Avisei que a Teologia é um assunto prático. O objetivo único da nossa
existência é ser assumidos pela vida divina. Quando temos idéias erradas sobre
o que é essa vida, a realização do objetivo torna-se mais difícil. E agora
peço que vocês sigam meu raciocínio com a máxima atenção por alguns minutos.
Todos sabem que, no espaço, podemos nos mover de três maneiras: para a
esquerda e para a direita, para a frente e para trás, para cima e para baixo.
Toda direção espacial é uma dessas três ou uma combinação delas. São o que
chamamos de três dimensões. Agora note o seguinte. Se você usar apenas uma
dimensão, poderá desenhar somente uma linha reta. Se usar duas, poderá
desenhar uma figura: um quadrado, digamos, que é feito de quatro linhas retas.
Vamos dar mais um passo. Se usar três dimensões, você poderá construir o que
chamamos de um corpo sólido, como um cubo — um dado, por exemplo, ou um torrão
de açúcar. O cubo é composto de seis quadrados.
Compreendeu? Um mundo unidimensional seria uma linha reta. Num mundo
bidimensional, ainda haveria linhas retas, mas as linhas poderiam compor
figuras. Num mundo tridimensional, ainda existem figuras, mas, combinadas, elas
compõem corpos sólidos. Em outras palavras, à medida que avançamos para níveis
mais complexos e mais reais, não deixamos para trás as coisas encontradas nos
níveis mais simples: elas ainda existem, mas se combinam de maneiras novas —
maneiras que nem sequer poderiam ser imaginadas por alguém que só conhecesse os
níveis mais simples.
Ora, a noção cristã de Deus envolve o mesmíssimo princípio. O nível humano
é um nível simples e mais ou menos vazio. Nele, uma pessoa é um
ser e duas pessoas são dois seres separados - da mesma forma que, num plano
bidimensional como o de uma folha de papel, um quadrado é uma figura e dois
quadrados são duas figuras separadas. No nível divino, ainda existem personalidades;
nele, porém, as encontramos combinadas de maneiras novas, maneiras que nós,
que não vivemos nesse nível, não podemos imaginar. Na dimensão de Deus, por
assim dizer, encontramos um Ser que são três pessoas sem deixar de ser um
único Ser, da mesma forma que um cubo são seis quadrados sem deixar de ser um
único cubo. E claro que não conseguimos conceber plenamente um Ser como esse.
Do mesmo modo, se percebêssemos apenas duas dimensões do espaço, não poderíamos
jamais imaginar um cubo. Mesmo assim podemos ter dele uma noção vaga. Quando
isso acontece, nós conseguimos ter, pela primeira vez na vida, uma idéia
positiva, mesmo que tênue, de algo suprapessoal — algo maior que uma pessoa. É
algo que nos surpreende completamente e que, no entanto, quando ouvimos falar
dele, quase nos faz sentir que poderíamos tê-lo adivinhado, uma vez que se
harmoniza tão bem com as coisas que já conhecemos.
Você pode perguntar: "Se não conseguimos imaginar esse Ser
tripessoal, de que adianta falar sobre ele?" Bem, de nada adianta falar
sobre ele. O que interessa é sermos atraídos e conduzidos de fato para dentro dessa vida tripessoal.
Esse processo pode começar, aliás, a qualquer momento — hoje à noite, se você
quiser.
O que quero dizer é o seguinte: o simples cristão ajoelha-se e faz suas
orações, tentando entrar em contato com Deus. Porém, se ele é cristão, sabe que
o que o induz a orar é também Deus: Deus, por assim dizer, dentro dele. E sabe
também que todo o conhecimento real que possui de Deus veio por meio de Cristo,
o Homem que foi Deus. Sabe que Cristo está de pé a seu lado, ajudando-o a
orar, orando por ele. Você vê o que está acontecendo? Deus é aquilo para o
qual ele ora — o objetivo que tenta alcançar. Deus é também aquilo, dentro
dele, que o impele — a força motriz. Deus, por fim, é a estrada ou a ponte que
ele percorre para chegar a seu objetivo. Assim, toda a vida tríplice do Ser
tripessoal entra em ação nesse quarto humilde onde um homem comum faz suas
orações. O homem está sendo capturado por um tipo superior de vida — o que
chamei de zoé ou vida espiritual: está sendo atraído para dentro de Deus
pelo próprio Deus, sem deixar de ser ele mesmo.
