuía um certo ar afortunado, brilhante e excepcional - o ar de um temperamento feliz, fertilizado por uma elevada civilização - que teria feito qualquer observador quase invejá-lo ao acaso. Calçava botas com esporas, como se houvesse acabado de chegar de uma longa cavalgada; usava chapéu branco, que parecia ser grande demais para ele; mantinha as mãos às costas, e uma delas - de punho largo, branco e bem talhado - apertava um par de luvas de couro de cachorro, manchadas.Seu companheiro, que a seu lado dava largas passadas pelo gramado, era uma pessoa de tipo bem diferente que, embora podendo talvez despertar grave curiosidade, não teria, como o outro, provocado em alguém o desejo quase imprudente de estar em seu lugar. Alto, magro, de constituição débil e deselegante, tinha um rosto feio e doentio, embora espirituoso e fascinante, dotado, mas de modo algum adornado, de um bigode irregular e suíças. Parecia inteligente e enfermo - combinação absolutamente infeliz -, e vestia um paletó de veludo marrom. Tinha as mãos nos bolsos, e havia algo na maneira como o fazia que mostrava que o hábito era inveterado. Seu modo de andar era trôpego e errante; não tinha muita firmeza nas pernas. Como já disse, sempre que passava pelo velho na cadeira, pousava o olhar nele; e nesse momento, relacionando os rostos, seria fácil perceber que se tratava de pai e filho. O pai cruzou finalmente o olhar do filho e deu um sorriso suave em resposta.- Estou me sentindo muito bem - disse ele.- Bebeu seu chá? - perguntou o filho.- Sim, e apreciei-o bastante.- Quer mais um pouco?O velho ponderou, plácido.- Bem, creio que esperarei um pouco. - Seu sotaque era norte-americano.- Está com frio? - indagou o filho. O pai esfregou lentamente as pernas:- Bem, não sei. Só poderei dizer quando sentir.- Talvez alguém possa sentir por você - disse o rapaz, rindo.- Oh, espero que alguém sempre sinta por mim! O senhor não sente por mim, lorde Warburton?- Oh, sim, imensamente - disse prontamente o cavalheiro mencionado como lorde Warburton. - Sou obrigado a dizer que o senhor me parece maravilhosamente confortável.- Bem, acredito que esteja, sob muitos aspectos. - E o velho baixou o olhar para o xale verde, ajeitando-o sobre os joelhos. - O fato é que tenho estado confortável durante tantos anos que devo ter me acostumado tanto a isso a ponto de já não saber mais.- Sim, esse é o fastio do conforto - disse lorde Warburton. - Só nos damos conta quando estamos desconfortáveis.- Parece-me que somos muito exigentes - notou seu companheiro.- Oh, sim, não há dúvida de que somos exigentes - murmurou lorde Warburton. E então os três permaneceram em silêncio por algum tempo; os dois mais jovens de pé, olhando para o terceiro, que dali a pouco pediu mais um pouco de chá. - Eu teria imaginado que o senhor se sentiria muito infeliz com esse xale - continuou lorde Warburton, enquanto seu companheiro enchia novamente a xícara do velho.- Oh, não, ele deve ficar com o xale! - exclamou o cavalheiro do paletó de veludo. - Não coloque essas idéias na cabeça dele.- Ele pertence à minha mulher - disse o velho, simplesmente.- Se é por razões sentimentais... - E lorde Warburton fez um gesto de desculpas.- Creio que deva devolvê-lo quando ela chegar - continuou o velho.- Por favor, não faça nada disso. Fique com ele para cobrir suas velhas pernas.- Ora, você não deve criticar minhas pernas - disse o velho. - Acho que são tão boas quanto as suas.- Oh, o senhor tem toda a liberdade para criticar as minhas - respondeu seu filho, estendendo-lhe a xícara.- Ora, somos dois inválidos; não creio que haja muita diferença.- Sou-lhe muito grato por chamar-me de inválido. Como está o chá?- Bem, um tanto quente.- Isso deve ser considerado um mérito.- Há grande mérito, realmente - murmurou o velho, bondosamente. - Ele é um ótimo enfermeiro, lorde Warburton.- Não é um pouco desajeitado? - perguntou o lorde.- Oh, não, ele não é desajeitado, considerando-se que também é um inválido. É ótimo enfermeiro, para um doente. Eu o chamo de meu enfermeiro doente, porque ele próprio está doente.