quinta-feira, maio 23, 2013

C.S.Lewis: A Teologia

(pedaço do CRISTIANISMO PURO E SIMPLES)



Todos me aconselharam a não lhes dizer o que vou dizer neste último livro. Afirmam: "O leitor comum não quer saber de Teologia; dê-lhe somente a religião sim­ples e prática." Rejeitei o conselho. Não acho que o lei­tor comum seja um tolo. Teologia significa "a Ciência de Deus", e creio que todo homem que pensa sobre Deus gostaria de ter sobre ele a noção mais clara e mais pre­cisa possível. Vocês não são crianças: por que, então, lhes tratar como tal?




Em certo sentido, até compreendo por que algumas pessoas se sentem desconcertadas ou até incomodadas pela Teologia. Lembro-me de certa ocasião em que dava uma palestra para os pilotos da R.A.F. e um oficial velho e rijo levantou-se e disse: "Nada disso tem serventia para mim. Mas saiba que também sou um homem re­ligioso. Sei que existe um Deus. Sozinho no deserto, à noite, já senti a presença dele: o tremendo mistério. E é exatamente por isso que não acredito em todas essas fórmulas e esses dogmas a respeito dele. Para qualquer um que tenha conhecido a realidade, todos eles pare­cem mesquinhos, pedantes e irreais."

Ora, num sentido, até concordo com esse homem. Creio que ele provavelmente teve uma experiência real de Deus no deserto. Quando se voltou da experiência para o credo cristão, acho que realmente passou de algo real para algo menos real. Da mesma maneira, um ho­mem que já viu o Atlântico da praia e depois olha um mapa do Atlântico também está trocando a coisa real pela menos real: troca as ondas de verdade por um peda­ço de papel colorido. Mas é exatamente essa a questão. Admito que o mapa não passa de uma folha de papel colorido, mas há duas coisas que devemos lembrar a seu respeito. Em primeiro lugar, ele se baseia nas experiên­cias de centenas ou milhares de pessoas que navegaram pelas águas do verdadeiro oceano Atlântico. Dessa for­ma, tem por trás de si uma massa de informações tão reais quanto a que se pode ter da beira da praia; com a diferença que, enquanto a sua é um único relance, o ma­pa abarca e colige todas as experiências de diversas pes­soas. Em segundo lugar, se você quer ir para algum lugar, o mapa é absolutamente necessário. Enquanto você se contentar com caminhadas à beira da praia, seus vis­lumbres serão mais divertidos que o exame do mapa; mas o mapa será de mais valia que uma caminhada pela praia se você quiser ir para os Estados Unidos.

A Teologia é como o mapa. O simples ato de apren­der e pensar sobre as doutrinas cristãs, considerado em si mesmo, é sem dúvida menos real e menos instigante do que o tipo de experiência que meu amigo teve no de­serto. As doutrinas não são Deus, são como um mapa. Esse mapa, porém, é baseado nas experiências de cen­tenas de pessoas que realmente tiveram contato com Deus — experiências diante das quais os pequenos frêmi­tos e sentimentos piedosos que você e eu podemos ter não passam de coisas elementares e bastante confusas. Além disso, se você quiser progredir, precisará desse mapa. Note que o que aconteceu com aquele homem no de­serto pode ter sido real e certamente foi emocionante, mas não deu em nada. Não levou a lugar nenhum. Não há nada que possamos fazer. Na verdade, é justamente por isso que uma religiosidade vaga — sentir Deus na natureza e assim por diante — é tão atraente. Ela é toda baseada em sensações e não dá trabalho algum: é como mirar as ondas da praia. Você jamais alcançará o Novo Mundo simplesmente estudando o Atlântico dessa ma­neira, e jamais alcançará a vida eterna sentindo a presença de Deus nas flores ou na música. Também não che­gará a lugar algum se ficar examinando os mapas sem fazer-se ao mar. E, se fizer-se ao mar sem um mapa, não estará seguro.

