sábado, dezembro 26, 2009

C.S. Lewis : O Grande Abismo 2


“Milton estava certo”, afirmou meu Professor. “A escolha de toda alma perdida pode ser expressa nas palavras: ‘E melhor reinar no inferno do que servir no céu’. Existe sempre algo que insistem em guardar, mesmo ao preço do sofrimento. Existe sempre algo que preferem à alegria — isto é, à realidade. Você pode observar tal coisa na criança mimada que prefere perder a brincadeira e o jantar a pe-dir desculpas e voltar às boas. Deram a essa atitude o nome de Zanga ou Amuo, mas na vida adulta ela possui uma centena de nomes refinados a ira de Aquiles, o orgulho de Coriolano, Vingança, Mérito e Auto-Respeito Injuriados, Grandeza Trágica e Orgulho Justo.


(...)

“Você acha?” perguntou o Professor com um olhar penetrante. “Está mais perto disso do que pensa. Houve homens que se interes-saram de tal forma em provar a existência de Deus que acabaramse desinteressando por completo do próprio Deus... como se o bom Senhor nada tivesse a fazer além de existir! Houve alguns tão ocu-pados em espalhar o cristianismo que jamais deram um pensamen-to a Cristo. Amigo! Você pode ver isso nas pequenas coisas. Você já conheceu um amante de livros que com todas as suas primeiras edições e obras autografadas tivesse perdido o poder de lê-Ias? Ou um organizador de obras de caridade que perdesse todo amor elos pobres? Trata-se da mais sutil de todas as armadilhas.”

p. 51-52
...
“Sim. O Inferno inteiro é menor do que um pedregulho do seu mundo terrestre: mas é ainda menor do que um átomo deste mun-do, o Mundo Real. Olhe para aquela borboleta. Se ela engolisse o inferno inteiro, ele não seria bastante grande para prejudicá-la de modo algum nem teria qualquer sabor.”
“Parece bem grande quando estamos dentro dele, senhor.”
“Todavia, toda solidão, ira, ódio, inveja e desejos nele contidos, se combinados numa só experiência e colocados na balança em oposição ao menor momento de gozo sentido pelo menor de todos no céu, não teria peso algum que pudesse ser registrado. O mal não pode ter êxito mesmo em ser mau, com tanta realidade como o bem é bom. Se todas as misérias do inferno viessem a colocar-se juntas diante daquele pequenino pássaro amarelo no ramo ali adiante, seriam engolidos sem deixar vestígios, como uma gota de tinta derramada no Grande Oceano do qual o seu Atlântico celestial não passa de uma simples molécula.”
“Entendo”, disse eu finalmente, “Ela não caberia no inferno.”
Ele assentiu. “Não há espaço para ela. O inferno não poderia abrir até esse ponto a sua boca.”“E não poderia ela diminuir? — como Alice?”
“Não o bastante. Pois uma alma condenada é praticamente nada: ela é encolhida, fechada em si mesma. O bem bate sobre os conde-nados incessantemente como as ondas de som batem no ouvido dos surdos, mas eles não podem recebê-las. Seus dedos estão dobrados, seus dentes cerrados, seus olhos fechados. Em primeiro lugar eles não querem, e no fim não podem abrir as mãos para receber as dá-divas, a boca para serem alimentados, ou os olhos para ver.”
“Então ninguém poderá jamais chegar até eles?”
“Somente o Maior de Todos pode tomar-se suficientemente peque-no para entrar no inferno. Pois quanto mais elevada é uma coisa, tanto mais baixo pode descer — o homem pode ter simpatia por um cavalo, mas este não terá simpatia por um rato. Somente Alguém desceu ao inferno.”
p.88-89

Nenhum comentário: