segunda-feira, maio 20, 2013

Herman Dooyeweerd: No Crepúsculo do Pensamento.


Herman Dooyeweerd (1894-1977) é o maior filósofo do neo-calvinismo, herdeiro da tradição de Kuyper.  Ele adotou o método transcendental para explicar a experiência humana e compreender a relação entre a razão e a moral, o direito e a fé.

Segundo Guilherme de Carvalho diz na introdução do livro : "contra Kant e o neokantismo, Dooyeweerd localizou o coração humano como o verdadeiro ponto de partida do pensamento - e não a razão humana- e mostrou a necessidade de autoconhecimento, por meio do conhecimento de Deus, para que o homem possa desenvolver um pensamento autenticamente crítico" (p.24). 

No crepúsculo... está dividido em 4 partes: 1. a pretensa autonomia do pensamento filosófico, 2. o historicismo e o sentido da história, 3. filosofia e teologia e 4. em direção a uma antropologia radicalmente bíblica.

1. A PRETENSA AUTONOMIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO.


No primeiro capítulo, Dooyeweerd faz uma crítica do pensamento teórico, em especial, à autonomia do pensamento filosófico em relação aos pressupostos religiosos. Há um dogma da razão autônoma, ele vai mostrar as origens deste dogmatismo que impede um verdadeiro insight sobre sua estrutura.

Para Dooyeweerd,  Deus é o unificador do pensamento, toda diversidade modal de leis está relacionada à unidade central da lei divina, o mandamento de amar a Deus e ao nosso próximo. 


"Na atitude teórica do pensamento, opomos o aspecto lógico de nosso pensamento e experiência às modalidades não lógicas a fim de adquirir um insight analítico em relação a essas últimas" (p.56)


"Não é de se admirar que as modernas teorias filosóficas do conhecimento as quais se apegam ao dogma da autonomia do pensamento teórico tenham sido incapazes de fazer justiça à experiência ordinária. Perdendo de vista as relações pré-teóricas de sujeito-objeto inerentes à experiência ordinária e a relação antitética característica da atitude teórica, eles interpretam a própria experiência ordinária como uma teoria acrítica. E essa teoria foi denominada realismo ingênuo, ou teoria da cópia (copy theory). Conforme supunha tal teoria, a experiência ordinária assume que a percepção sensória nos dá uma imagem adequada das coisas, de como elas são em si mesmas- como substâncias metafísicas, à parte da experiência humana. Uma refutação dessa alegada teoria, com a ajuda dos resultados experimentais da pesquisa científica, por um lado, e de argumentos epistemológicos, por outro, foi assim, aceita como uma refutação da própria experiência ordinária. de fato, um estranho mal entendido" (p.67)

Para Dooyeweerd, por trás do pensamento teórico autônomo, há a absolutização de um aspecto modal especial sinteticamente concebido. Lembrando que a  estrutura modal, os aspectos modais da realidade, é a base da construção da filosofia cosmonômica.

"Essa absolutização é a fonte de todos os ismos na visão teórica da experiência humana e da realidade empírica. Eles resultam  da tentativa de reduzir todos os outros aspectos modais de nosso horizonte temporal da experiência a simples modalidades do aspecto absolutizado" (p.69-70).

Dooyeweerd critica que eles nunca justificam a si mesmo tendo como um ponto de partida puramente teórico. Há uma influência de motivos suprateóricos mascarados pela pretensa autonomia. E também, "em toda absolutização de um ponto de vista sintético especial o problema fundamental relacionado ao ponto de partida da síntese teórica retorna sem solução" (p. 70)

Um terceiro problema é a origem do ego.  Como é possível a direção concêntrica pensamento em direção ao ego e qual é a sua fonte?  Dooyeweerd critica a noção lógico-transcendental de Kant, pois ele não conseguiu apresentar seu ponto de partida real da reflexão filosófica.

"O pensamento teórico não pode fornecer, a partir de si mesmo, essa direção concêntrica. Apenas o ego central pode fazê-lo desde um ponto de vista suprateórico" (p. 75-76). 

O ego é o centro de toda atividade do pensamento e o ponto de partida está relacionado com a direção concêntrica para o ego  - o coração -, a raiz da existência humana. O impulso religioso em direção à origem determina o motivo básico.