Em outras palavras, a Teologia é uma questão prá­tica, especialmente hoje em dia. No passado, quando havia menos instrução formal e menos discussões, talvez fosse possível passar com algumas poucas idéias sim­ples sobre Deus. Hoje não é mais assim. Todo mundo lê, todo mundo presta atenção a discussões. Conseqüen­temente, se você não der atenção à Teologia, isso não significa que não terá idéia alguma sobre Deus. Significa que terá, isto sim, uma porção de idéias erradas — idéias más, confusas, obsoletas. A imensa maioria das idéias que são disseminadas como novidades hoje em dia são as que os verdadeiros teólogos testaram vários séculos atrás e rejeitaram. Acreditar na religião popular moderna da Inglaterra é a mesma coisa que acreditar que a Terra é plana — um retrocesso.

Pois, na prática, a idéia popular de cristianismo é sim­plesmente esta: Jesus Cristo foi um grande mestre da moral e, se seguíssemos seus conselhos, conseguiríamos estabelecer uma ordem social melhor e evitar uma nova guerra. Saiba que isso tem seu fundo de verdade. Mas é muito menos que a verdade integral do cristianismo, e na realidade não tem importância prática alguma.

E verdade que, se seguíssemos os conselhos de Cris­to, viveríamos em breve num mundo mais feliz. Nem precisaríamos ir tão longe: se déssemos ouvidos ao que disseram Platão, Aristóteles ou Confúcio, estaríamos muito melhor do que estamos. E daí? Nunca seguimos os conselhos dos grandes mestres. Por que começaría­mos a segui-los agora? E por que estaríamos mais dis­postos a ouvir a Cristo que aos outros? Porque ele é o melhor mestre da moral? Com isso, é ainda menos pro­vável que o sigamos. Se não conseguimos aprender nem as lições elementares, como passaremos às mais adian­tadas? Se o cristianismo não passa de mais um bocado de conselhos, ele não tem importância nenhuma. Não nos faltaram bons conselhos nos últimos quatro mil anos. Um pouquinho mais não faz diferença.

No entanto, logo que nos debruçamos sobre os verdadeiros escritos cristãos, vemos que eles falam de algo inteiramente diferente dessa religião popular. Di­zem que Cristo é o Filho de Deus (o que quer que isso signifique). Dizem que os que nele depositam sua con­fiança podem também tornar-se filhos de Deus (o que quer que isso signifique). E dizem ainda que sua mor­te nos salvou de nossos pecados (o que quer que isso signifique).

Não adianta reclamar que essas afirmações são difí­ceis. O cristianismo pretende falar-nos de um outro mundo, de algo que está por trás do mundo que podemos ver, ouvir e tocar. Você pode até pensar que essa preten­são é falsa, mas, se for verdadeira, o que o cristianismo nos diz será necessariamente difícil — pelo menos tão di­fícil quanto a Física moderna, e pela mesma razão.

O ponto mais chocante do cristianismo é a afirma­ção de que, quando nos ligamos a Cristo, podemos nos tornar "filhos de Deus". Alguém pergunta: "Mas já não so­mos filhos de Deus? A paternidade de Deus não é uma das idéias principais do cristianismo?" Bem, em certo sen­tido não há dúvida de que já somos filhos de Deus. Ou seja, Deus nos trouxe à existência, nos ama e cuida de nós, como um pai. Mas, quando a Bíblia fala que podemos "nos tornar" filhos de Deus, obviamente quer dar a en­tender algo diferente. E isso nos leva para o próprio co­ração da Teologia.

Um dos credos diz que Cristo é o Filho de Deus "ge­rado, não criado"; e acrescenta: "Gerado pelo Pai antes de todos os mundos." Por favor, ponha na sua cabeça que isto não tem nada que ver com o fato de que, quan­do Cristo nasceu na terra como homem, foi filho de uma virgem. Não estamos falando aqui do nascimento virginal, mas de algo que aconteceu antes que a natu­reza fosse criada, antes que o próprio tempo existisse. "Antes de todos os mundos" Cristo é gerado, não criado. O que isso significa?

