segunda-feira, novembro 30, 2009
domingo, novembro 29, 2009
ENRIQUE VILLA-MATAS: Bartleby
ADÉLIA PRADO: O poeta ficou cansado
ALESSANDRO ROCHA: Espírito Santo: aspectos de uma pneumatologia solidária a condição humana
terça-feira, novembro 24, 2009
JACOB BURCKHARDT: A cultura do Renascimento na Itália
Companhia de Bolso, 2009, 504 páginas.
ESTADO MODERNO
"A ficção genuinamente moderna da onipotência do Estado: o principe deve cuidar de tudo, construir e manter igrejas e edíficios públicos, conservar a polícia municipal, drenar os pântanos, zelar pelo vinho e pelos cereais, distribuir com justeza os tributos, dar apoio aos desamparados e as doentes e dedicar sua proteção e convívio a eminentes eruditos, uma vez que estes cuidarão da sua glória junto à posteridade" p. 42
VENEZA E FLORENÇA
"Dentre as cidades que preservaram sua independência, duas são da maior importância para toda a história da humanidade: Florença - a cidade em constante movimento, que nos legou testemunho de todas as idéias e propósitos individuais e coletivos daqueles que, ao longo de três séculos, tomaram parte nesse movimento- e Veneza- cidade da aparente ausência de movimento e do silêncio político. A contraposição das duas revela os mais gritantes contrastes imagináveis, ambas, porém, não admitem comparação com nada neste mundo" p. 87
sábado, novembro 21, 2009
Dilma é inocente
seg, 09/11/09
por Guilherme Fiuza
Ela não tem culpa. Está sendo só ela mesma. Passeia de mãos dadas com o padrinho, reclama da imprensa burguesa, fuxica informações do governo anterior. Isto é Dilma Rousseff.
O problema são os outros. A opinião pública brasileira é comprável com meio slogan. Caetano Veloso, querendo criticá-la, sem querer abençoou a fraude. O mal de Dilma, segundo o compositor, é ser apenas uma gestora, sem experiência política.
Haja paciência. A única verdade incontestável no currículo de Dilma Rousseff – fora as que ela mesma cria – é ser uma militante. Venerável Caetano: política é a única coisa que a ministra-chefe da Casa Civil fez até hoje.
Quem lhe disse que Dilma é gestora? Lula? Os jornais? Procure saber você mesmo. Descubra, se puder, uma única experiência de gestão bem-sucedida da suposta dama de ferro.
A auto-intitulada companheira de armas de José Dirceu fez na vida o que dez entre dez políticos da DisneyLula fazem: buscar o poder, grudar nele, abrir espaços para a companheirada na sombra do Estado brasileiro.
Avalie a gestão mais conhecida de Dilma Rousseff, à frente do Ministério das Minas e Energia (na Casa Civil ela só conspira, faz campanha e brinca de mãe do PAC, portanto não conta). Caetano, você ouviu falar que as concessionárias de energia elétrica estão devendo bilhões de reais ao consumidor, por cobranças excessivas na conta de luz?
Pois bem: isso é uma das obras-primas da famosa gestora Dilma Rousseff.
Copiando o populismo tarifário argentino, a candidata de Lula baixou na marra o preço da energia – como sempre, em nome do povo. É o crime perfeito: o povo fica feliz agora, e se dá mal mais tarde, com a falência das empresas do setor, que acabarão sendo socorridas pelo Tesouro – isto é, por todos nós.
Desta vez, as empresas deram um jeitinho, dentro do fantástico modelo criado pela gestora Dilma, de já ir abatendo o prejuízo no caminho. O contribuinte vai se ferrar lá na frente, e o consumidor já vai se ferrando agora. Um lembrete: ambos são a mesma pessoa – você –, vítima da grande gestora.
Alguém tem notícia de que a cobrança exorbitante e ilegal será devolvida às vítimas? Alguém ouviu alguma garantia nesse sentido da ministra mais poderosa do governo?
Ninguém tem, ninguém ouviu. Por uma razão simples: Dilma Rousseff não é uma autoridade de fato, não está administrando (gerindo!) os problemas do Brasil. Está cuidando do seu projeto eleitoral. Fazendo política – que é o que se dispõe a fazer.
Nada disso aparece na pasmaceira que é o debate político brasileiro. Todos os gatos por aqui têm status de lebre. Maluf inventa o “gestor” Celso Pitta, e a manada só grita depois do cofre arrombado. E lá vamos nós de novo, Caetano.
O verdadeiro analfabeto brasileiro é o eleitor.
sexta-feira, novembro 20, 2009
GRACILIANO RAMOS: Angústia
"Há nas minhas recordações estranhos hiatos. Fixaram-se coisas insignificantes. Depois um esquecimento quase completo" — confessa Luís da Silva em Angústia. E depois: "Como certos acontecimentos insignificantes tomam vulto, perturbam a gente! Vamos andando sem nada ver. O mundo é empastado e nevoento." E acrescenta: "Não sei se com os outros se dá o mesmo. Comigo é assim." É assim com todos nós outros, quando entramos no mundo empastado e nevoento, noturno, onde os romances de Graciliano Ramos se passam: no sonho. Os hiatos nas recordações, a carga de acontecimentos insignificantes com fortes afetos inexplicáveis, eis a própria "técnica do sonho", no dizer de Freud. Álvaro Lins, no melhor artigo que se escreveu sobre Graciliano Ramos, observou agudamente a abstração do tempo — "Mas no tempo não havia horas", cita o crítico —, e acrescenta: "Os outros personagens são projeções do personagem principal. Julião Tavares e Marina só existem para que Luís da Silva se atormente e cometa o seu crime. Tudo vem ao encontro do personagem principal — inclusive o instrumento do crime". Estas palavras do crítico constituem a chave da obra do romancista: descrevem perfeitamente a nossa situação no sonho, em que tudo é criação do nosso próprio espírito. Explica-se assim o extremo egoísmo dos heróis de Graciliano Ramos: é o egoísmo daquele que sonha e para o qual, prisioneiro dum mundo irreal, só ele mesmo existe realmente. A mentalidade inteiramente amoral do sonho exclui, decerto, toda "generosidade"; mas a substitui por um sentimento mais vasto de identificação quase mística com as criaturas da própria imaginação, até a cachorrinha Baleia: "Tat twam asi."
O extremo egoísmo do sonho engendra o motivo principal do romancista: cobiça de propriedade. Propriedade de terra, de mulher, em São Bernardo; aqui e em Angústia, a forma extrema desta cobiça, o ciúme. Por isso, nos romances de Graciliano Ramos, esses afetos ultrapassam toda medida; sugerem, ao lado dos afetos análogos na vida real, a impressão de sentimentos patológicos. E quando o autor considera os monstros da sua angústia de sonho, lança o seu grito mais elementar: "Dinheiro e propriedade dão-me sempre desejos violentos de mortandade e outras destruições."
"Ai quando virá o anjo da destruiçãop’ra acabar com a minha memória..."
(Murilo Mendes).
Todos os romances de Graciliano Ramos — e este é o sentido do seu experimentar — são tentativas de destruição; tentativas de "acabar com a minha memória", tentativas de dissolver as recordações pelos "estranhos hiatos" dum sonho angustiado. Trata-se de saber que mundo de recordações se dissolve assim.
A resposta é bastante difícil. Surge, ainda uma vez, o clichê do "sertanejo culto" e sugere aos críticos a idéia de que o romancista está furioso contra o ambiente selvagem do seu passado. Mas não é assim. Não é o sertão o culpado; Vidas secas é o seu romance relativamente mais sereno, relativamente mais otimista. O culpado é — superficialmente visto, numa primeira aproximação — a cidade. O herói de Graciliano Ramos é o sertanejo desarraigado, levado do mundo primitivo, imóvel, para o mundo do movimento. É o vagabundo ("um pobre nordestino..."); e explica-se o seu ódio balzaquiano ao mundo burguês, que conseguiu a estabilidade relativa do comércio de secos e molhados. Esta vagabundagem é o aspecto sociológico do egoísmo do sonho quando se choca com a realidade. É o desejo violento do vagabundo de restabelecer-se na terra: "Como a cidade me afastara de meus avós!" Mas é apenas uma explicação em primeira aproximação: pois Paulo Honório consegue o seu fim, e, contudo, é uma vida malograda. Por quê? Porque o seu criador quer mais do que terra, casa, dinheiro, mulher. Quer realmente voltar aos avós. Voltar à imobilidade, à estabilidade do mundo primitivo. E para atingir este fim, deve antes destruir o mundo da agitação angustiada, à qual está preso.
Os romances de Graciliano Ramos são experimentos para acabar com o sonho de angústia que é a nossa vida. Uma lenda budista conta dum homem que correu, ao sol do meio-dia, para fugir à sua sombra, que o angustiava; correu, correu, sempre perseguido pelo companheiro sinistro, até que encontrou o grande Sábio, que lhe disse: — "Não continues a fugir! Assenta-te sob esta árvore!" E como ele parou, a sombra desapareceu. A sombra sobre o mundo de Graciliano Ramos não é a sombra da árvore da salvação, mas a do edifício da nossa civilização artificial — cultura e analfabetismo letrados, sociedade, cidade, Estado, todas as autoridades temporais e espirituais, que ele convida ironicamente — no começo de São Bernardo — a colaborar na sua obra de destruição. Mas eles mostram-se incapazes de cometer o suicídio proposto. Entrincheiram-se na "dura realidade", imposta a todas as criaturas do Demiurgo, e que se arroga todos os atributos da eternidade. O romancista, porém, não se conforma. Transforma esta vida real em sonho — pois do sonho, afinal, se acorda. Então, as disposições funestas do Demiurgo seriam revogadas, e o destruidor poderia dizer, com o Gide das Nouvelles Nourritures: "Table rase. J’ai tout balayé. C’en est fait. Je me dresse nu sur la terre vierge, derrière le ciel à repeupler."6
O fim é o estado primitivo do mundo — o céu repovoado. Então, a angústia já não assusta.
"Black is night’s cope;But death will not appalOne who, past doubting all,Waits in unhope."
Foi a última sabedoria poética do romancista Thomas Hardy, versos duros, populares e clássicos ao mesmo tempo, rimados em sinal da concordância resignada com o mundo. É possível que o romancista Graciliano Ramos escreva também, um dia, tais versos, duros, populares e clássicos ao mesmo tempo, versos tradicionais, como o velho Hardy. Mas não serão rimados. Serão versos brancos. Pois a primeira rima de Graciliano Ramos já anunciaria o Fim do Mundo.
terça-feira, novembro 17, 2009
FRANK VIOLA: Reimagining Church 2
"The older man is the founder of organized religion. Organized religion is built on human ritual and hierarchy. By contrast, Christianity began as organic. But as time went on, it adopted the hierarchical structure of the Roman Empire. All of our denominations have adopted that same organizational structure. This structure can be traced to the old man. It originally came from the Babylonians and was passed on to the other cultures, including the Romans" p. 142
terça-feira, novembro 10, 2009
PHILIP ROTH: Indignation
Vintage, 2008, p.95
Neste romance, Philip Roth surpreende críticos e leitores com uma história que escapa completamente à temática de seus últimos trabalhos, como Homem comum e o Fantasma sai de cena, que versavam sem meios tons sobre o fim da vida e suas mazelas físicas e espirituais. O que temos agora é a experiência iniciática de um jovem de dezoito anos, Marcus Messner, nascido e criado em Newark, Nova Jersey, esbanjando vigor, ambição, ousadia e desejos irrefreáveis ao ingressar na vida adulta.Filho único de um açougueiro kosher superprotetor, Messner busca uma faculdade do Meio-Oeste americano, bem longe de casa, o que lhe permite escapar da sufocante vigilância do pai, da medíocre universidade local onde cursara o primeiro ano e de suas funções como ajudante no açougue. Corre o ano de 1951, e os Estados Unidos enfrentam uma guerra cruenta na Coreia, conflito que paira como ameaça letal sobre o agora segundanista de direito em risco de ser convocado para lutar no front, caso não consiga se destacar nos estudos acadêmicos e no curso para o oficialato. Furtando-se, pois, a vícios, prazeres e uma vida social universitária, o personagem-narrador se entrega aos estudos de forma a jamais tirar menos que 10 em todas as matérias.Entretanto, um poderoso obstáculo se interpõe nos planos de Messner: seu próprio temperamento, irredutível a convenções hipócritas, como assistir a preleções obrigatórias sobre a Bíblia na igreja evangélica do campus e participar do mundinho das fraternidades. Isso sem contar a irrupção anárquica do sexo e do amor em sua vida, na figura tão adorável quanto enigmática de sua colega de classe Olivia Hutton.Indignação demonstra com sutil maestria as vias insuspeitas que conduzem eventos e escolhas aparentemente banais na vida de um jovem a resultados de uma gravidade desproporcional. Roth exibe neste romance curto, mas de enorme densidade humana, social, política e literária, um inconformismo explosivo de adolescente em busca de seus próprios caminhos na vida, alguns dos quais poderão incitar a ira vingativa de uma sociedade conservadora gerida por mentes tacanhas.
domingo, novembro 08, 2009
After Philip Roth, where next?
And this points to the more urgent question that will crop up increasingly in coming years. Despite Roth wanting to have them all shot, critics will be asking: can we imagine a world without Roth? "I can't see an American writer coming along who is replacing Roth," says Jay Prosser, who teaches American literature at the University of Leeds. "He writes with his ear – his novels are completely driven by his voice." There is a singularity of voice in Roth's work which is hard to find elsewhere. The current crop of high-profile American writers – such as Dave Eggers, Jonathan Safran Foer and the late David Foster Wallace – have raised technicality to an art form, but it would be hard to argue that they drive their novels home with the same ferocious intensity.
And a piece of American history will also fall into the sea when Roth goes. Now the last one standing from the big-hitting male American writers who shot to fame alongside him, Roth came of age when writing the Great American Novel was still an embodiment of the American dream. Tom Wolfe wrote in 1972 that the novel was "one of the last of those superstrokes, like finding gold, through which an American could, overnight, utterly tranform his destiny".
Now that novels have to compete in the attention economy along with everything else, younger American writers have found themselves emerging on lower pedestals. David Foster Wallace argued in the 1990s that American fiction writers under 40 operate in a media-saturated realm which separates them from the likes of Roth, Updike and Bellow. It could well be that American novelists never again achieve the same level of mythology as Roth.
sábado, novembro 07, 2009
NICK HORNBY- The Complete Polysyllabic Sprre - Quotes-.
quarta-feira, novembro 04, 2009
terça-feira, novembro 03, 2009
NICK HORNBY:The Polysyllabic Spree
TÍTULOS COMPRADOS:
* "Random Family: Love, Drugs, Trouble, and Coming of Age in the Bronx"- Adrian Nicole LeBlanc
* "What Narcissism Means to Me"- Tony Hoagland
* "David Copperfield"- Charles Dickens (duas vezes)
TÍTULOS LIDOS:
* "David Copperfield"- Charles Dickens
Qualquer pessoa que esteja fazendo uma oficina literária sabe que o segredo de um bom texto é enxugá-lo, retirar os excessos, peneirar, cortar, podar, aparar, remover tudo quanto é palavra supérflua, resumir, resumir, resumir. Em toda resenha sobre um escritor como, por exemplo, o sul-africano Coetzee, encontra-se a palavra "econômica" ou "econômico", usada de maneira elogiosa; acabei de entrar no Google, onde digitei "J. M. Coetzee + econômico" e consegui 907 resultados, com raríssimas repetições. "A linguagem econômica, porém rica, de Coetzee", "neutro no tom e econômico no estilo", "uma sucessão de sentenças refinadas e econômicas", "O grande dom de Coetzee-- e trata-se de um dom que ele nos oferece gentilmente --reside em sua bela e econômica linguagem", "linguagem econômica e poderosa", "um livro econômico e arrepiante", "paradoxalmente econômico e ao mesmo tempo ricamente escrito", "beleza econômica e dura". Sacou? Economia é uma coisa boa.
Coetzee, obviamente, é um ótimo romancista, de forma que não considero nenhum pecado ressaltar que ele não é o escritor mais engraçado que existe. Na verdade, quando paramos para analisar, vemos que pouquíssimos romances na tradição Econômica são lá muito animadores. As piadas são praticamente extirpadas, de forma que, em um processo de adequação de registro na prosa, elas são as primeiras coisas a saltarem fora. E, na peneiração, existe um lance que eu simplesmente não entendo. Por que sempre para quando o trabalho em questão foi reduzido a 60 ou 70 mil palavras? Será que esse é o tamanho mínimo para um romance publicável? Tenho certeza de que, com um pouco de esforço, daria para chegar até a 20 ou 30. Na verdade, por que parar em 20 ou 30? Por que escrever qualquer coisa? Por que não rabiscar o enredo e uns dois temas em um envelope e deixar tudo assim? A verdade é que na ficção ou na sua criação não há nada de muito utilitário, e acho que as pessoas ficam loucas para dar a impressão de que se trata de um trabalhão desgraçado, e que dão um duro danado, que é coisa de macho, pois, no fundo no fundo, trata-se de uma coisinha bem "fresca". A obsessão pela austeridade é uma tentativa de compensar, de fazer com que a literatura se pareça com um trabalho de verdade, tipo pegar na enxada ou derrubar árvores. (É também por isso que o pessoal de publicidade trabalha vinte horas por dia.) Mandem brasa, jovens escritores --desfrutem de uma piadinha ou de um advérbio! Deitem e rolem! Os leitores não vão se importar! Vocês já viram a grossura dos livros vendidos nos aeroportos? A verdade é que as pessoas curtem informações inúteis. (E, de forma contrária, os escritores dos escritores, os que podam e peneiram, tendem a depender mais da aprovação dos críticos do que dos direitos autorais para viverem.)