- Ora, vamos, papai! - exclamou o rapaz feio.- Mas você está; gostaria que não estivesse. Porém creio que não pode evitar isso.- Posso tentar; é uma idéia - disse o rapaz.- Já ficou doente, lorde Warburton? - perguntou o velho.Lorde Warburton refletiu por um momento.- Sim, senhor, fiquei uma vez, no golfo Pérsico.- Ele está brincando com o senhor, papai - disse o outro jovem. - É só gracejo.- Bem, parece haver muitos gracejos hoje em dia - respondeu o pai, serenamente. - De qualquer modo, não parece que o senhor esteve doente, lorde Warburton.- Ele está farto da vida; estava me falando justamente sobre isso; falando sem parar sobre o assunto - disse o amigo de lorde Warburton.- Isso é verdade, senhor? - perguntou o velho, sério.- Se é, seu filho não me ofereceu nenhum consolo. Ele é um péssimo parceiro para se conversar, um cínico completo. Parece não acreditar em coisa alguma.- Esse é outro gracejo - disse a pessoa acusada de cinismo.- É porque sua saúde é ruim - explicou o velho a lorde Warburton. - Afeta-lhe a mente e matiza sua maneira de encarar as coisas; parece que ele sente que jamais teve uma chance. Porém tudo isso é quase só na teoria, sabe, não parece afetar-lhe o ânimo. Quase nunca o vi desanimado - mais ou menos como está agora. Ele geralmente me alegra.O rapaz assim descrito olhou para lorde Warburton e riu.- Isso é um elogio exaltado ou uma acusação de leviandade? Gostaria que eu pusesse em prática minhas teorias, papai?- Por Deus, veríamos coisas bastante estranhas! - exclamou lorde Warburton.- Espero que não tenha adotado esse tom - disse o velho.- O tom de Warburton é pior que o meu; ele finge estar entediado. Eu não estou nem um pouco entediado; até considero a vida interessante demais.- Ah, interessante demais; não deve permitir que ela seja assim, sabe disso!- Jamais fico entediado quando venho aqui - disse lorde Warburton. - A conversa é sempre inusitadamente boa.- Isso é outro gracejo? - perguntou o velho. - O senhor não tem desculpa de se sentir entediado em lugar algum. Quando eu tinha a sua idade, jamais ouvi falar de algo semelhante.- O senhor deve ter amadurecido bem tarde.- Não, amadureci bem rápido; esse foi exatamente o motivo. Quando eu tinha vinte anos de idade, já estava muitíssimo amadurecido. Trabalhava com unhas e dentes. O senhor não se sentiria entediado se tivesse o que fazer; mas vocês, jovens, são todos ociosos. Pensam demais no próprio prazer. São exigentes demais, indolentes demais e ricos demais.- Ah, alto lá - exclamou lorde Warburton. - O senhor não é a pessoa mais indicada para acusar um semelhante de ser rico demais!- Diz isso porque sou banqueiro? - perguntou o velho.- Por isso, se quiser, e porque o senhor tem, não é mesmo?, recursos ilimitados.- Ele não é muito rico - defendeu-o misericordiosamente o rapaz. - Distribuiu uma quantidade imensa de dinheiro.- Bem, suponho que o dinheiro era dele - disse lorde Warburton -; e, nesse caso, haveria maior prova de riqueza? Não está certo um benfeitor público dizer que outros prezam demais o prazer.- Papai preza muito o prazer... dos outros. O velho meneou a cabeça.- Não tenho pretensões de ter contribuído em nada para a diversão de meus contemporâneos.- Meu caro pai, o senhor é modesto demais!- Isso é outro gracejo, senhor - disse lorde Warburton.- Vocês, jovens, gracejam demais. Quando não há mais do que gracejar, não lhes resta nada.- Felizmente há sempre do que gracejar - observou o rapaz feioso.- Não acredito nisso, acredito que as coisas estão se tornando mais sérias. E vocês, jovens, descobrirão que estou certo.- A crescente seriedade das coisas. Essa é a grande oportunidade para gracejos.- Terão que ser gracejos cruéis - disse o velho. - Estou convencido de que haverá grandes mudanças; e nem todas para melhor.- Concordo plenamente com o senhor - declarou lorde Warburton. - Tenho absoluta certeza de que haverá grandes mudanças e que todo tipo de coisas estranhas acontecerá. Eis por que encontro tanta dificuldade em pôr em prática seu conselho; como sabe, disse-me outro dia que eu deveria "agarrar-me" a alguma coisa. Hesito, porém, em agarrar-me a algo que, no momento seguinte, poderá ser mandado para o espaço.