Não usamos mais as palavras begetting e begotten[1] no inglês moderno, mas todo o mundo ainda sabe o que elas significam. Gerar (to beget) é ser pai de alguém; criar (to create) é fazer, construir algo. A diferença é a seguinte: na geração, o que foi gerado é da mesma espécie que o gera­dor. Um homem gera bebês humanos, um castor gera castorzinhos e um pássaro gera ovos de onde sairão ou­tros passarinhos. Mas, quando fazemos algo, esse algo é de uma espécie diferente. Um pássaro faz um ninho, um castor constrói uma represa, um homem faz um aparelho de rádio - ou talvez algo um pouco mais parecido consi­go mesmo que um rádio: uma estátua, por exemplo. Se for um escultor habilidoso, sua estátua se parecerá muito com um homem. Mas é claro que não será um homem de verdade; terá somente a aparência. Não poderá pensar nem respirar. Não tem vida.

Esse é o primeiro ponto que devemos deixar claro. O que Deus gera é Deus, assim como o que o homem gera é homem. O que Deus cria não é Deus, assim como o que o homem faz não é homem. É por isso que os ho­mens não são filhos de Deus no mesmo sentido em que Cristo o é. Podem se parecer com Deus em certos aspec­tos, mas não são coisas da mesma espécie. Os homens são mais semelhantes a estátuas ou quadros de Deus.

A estátua tem a forma de um homem, mas não tem vida. Da mesma maneira, o homem tem (num sentido que ainda vou explicar) a "forma" ou semelhança de Deus, mas não o tipo de vida que Deus possui. Vamos examinar o primeiro ponto (a semelhança com Deus) em primeiro lugar. Tudo o que Deus criou tem alguma semelhança com ele mesmo. O espaço se parece com ele em sua vastidão; não que a grandeza do espaço seja do mesmo tipo que a grandeza de Deus, mas é uma espé­cie de símbolo dela, ou uma tradução dela em termos não-espirituais. A matéria é semelhante a Deus por ter energia: embora a energia física seja diferente do poder de Deus. O mundo vegetal é semelhante a Deus por ter vida, pois ele é o "Deus vivo". A vida em seu sentido biológico, porém, não é a mesma coisa que a vida em Deus: é como um símbolo ou uma sombra. Já nos ani­mais encontramos outras formas de semelhança com Deus além da vida vegetativa. A intensa atividade e a fertilidade dos insetos, por exemplo, é uma primeira e vaga imagem da atividade incessante e da criatividade de Deus. Nos mamíferos superiores, temos um princí­pio de instinto afetivo. Não é a mesma coisa que o amor que existe em Deus; mas é semelhante a este - da mes­ma maneira que uma figura desenhada numa folha pla­na de papel pode ser "semelhante" a uma paisagem. Quando chegamos ao homem, o mais elevado dos animais, vemos, entre as coisas que nos são conhecidas, a semelhança mais perfeita com Deus. (Pode haver cria­turas em outros mundos que se pareçam ainda mais com Deus, mas não as conhecemos.) O homem não apenas vive como também ama e raciocina: nele, a vida bioló­gica atinge o nível mais elevado de que temos notícia. Mas o que o homem, em sua condição natural, não possui, é a vida espiritual — um tipo diferente e supe­rior de vida que existe em Deus. Usamos a mesma pa­lavra — vida - para designar a ambas; mas se você pensa que por isso as duas são a mesma coisa, é como se pen­sasse que a "grandeza" do espaço e a "grandeza" de Deus são o mesmo tipo de grandeza. Na realidade, a diferen­ça entre a vida biológica e a vida espiritual é tão impor­tante que vou tratá-las por nomes diferentes. A vida bio­lógica, que vem da natureza e que (como tudo o mais no mundo natural) tende a se corromper e a decair -de modo que só pode se conservar através de contínuos subsídios dados pela natureza na forma de ar, água, ali­mentos etc. - é bíos. A vida espiritual, que é em Deus desde toda a eternidade e que criou o universo natural inteiro, é zoé. É certo que bíos tem uma certa semelhan­ça parcial ou simbólica com zoé: mas é apenas a seme­lhança que existe entre uma fotografia e um lugar, ou entre uma estátua e um homem. O homem que tinha bíos e passa a ter zoé sofre uma mudança tão grande quanto a de uma estátua que deixasse de ser pedra entalhada e se transformasse num homem real. E é exatamente disso que trata o cristianismo. Este mundo é como o ateliê de um grande escultor. Nós so­mos as estátuas, e corre por aí o boato de que alguns de nós, um dia, ganharão a vida.




[1] Do verbo to beget: gerar, originar. (N. doT.)

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