domingo, maio 26, 2013

C.S. Lewis: A Trindade

Avisei que a Teologia é um assunto prático. O obje­tivo único da nossa existência é ser assumidos pela vida divina. Quando temos idéias erradas sobre o que é essa vida, a realização do objetivo torna-se mais difícil. E ago­ra peço que vocês sigam meu raciocínio com a máxima atenção por alguns minutos.
Todos sabem que, no espaço, podemos nos mover de três maneiras: para a esquerda e para a direita, para a frente e para trás, para cima e para baixo. Toda direção espacial é uma dessas três ou uma combinação delas. São o que chamamos de três dimensões. Agora note o seguinte. Se você usar apenas uma dimensão, poderá desenhar somente uma linha reta. Se usar duas, pode­rá desenhar uma figura: um quadrado, digamos, que é feito de quatro linhas retas. Vamos dar mais um passo. Se usar três dimensões, você poderá construir o que cha­mamos de um corpo sólido, como um cubo — um dado, por exemplo, ou um torrão de açúcar. O cubo é com­posto de seis quadrados.
Compreendeu? Um mundo unidimensional seria uma linha reta. Num mundo bidimensional, ainda ha­veria linhas retas, mas as linhas poderiam compor figuras. Num mundo tridimensional, ainda existem figuras, mas, combinadas, elas compõem corpos sólidos. Em outras palavras, à medida que avançamos para níveis mais com­plexos e mais reais, não deixamos para trás as coisas encon­tradas nos níveis mais simples: elas ainda existem, mas se combinam de maneiras novas — maneiras que nem sequer poderiam ser imaginadas por alguém que só conhecesse os níveis mais simples.
Ora, a noção cristã de Deus envolve o mesmíssimo princípio. O nível humano é um nível simples e mais ou menos vazio. Nele, uma pessoa é um ser e duas pessoas são dois seres separados - da mesma forma que, num plano bidimensional como o de uma folha de papel, um quadrado é uma figura e dois quadrados são duas figu­ras separadas. No nível divino, ainda existem persona­lidades; nele, porém, as encontramos combinadas de ma­neiras novas, maneiras que nós, que não vivemos nesse nível, não podemos imaginar. Na dimensão de Deus, por assim dizer, encontramos um Ser que são três pes­soas sem deixar de ser um único Ser, da mesma forma que um cubo são seis quadrados sem deixar de ser um único cubo. E claro que não conseguimos conceber ple­namente um Ser como esse. Do mesmo modo, se perce­bêssemos apenas duas dimensões do espaço, não podería­mos jamais imaginar um cubo. Mesmo assim podemos ter dele uma noção vaga. Quando isso acontece, nós conseguimos ter, pela primeira vez na vida, uma idéia positiva, mesmo que tênue, de algo suprapessoal — algo maior que uma pessoa. É algo que nos surpreende com­pletamente e que, no entanto, quando ouvimos falar dele, quase nos faz sentir que poderíamos tê-lo adivinha­do, uma vez que se harmoniza tão bem com as coisas que já conhecemos.
Você pode perguntar: "Se não conseguimos imagi­nar esse Ser tripessoal, de que adianta falar sobre ele?" Bem, de nada adianta falar sobre ele. O que interessa é sermos atraídos e conduzidos de fato para dentro dessa vida tripessoal. Esse processo pode começar, aliás, a qual­quer momento — hoje à noite, se você quiser.
O que quero dizer é o seguinte: o simples cristão ajoelha-se e faz suas orações, tentando entrar em contato com Deus. Porém, se ele é cristão, sabe que o que o induz a orar é também Deus: Deus, por assim dizer, dentro dele. E sabe também que todo o conhecimento real que possui de Deus veio por meio de Cristo, o Homem que foi Deus. Sabe que Cristo está de pé a seu lado, aju­dando-o a orar, orando por ele. Você vê o que está acon­tecendo? Deus é aquilo para o qual ele ora — o objeti­vo que tenta alcançar. Deus é também aquilo, dentro dele, que o impele — a força motriz. Deus, por fim, é a estrada ou a ponte que ele percorre para chegar a seu objetivo. Assim, toda a vida tríplice do Ser tripessoal en­tra em ação nesse quarto humilde onde um homem co­mum faz suas orações. O homem está sendo capturado por um tipo superior de vida — o que chamei de zoé ou vida espiritual: está sendo atraído para dentro de Deus pelo próprio Deus, sem deixar de ser ele mesmo.