No mês passado, concluí a coluna dizendo que estava precisando de uma nutrição a la Dickens, e talvez isso seja porque eu venha há muito tempo chupando os ossos da redação econômica. O que teria sido de David Copperfield se Dickens tivesse feito aulas de redação? Era bem capaz de o livro ter saído com setenta personagens secundários a menos, isso sim. (Você sabia que se estima que Dickens tenha criado 13 mil personagens? Treze mil! A população de uma cidade pequena! Se você quiser falar de livros em termos de trabalho braçal "para macho", então talvez devêssemos pensar no duro que se dá para se escrever muito - livros compridos, exuberantes, cheios de energia, vida e comédia. Sinto muito se isso parece óbvio, mas não é sempre verdade que escrever duzentas páginas é mais difícil do que escrever mil páginas.) Em um ponto próximo ao início do livro, David foge e acaba tendo que vender as roupas do corpo para comprar comida. Bastaria, talvez, descrever as dificuldades físicas envolvidas; mas como se trata de Dickens, ele consegue encontrar um espacinho para um vendedor de roupas usadas, um cretino que fede a cachaça e que não para de gritar coisas como "Ai, os pulmões, o fígado!" e "Goroo!".
Como disse rei Lear --provavelmente quando convidado a Iowa para fazer uma palestra-- "Oh! não faleis sobre a necessidade". Não há necessidade: Dickens está se divertindo e estende a cena muito além de suas funções. Agora, ao ler novamente, parece ter sido concebido como uma contestação à economia, pois o cara quer a todo custo pagar pela jaqueta de David em parcelas de meia-coroa no curso de uma tarde, e assim acaba ficando por duas páginas inteiras. Será que ele poderia ter sido cortado? Com certeza! Só que chega um ponto no processo de criação literária em que o romancista --qualquer um, mesmo que seja muito bom-- tem de aceitar que o que ele está fazendo é manter um fim de um livro afastado do fim do outro, preenchendo páginas, esperando que elas emocionem, provoquem e divirtam o leitor.
Algumas observações aleatórias:
1) David Copperfield é o Hamlet de Dickens. Hamlet é uma peça cheia de frases famosas; Copperfield é um romance cheio de personagens famosos. Eu ainda não o tinha lido, em parte porque eu estava enganado, achando que eu não fosse desfrutar dos prazeres da narrativa devido à possibilidade de relembrar a série produzida pela BBC à qual fui obrigado a assistir quando pequeno. (Acabou que a única coisa de que lembrei foi a frase "Barkis está disposto", e a disposição de Barkis não é de fato o tema central do livro.) Assim, eu não fazia ideia de que encontraria tanto Uriah Heep quanto Sr. Micawber, Peggotty, Steerforth, Betsey Trotwood, Little Em'ly, Tommy Traddles e os demais. Eu tinha pensado que Dickens reservaria pelo menos uns dois desses personagens para alguns dos outros romances que eu ainda não tinha lido --As aventuras do Sr. Pickwick, digamos, ou Barnaby Rudge. Só que agora ele já deu a mancada. Pode ser um erro, como veremos.