- Você deveria agarrar-se a uma bela mulher - disse seu companheiro. - Ele está muito empenhado em apaixonar-se - acrescentou, à guisa de explicação, dirigindo-se ao pai.- As belas mulheres também podem ir pelos ares! - exclamou lorde Warburton.- Não, não, elas permanecerão firmes - retorquiu o velho -; não serão afetadas pelas mudanças sociais e políticas que acabei de mencionar.- Quer dizer que elas não serão abolidas? Muito bem, então lançarei as mãos sobre uma tão logo seja possível e a amarrarei ao pescoço como um salva-vidas.- As damas nos salvarão - disse o velho -; quero dizer, as melhores o farão - pois faço uma distinção entre elas. Corteje uma boa mulher e case-se com ela, e sua vida se tornará muito mais interessante.Um silêncio momentâneo marcou, talvez, por parte dos ouvintes, o senso da magnanimidade desse discurso, pois não era segredo nem para o filho nem para o visitante que sua própria experiência matrimonial não fora feliz. Como dissera, no entanto, ele fazia uma distinção; e essas palavras podem ter tido a intenção de uma confissão de erro pessoal; embora, é claro, não fosse apropriado que nenhum de seus dois companheiros observasse que aparentemente a dama de sua escolha não fora das melhores.- Se eu me casar com uma mulher interessante, ficarei interessado; é isso que quer dizer? - perguntou lorde Warburton. - Não estou nem um pouco entusiasmado para casar - seu filho deturpou minhas intenções. Mas não sei o que uma mulher interessante poderia fazer por mim.- Eu gostaria de ver qual é a sua idéia de uma mulher interessante - disse-lhe o amigo.- Meu caro, não se podem ver idéias, especialmente idéias tão altamente etéreas como as minhas. Se ao menos eu mesmo conseguisse vê-las, isso já seria um grande avanço.- Bem, o senhor pode se apaixonar por quem lhe agradar; porém não deve fazê-lo por minha sobrinha - disse o velho.O filho caiu na risada.- Ele pensará que o senhor diz isso como uma provocação! Meu querido pai, o senhor convive com os ingleses há trinta anos e já assimilou muitas de suas expressões. Mas ainda não aprendeu o que eles não dizem!- Eu digo o que me agrada - respondeu o velho, com toda a serenidade.- Não tenho a honra de conhecer sua sobrinha - disse lorde Warburton. - Creio que é a primeira vez que ouço falar dela.- Ela é sobrinha de minha esposa; a senhora Touchett a está trazendo para a Inglaterra.Então o jovem senhor Touchett explicou:- Minha mãe, como sabe, passou o inverno na América, e estamos aguardando sua volta. Ela escreveu dizendo que descobriu uma sobrinha e convidou-a a vir também.- Entendo, muito gentil da parte dela - disse lorde Warburton. - A jovem é interessante?- Sabemos tanto quanto você a respeito dela; minha mãe não entrou em detalhes. Ela se comunica conosco principalmente por telegramas, e seus telegramas são bastante inescrutáveis. Dizem que as mulheres não sabem redigi-los, mas minha mãe dominou completamente a arte da condensação. "Cansada América, clima quente horrível, volto Inglaterra com sobrinha, primeiro navio cabine decente." É esse o tipo de mensagem que recebemos dela - essa foi a última. Porém houve uma outra antes, que acredito conter a primeira menção à sobrinha. "Troquei hotel, muito ruim, funcionário insolente, endereço aqui. Adotei filha da irmã, morta ano passado, viagem à Europa, duas irmãs, muito independente." Meu pai e eu não conseguimos decifrar de todo o conteúdo; pode admitir muitas interpretações.- Mas há uma coisa bastante clara - disse o velho -; ela passou um sabão no funcionário do hotel.- Nem sequer disso estou certo, uma vez que ele a tirou de perto. A princípio pensamos que a irmã mencionada pudesse ser a irmã do funcionário; porém a menção subseqüente de uma sobrinha parece provar que a alusão refere-se a uma de minhas tias. Aí restou a questão sobre de quem eram as duas outras irmãs; são provavelmente duas das filhas de minha falecida tia. Mas quem é "muito independente", e em que sentido o termo é usado? Esse ponto ainda não está esclarecido. A expressão aplica-se especificamente à jovem que minha mãe adotou, ou caracteriza suas irmãs? E é usada em sentido moral ou financeiro? Significa que elas ficaram em boa situação, ou que elas não desejam assumir nenhuma obrigação? Ou simplesmente significa que elas gostam de fazer as coisas do seu jeito?