Dooyeweerd apresenta quatro motivos básicos: matéria-foma, bíblico radical criação-queda-redenção, natureza-graça e natureza-liberdade:

"O desenvolvimento da filosofia ocidental tem sido governado por quatro motivos básicos religiosos principais, os quais adquiriram um poder sociocultural na história da civilização ocidental. O primeiro é o motivo grego matéria-forma, cujo sentido religioso passo a explicar adiante. O segundo é o motivo básico bíblico radical da criação, da queda no pecado e da redenção por Jesus Cristo na comunhão do Espírito Santo; o terceiro é o motivo escolástico da natureza e graça e o quarto é o motivo moderno humanista da natureza e liberdade" (p. 87)

"No caso do motivo básico escolástico natureza e graça, a sua origem se encontra na tentativa de uma acomodação mútua entre o motivo básico bíblico e o grego ou entre o bíblico e o humanista, os quais, em princípio, excluem-se mutuamente. No caso dos motivos grego e humanista, seu conflito interno origina-se no fato de que eles desviam o impulso religioso inato do ego humano de sua verdadeira origem, direcionando-o para o horizonte temporal da experiência com sua diversidade de aspectos modais. Ao procurar, assim, sua origem absoluta em um desses aspectos, o eu pensante é conduzido à absolutização do relativo" (p. 88)

Motivo matéria-forma:

"O motivo básico matéria-forma está, assim, no fundamento da visão metafísica grega de ser em sua oposição ao mundo visível do vir a ser e do declínio, e da visão grega da natureza e da sociedade humana. Em razão de seu caráter dialético, esse motivo básico envolveu o pensamento grego em um processo dialético que apresenta todos os traços que havíamos indicado brevemente" (p.93)

Motivo bíblico radical:

É o único ponto de partida possível para uma filosofia cristã.

"O segundo motivo básico do pensamento ocidental é o tema bíblico central e radical da criação, da queda no pecado e da redenção por Jesus Cristo como a palavra de Deus encarnada, na comunhão do Espírito Santo" (p.93)

"Este motivo básico religioso revelou a raiz ou centro real da natureza humana, e desmascara os ídolos do ego humano que surgem ao se buscar esse centro dentro do horizonte temporal de nossa experiência, com sua diversidade de aspectos modais. Ele revela o sentido positivo real do ego humano, como ponto de concentração religiosa de nossa existência integral, como o assunto central da imago Dei na direção positiva do impulso religioso do ego para a sua Origem absoluta. Além disso, ele revela a origem de todas as absolutizações do relativo, ou seja, a direção negativa ou apóstata do impulso religioso no ego humano. Assim, esse motivo revela o caráter real de todos os motivos básicos do pensamento humano, os quais desviam o impulso religioso em direção ao horizonte temporal. Aqui se encontra, também, a significância crítica do motivo básico bíblico para a filosofia, uma vez que ele liberta o ego pensante de preconceitos que, em princípio, por se originarem de absolutizações, impedem um insight filosófico na estrutura real e integral da ordem temporal da experiência" p. 94

Motivo escolástico natureza-graça

"Na esfera natural, uma autonomia relativa foi atribuída à razão humana, que supostamente seria capaz de descobrir as verdades naturais por sua própria luz. Na esfera sobrenatural da graça, pelo contrário, o pensamento humano era considerado dependente da autorrevelação divina" (p. 96)

"A tentativa tomista de sintetizar os motivos opostos de natureza e graça, e a atribuição de primazia ao último, encontrou uma clara expressão no adágio: gratia naturam non tollit, sed perfecit ( a graça não cancela a natureza, mas a aperfeiçoa) (...) Qualquer ponto de conexão entre as esferas natural e sobrenatural foi negado. Isso foi a introdução para uma transferência da primazia para o motivo da natureza. O processo de secularização da filosofia havia começado" (p. 97) 

Motivo humanista natureza-liberdade:

O homem moderno recria  tanto sua origem como seu mundo à sua própria imagem.

"O motivo da liberdade origina-se de uma religião da humanidade, na qual o motivo básico bíblico foi completamente transformado. O esquema relacionado à ideia de renascimento da Renascença italiana significava um renascimento real do homem em uma personalidade criativa e completamente nova. Tal personalidade foi pensada como absoluta em si mesma e considerada como a única governante de seu próprio destino e do destino do mundo (...) A revelação bíblica da criação do homem à imagem de Deus foi implicitamente subvertida na ideia da criação de Deus à imagem idelizada do homem e de sua liberdade radical em  Jesus Cristo foi substituída pela ideia de regeneração do homem por sua própria vontade autônoma, sua emancipação do reino medieval das trevas, o qual estaria enraizadao na crença na autoridade sobrenatural da igreja" (p. 98)

O impulso de dominar a natureza por meio de um pensamento científico autônomo criou uma imagem determinista do mundo, construído sobre uma cadeia de relações causais que podem ser formuladas por equações matemáticas.

Os limites e a possibilidade de diálogo.