2) Por que será que estão sempre tentando adaptar as obras de Dickens para a TV ou para o cinema? No primeiro número da Believer, Jonathan Lethem nos pediu para imaginar os personagens em Dombey and Son como animais, para sacar a essência deles, e é verdade que apenas os personagens centrais em um romance de Dickens são humanos. Há Quilp, em The Old Curiosity Shop, apavorando a mãe de Kit com "muitas chatices extraordinárias; tais como arriscar a vida pendurando-se ao lado da carruagem e encarando com os olhos arregalados... evitando-a desta forma de uma janela a outra; abaixando-se rapidamente sempre que trocavam de cavalos e enfiando a cabeça na janela com uma sombria piscadela..." E eis Uriah Heep: "Quase sem sobrancelhas, e nenhum cílio, olhos castanhos, tão desprotegidos e expostos, que lembro que fiquei imaginando como ele dormia... ombros altos e ossudos... mãos longas e delgadas... suas narinas, finas e pontudas, contraíam-se e expandiam-se de um jeito singular e muito desconfortável; pareciam que piscavam no lugar dos olhos, que quase nunca piscavam." E aí? Quem você escalaria para fazer esses dois papéis? Se os atores certos existissem, aposto como não seriam pessoas muito legais, por não terem vida social, namoradas nem possibilidades de trabalhar em qualquer outra coisa, com exceção de Copperfield 2: A vingança de Heep. E, de qualquer modo, uma vez que esses duendes infernais tirados de desenhos animados tomam forma corpórea, não faz mais sentido que existam. Aqui vai uma nota para os estúdios: uma combinação de efeitos computadorizados e ação de verdade é a única saída. É verdade que não sairia barato, e igualmente verdade que ninguém ia querer pagar para assistir. Mas se você deseja fazer justiça --e estou certo de que é isso que todos vocês, executivos de Hollywood e assinantes da Believer, querem-- então deve valer a pena tentar.
3) Em The Old Curiosity Shop, descobri que no personagem de Dick Swiveller, Dickens oferece a P. G. Wodehouse praticamente toda a sua obra. Em David Copperfield, Spenlow e Jorkins, chefes de David, parecem ser as primeiras representações ficcionais de policial bom/policial mau realizadas no mundo.
4) Já reclamei nesta coluna sobre como todos querem estragar os roteiros dos clássicos. Tudo bem, eu deveria ter lido David Copperfield antes e mereço um castigo. Só que mesmo o mais arrogante dos críticos/editoras/sei lá o quê deve presumivelmente aceitar que todos nós precisamos, em algum momento, ler um livro pela primeira vez. Sei que a única coisa que as pessoas inteligentes fazem na vida é reler grandes obras de ficção, mas não será que mesmo James Wood e Harold Bloom leram antes de reler? (Talvez não. Talvez só tenham relido mesmo, e é isso que nos separa desses sujeitos. Parabéns a eles.) Bem, logo de cara, no primeiríssimo parágrafo de sua introdução da edição da Modern Library que possuo, o grande David Gates deixa escapar algumas informações importantes de como a narrativa se desenrola (e acho que tenho o direito de ler o primeiro parágrafo, só para pegar alguns detalhes biográficos e contextuais); tentei dar uma conferida nas versões cinematográficas na Amazon, e um crítico qualquer deixou escapar mais coisas em uma resenha de três linhas. Isso não teria acontecido se eu estivesse à caça de uma adaptação de algum livro do Grisham.
5) No final do ano passado, fui premiado com uma primeira edição de David Copperfield, e tive a fantasia de que eu me sentaria numa poltrona, leria algumas páginas e sentiria o poder do grande homem penetrar-me pelas pontas dos dedos. Bem, eu tentei, mas não deu em nada. Além disso, a cópia que ganhei é bem pequena, de forma que fiquei com medo de derrubar o livro na banheira, de dar bobeira e apagar um cigarro nele etc. Na verdade, acabei lendo quatro cópias diferentes do livro. Uma velha edição da Penguin se desfez em minhas mãos, daí comprei uma edição da Modern Library para substituir. Então perdi a cópia da Modern Library, temporariamente, e comprei outra cópia baratinha da Penguin. Custou uma libra e meia! É apenas cerca de noventa dólares! (Essa foi minha tentativa de fazer uma piadinha atualizada. Nem vou me dar ao trabalho novamente.)
Depois de ler mais ou menos um terço do livro, chegou um momento em que pensei que David Copperfield pudesse se tornar meu novo romance favorito do Dickens --o que, vendo que acredito que Dickens seja o maior romancista que já existiu, significaria que eu poderia estar no meio do melhor livro que eu já tinha lido. Essa forma superlativa de pensar vai perdendo o efeito dramático à medida que a idade avança, de forma que, quando essa ficha caiu, não fiquei tão empolgado quanto você possa imaginar. Compreendi a lógica, assim como você compreende a lógica daquelas discussões antológicas que os velhos filósofos travavam para provar que Deus existe: Se Dickens = o melhor escritor do mundo e DC = seu melhor livro, logo DC = o melhor livro já escrito, sem senti-lo. Mas, no final, tinha muita coisa errada. As jovens, como sempre, são fracas. Os corpos começam a empilhar-se em uma proximidade desconfortável --há quatro mortes, se for contar com o cachorro chato de Dora, o que eu não faço, mas Dickens conta-- entre as páginas 714 e 740. E bem no momento em que você está louco para que o livro chegue a uma conclusão, Dickens adiciona um capítulo chato, sem pé nem cabeça, sobre reforma penitenciária, faltando vinte páginas para acabar o livro. (Ele é contra o confinamento na solitária. O negócio é bom demais para os caras.)
O que emparelha David Copperfield a Bleak House e Grandes esperanças, contudo, é sua natureza doce e sua modernidade surpreendente. Há uns lances metaficcionais, tipo: David cresce e se torna romancista, e o título completo do livro, segundo a biografia de Edgar Johnson (não que eu consiga achar qualquer indício disso em algum lugar), é História, experiência e observações pessoais deDavid Copperfield, o caçula dos Blunderstone Rookery, que ele nunca teve a intenção de publicar. E o lance metaficcional não acontece do nada. O último refúgio do crítico picareta é qualquer versão da seguinte sentença: "Em última análise, esse livro é sobre a própria ficção/esse filme é sobre o próprio filme." Eu mesmo já usei essa frase, na época em que escrevia críticas sobre vários livros, e posso dizer que é tudo balela: invariavelmente o negócio significa apenas que o filme ou o romance chamou a atenção para seu próprio estado ficcional, o que não nos leva a lugar nenhum, e é o motivo pelo qual o crítico nunca nos diz exatamente o que o romance tem a dizer sobre a própria ficção. (Da próxima vez que você se deparar com a frase, o que é provável de acontecer nos próximos sete dias caso você leia muitas resenhas, escreva para o crítico e peça que ele esclareça o que quer dizer.)
Bem, a profissão de David Copperfield permite que ele tenha alguns desses momentos agudos de arrependimento e nostalgia; o que não falta no livro, aliás, são recordações, e em um romance autobiográfico, a memória e a ficção se entrelaçam. Dickens utiliza esse entrelace a seu favor, e não consigo me lembrar de já ter ficado tão emocionado com um de seus romances. Outra coisa que me parece diferente em David Copperfield é a sofisticação de dois personagens e relacionamentos. Dickens não é o escritor mais sofisticado que existe, e quando ele realmente consegue atingir certa complexidade, é porque já existem várias camadas de enredos secundários, e mais e mais camadas de personagens, até que ele fica sem saída e tem de fazer alguma coisa acontecer. No entanto, há uma consciência surpreendentemente moderna da insatisfação matrimonial em Copperfield, por exemplo, um reconhecimento de falta e de um desejo não específico que associaríamos mais a Rabbit Angstrom do que a alguém que passa metade do romance enchendo a cara de ponche com Sr. Micawber. Dickens acaba retirando o estilo vitoriano do mal-estar do século XX, mas mesmo assim... Ao fazer anotações para esta coluna, acho que escrevi que "ele é de outro planeta"; David Gates pergunta na introdução: "Será que o cara era marciano?" E pensar que algumas pessoas não o estimam! Pensar que algumas pessoas o descreveram como "o pior escritor a amaldiçoar a língua inglesa"! Pois é. A decisão é sua: ou você acredita nesse povo ou fica do lado de Tolstói, Peter Ackroyd e David Gates. E do meu lado também.
Pela primeira vez desde que comecei a escrever esta coluna, a conclusão de um livro me deixou desolado: estou com saudade de todos os personagens. Ah, vamos ser sinceros: geralmente ficamos felizes da vida só de concluirmos mais um da lista, mas passei o último mês num mundo hiper-real, repleto de pessoas inesquecíveis e excêntricas, risadas (espero que você descubra que Dickens é engraçadíssimo) e histórias cheias de reviravoltas que dão vontade de acompanhar. Desconfio que será difícil ler um romance econômico, sequinho e objetivo por um tempo.