E foi assim que começou a Teologia. As pessoas já conheciam Deus de forma mais ou menos vaga. Então veio um homem que dizia ser Deus; um homem que, no entanto, ninguém conseguia rejeitar como um luná­tico. Esse homem fez com que as pessoas acreditassem nele. Essas pessoas voltaram a encontrar-se com ele de­pois de tê-lo visto ser assassinado. Por fim, tendo-se cons­tituído numa pequena sociedade ou comunidade, essas pessoas de alguma forma descobriram a Deus dentro de si próprias, dizendo-lhes o que fazer e tornando-as capazes de atos que até então eram impossíveis. Quando entenderam tudo isto, elas chegaram à definição crista do Deus tripessoal.
Essa definição não é algo que inventamos. A Teolo­gia, em certo sentido, é uma ciência experimental. São as religiões simplistas que foram inventadas. Quando digo que ela é uma ciência experimental "em certo sentido", quero dizer que é igual às outras ciências experimentais sob alguns aspectos, mas não todos. Se você é um geó­logo que estuda minerais, você tem de ir a campo para encontrá-los. Eles não irão até você e, quando você os en­contra, eles não podem escapulir. Toda a iniciativa cabe a você. Os minerais não podem nem ajudá-lo, nem pre­judicá-lo. Agora suponha que você seja um zoólogo que se propôs a tirar fotos de animais em seu hábitat natu­ral. A situação fica um pouco diferente. Os animais sel­vagens não irão ao seu encontro, mas podem fugir de você, e, se você não ficar bem quieto, certamente o fa­rão. Começa a haver aqui um pouquinho de iniciativa por parte deles.
Passemos a um estágio superior. Suponha que você queira estudar um ser humano. Se ele estiver determinado a não se deixar estudar, você não conseguirá co­nhecê-lo. Vai ser preciso ganhar-lhe a confiança. Nesse caso, a iniciativa se divide igualmente pelos dois lados - para uma amizade, são necessárias duas pessoas.
Quando se trata do conhecimento de Deus, a ini­ciativa cabe inteiramente a ele. Se ele não se revelar, nada que você fizer o capacitará a encontrá-lo. E, na verda­de, ele se dá a conhecer muito mais a certas pessoas que a outras — não porque tenha predileções, mas porque é impossível que ele se revele ao homem cuja mente e cujo caráter estejam em más condições. Da mesma forma, os raios do sol, apesar de também não terem predile­ções, não se refletem tão bem num espelho empoeirado quanto num espelho polido.
Podemos dizê-lo de outra forma: enquanto nas ou­tras ciências os instrumentos são externos a nós (como o microscópio e o telescópio), o instrumento pelo qual vemos a Deus é nosso próprio ser, nosso ser inteiro. Se o ser do homem não estiver limpo e brilhante, sua vi­são de Deus será turva — como a lua vista por um te­lescópio sujo. E por isso que os povos abomináveis têm religiões abomináveis: eles vêem a Deus através de uma lente suja.
Deus só pode se revelar verdadeiramente para ho­mens de verdade. Isso não significa apenas homens in­dividualmente bons, mas homens unidos entre si num único corpo, amando-se e auxiliando-se mutuamente, revelando Deus uns aos outros. Pois é assim que Deus quer que a humanidade seja: como os músicos de uma orquestra, como os órgãos de um corpo.
Em conseqüência, o único instrumento verdadei­ramente adequado para conhecer Deus é a comunidade cristã como um todo, a comunidade dos que juntos o aguardam. Numa analogia, a fraternidade cristã é o equi­pamento técnico dessa ciência — os apetrechos do labo­ratório. Por isso, as pessoas que, ano sim, ano não, lançam uma versão flagrantemente simplificada da religião na tentativa de substituir a tradição cristã estão perdendo completamente o seu tempo. São como o sujeito que, contando apenas com um velho binóculo, resolve cor­rigir toda a comunidade dos astrônomos. Pode ser que esse sujeito seja bastante inteligente, talvez até mais in­teligente do que alguns astrônomos de verdade, mas ele próprio se sabota. Em dois anos estará esquecido, enquanto a verdadeira ciência continuará de pé.

Se o cristianismo fosse algo que inventamos, é cla­ro que seria mais fácil. Mas não é. Não podemos com­petir, em matéria de simplicidade, com as pessoas que inventam religiões. Como poderíamos? Trabalhamos com a realidade como ela é. Só quem não se importa com a realidade pode se dar ao luxo de ser simplista.


(tirado de CRISTIANISMO PURO E SIMPLES)

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