- O que quer que signifique além disto, certamente é isto o que quer dizer - observou o senhor Touchett.- Julgarão por si mesmos - disse lorde Warburton. - Quando chega a senhora Touchett?- Estamos completamente no escuro; assim que encontrar uma cabine decente em algum navio. Talvez ela ainda esteja à espera; ou quem sabe até já desembarcou na Inglaterra.- Nesse caso, provavelmente teria telegrafado a vocês.- Ela jamais telegrafa quando se espera que o faça, somente quando não se espera - disse o velho. - Ela gosta de apanhar-me de surpresa; pensa que me encontrará fazendo algo errado. Ainda não conseguiu, mas tampouco desanimou.- É o que toca a ela no acordo familiar, a independência que menciona. - A apreciação do filho sobre o assunto em questão era mais favorável. - Seja qual for a independência daquelas jovens, não é páreo para a dela. Ela gosta de fazer tudo por conta própria e não acredita que alguém seja capaz de ajudá-la. Ela me considera tão útil quanto um selo sem cola, e jamais me perdoaria se eu me atrevesse a ir até Liverpool para recebê-la.- Poderei ao menos ser informado quando sua sobrinha chegar? - perguntou lorde Warburton.- Somente com a condição de não se apaixonar por ela! - retrucou o senhor Touchett.- Isso me parece muito duro. Não me considera bom o bastante?- Considero-o bom demais, porque não gostaria que ela o desposasse. Ela não veio até aqui à procura de um marido, espero; tantas jovens estão fazendo isso, como se não houvesse bons partidos em seu país de origem. E talvez ela esteja comprometida; as moças norte-americanas geralmente têm compromisso, creio eu. Além disso, não estou certo, afinal de contas, de que o senhor seria um bom marido.- Provavelmente ela está comprometida; conheci muitas moças norte-americanas, e elas sempre estavam. Mas não creio que isso faça alguma diferença, dou-lhe minha palavra. Quanto ao fato de eu ser um bom marido - prosseguiu o visitante do senhor Touchett -, também não estou certo a respeito disso. Só me resta tentar!- Tente quanto lhe aprouver, mas não com minha sobrinha - sorriu o velho, cuja oposição à idéia era bastante jocosa.- Bem - disse lorde Warburton em tom ainda mais jocoso -, é possível, afinal de contas, que ela não valha sequer a tentativa!
"Um caráter assim" dizia a si mesmo " ter a chance de ter essa força ardente em ação é a coisa mais bela da natureza . É mais bela que a mais bela obra de arte : um baixo-relevo grego, um grande Ticiano, uma catedral gótica. É muito agradável ser tão bem tratado por quem menos se tinha esperado. Eu nunca estive tão melancólico, tão entediado como na semana anterior à chegada dela; nunca teria esperado que algo agradável fosse acontecer. De repente, recebo um Ticiano pelo correio, para pendurar na parede, um baixo relevo grego para pregar sobre a lareira. A chave de um belo palácio é posta em minha mão e alguém me diz que posso entrar e admirar. Meu pobre rapaz, você foi muito ingrato e agora é mlehor que fique bem quietinho e não reclame mais" trad. Gilda Stuart., Cia de Bolso, p. 88
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Harold Bloom, em Como e Por que Ler.
Por que ler Retrato de uma Senhora! Por muitas razões, e para obter imensos benefícios, mas o cultivo de uma consciência individual seria, certamente, um objetivo primeiro, bem como o grande benefício decorrente de uma leitura intensa. Energia intelectual e introvisão: eis os atributos da consciência do leitor solitário que mais se desenvolvem através da leitura. Informação social, seja sobre o passado ou sobre a contemporanei-dade, a meu ver, constitui um benefício periférico à leitura, e conscientização política um ganho ainda mais tênue (p. 166)