E foi assim que começou a Teologia. As pessoas já conheciam Deus de forma
mais ou menos vaga. Então veio um homem que dizia ser Deus; um homem que, no
entanto, ninguém conseguia rejeitar como um lunático. Esse homem fez com que
as pessoas acreditassem nele. Essas pessoas voltaram a encontrar-se com ele depois de tê-lo visto
ser assassinado. Por fim, tendo-se constituído numa pequena sociedade ou
comunidade, essas pessoas de alguma forma descobriram a Deus dentro de si
próprias, dizendo-lhes o que fazer e tornando-as capazes de atos que até então
eram impossíveis. Quando entenderam tudo isto, elas chegaram à definição crista
do Deus tripessoal.
Essa definição não é algo que inventamos. A Teologia, em certo sentido, é
uma ciência experimental. São as religiões simplistas que foram inventadas.
Quando digo que ela é uma ciência experimental "em certo sentido",
quero dizer que é igual às outras ciências experimentais sob alguns aspectos,
mas não todos. Se você é um geólogo que estuda minerais, você tem de ir a
campo para encontrá-los. Eles não irão até você e, quando você os encontra,
eles não podem escapulir. Toda a iniciativa cabe a você. Os minerais não podem
nem ajudá-lo, nem prejudicá-lo. Agora suponha que você seja um zoólogo que se
propôs a tirar fotos de animais em seu hábitat natural. A situação fica um
pouco diferente. Os animais selvagens não irão ao seu encontro, mas podem
fugir de você, e, se você não ficar bem quieto, certamente o farão. Começa a
haver aqui um pouquinho de iniciativa por parte deles.
Passemos a um estágio superior. Suponha que você queira estudar um ser
humano. Se ele estiver determinado a não se deixar estudar, você não conseguirá
conhecê-lo. Vai ser preciso ganhar-lhe a confiança. Nesse caso, a iniciativa
se divide igualmente pelos dois lados - para uma amizade, são necessárias duas
pessoas.
Quando se trata do conhecimento de Deus, a iniciativa cabe inteiramente a
ele. Se ele não se revelar, nada que você fizer o capacitará a encontrá-lo. E,
na verdade, ele se dá a conhecer muito mais a certas pessoas que a outras —
não porque tenha predileções, mas porque é impossível que ele se revele ao
homem cuja mente e cujo caráter estejam em más condições. Da mesma forma, os
raios do sol, apesar de também não terem predileções, não se refletem tão bem
num espelho empoeirado quanto num espelho polido.
Podemos dizê-lo de outra forma: enquanto nas outras ciências os instrumentos
são externos a nós (como o microscópio e o telescópio), o instrumento pelo qual
vemos a Deus é nosso próprio ser, nosso ser inteiro. Se o ser do homem não
estiver limpo e brilhante, sua visão de Deus será turva — como a lua vista por
um telescópio sujo. E por isso que os povos abomináveis têm religiões
abomináveis: eles vêem a Deus através de uma lente suja.
Deus só pode se revelar verdadeiramente para homens de verdade. Isso não
significa apenas homens individualmente bons, mas homens unidos entre si num único corpo, amando-se e
auxiliando-se mutuamente, revelando Deus uns aos outros. Pois é assim que Deus
quer que a humanidade seja: como os músicos de uma orquestra, como os órgãos de
um corpo.
Em conseqüência, o único instrumento verdadeiramente adequado para
conhecer Deus é a comunidade cristã como um todo, a comunidade dos que juntos o
aguardam. Numa analogia, a fraternidade cristã é o equipamento técnico dessa
ciência — os apetrechos do laboratório. Por isso, as pessoas que, ano sim, ano
não, lançam uma versão flagrantemente simplificada da religião na tentativa de
substituir a tradição cristã estão perdendo completamente o seu tempo. São como
o sujeito que, contando apenas com um velho binóculo, resolve corrigir toda a
comunidade dos astrônomos. Pode ser que esse sujeito seja bastante inteligente,
talvez até mais inteligente do que alguns astrônomos de verdade, mas ele
próprio se sabota. Em dois anos estará esquecido, enquanto a verdadeira ciência
continuará de pé.
Se o cristianismo fosse algo que inventamos, é claro que seria mais
fácil. Mas não é. Não podemos competir, em matéria de simplicidade, com as
pessoas que inventam religiões. Como poderíamos? Trabalhamos com a realidade
como ela é. Só quem não se importa com a realidade pode se dar ao luxo de ser
simplista.
(tirado de CRISTIANISMO PURO E SIMPLES)
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