"A influência central dos motivos reilgiosos sobre o pensamento filosófico é mediada por uma ideia transcendental básica que se desdobra em três elementos os quais, consciente ou inconscientemente, estão na fundação de qualquer reflexão filosófica e tornam tal reflexão possível. Essa ideia básica tripla a qual denomino ideia cosmonômica da filosofia relaciona-se aos três problemas transcendentais básicos concernentes à atitude teórica do pensamento, que formulamos e consideramos em nossa primeira palestra. Assim, ela contém, em primeiro lugar, uma ideia-limite transcendental da totalidade de nosso horizonte temporal de experiência com sua diversidade de aspectos modais; em segundo lugar, uma ideia do ponto de referência central de todos os atos sintéticos do pensamento e, em terceiro lugar, uma ideia de origem, quer seja ela chamada Deus, quer não, relacionando  tudo o que é relativo com o absoluto" (p.104)

Cada reflexão filosófica é uma atividade humana falível, a filosofia cristã não tem posição privilegiada neste aspecto.

Por conta da graça comum, verdades relativas são encontradas em cada filosofia, embora as interpretações filosóficas podem ser inaceitáveis por estarem sendo governadas por um motivo básico dialético e apóstata.

Apenas na palavra de Deus e em seu sentido central, que revela as absolutizações e pode conduzir o homem ao verdadeiro conhecimento de si mesmo e sua origem absoluta.


2.HISTORICISMO E O SENTIDO DA HISTÓRIA.


O historicismo é apresentado como a absolutização do aspecto histórico. Dooyeweerd vai apresentar a evolução histórica do historicismo, até sua implementação no pensamento teórico contemporâneo. O historicismo radical faz do ponto de vista histórico uma totalidade abrangente, absorvendo todos os outros aspectos do horizonte da experiência humana. Dooyeweerd coloca Splenger como a fonte em seu livro THE DECLINE OF THE WEST.

Mas, ele traça suas origens na Renascença, como movimento religioso que buscava a transformação da religião cristã numa religião da personalidade e da humanidade. Em Descartes e Hobbes, para a governança do mundo apenas pelo pensamento autônomo e criativo projetou uma imagem de mundo a partir de padrões estritamente matemáticos e mecânicos.

A tensão dialética está entre a primazia da natureza (Descartes, Hobbes e Leibniz) e a primazia da liberdade (Locke, Rosseau e Kant).  A síntese dialética é o idealismo pós-kantiano (Hegel, Schelling)

O historicismo radical nasce dessa síntese, com Comte sendo o primeiro a submeter a crença cristã e humanista nas chamadas ideias eternas da razão humana à visão historicista.

"No fim das contas, o problema do significado da história gira em torno da questão: quem é o próprio homem, e qual é sua origem e destino final? Fora da revelação bíblica central da criação, da queda no pecado e da redenção por meio de Jesus Cristo, nenhuma resposta real pode ser encontrada para esta questão. Os conflitos e tensões dialéticos que ocorrem no processo de abertura da vida cultural humana resultam de uma absolutização do que é relativo. E cada absolutização tem sua origem no espírito da apostasia, o espírito da civitas terrena, o reino das trevas, como Agostinho o denominou" (p.171)

3. FILOSOFIA E TEOLOGIA.


Nesta terceira parte, Dooeyeweerd fala da relação entre filosofia, teologia e religião. Os pais da igreja falavam que a teologia cristã tinha seu próprio princípio de conhecimento - palavra-revelação.  A influência grega fez a teologia teórica cristã confundir o verdadeiro conhecimento de Deus e o verdadeiro autoconhecimento.

No escolasticismo, a teologia precisava da filosofia para fornecer a ela o caráter e o espírito de ciência, segundo o papa Leão XIII, em Aeterni Patris. Tomás não faz uma identificação como Agostinho de teologia e filosofia, para ele a filosofia é uma ciência autônoma, que inclui uma teologia filosófica que se reporta à luz da razão. A filosofia sai do controle da palavra de Deus

Em Barth,  a falta de uma distinção clara entre palavra-revelação como princípio central do conhecimento e o objeto científico próprio da teologia dogmática permanece. Barth opõe teologia dogmática e filosofia de uma maneira radical, para ele uma filosofia cristã seria uma contradição em termos.

"Essa é a razão por que  Barth, em clara oposição a Abraham Kuyper nega que a epistemologia utilizada pela teologia seja de caráter filosófico. A teologia dogmática, como um instrumento da palavra de Deus, precisa elaborar sua própria epistemologia, sem interferência da filosofia" (p.182)

Por outro lado, Barth tem que procurar ajuda no pensamento teórico, contudo, este é inadequado para o pensamento teológico. "essa ausência de alternativas ao pensamento teórico é a razão pela qual o teólogo não pode escapar a noções filosóficas. Ele pode tomá-las de todos os tipos de sistemas, contanto que não se prenda a qualquer deles e empregue essas noções em um sentido puramente formal, destacando-se de seu conteúdo filosófico material. Ignorando por um momento essa distinção entre uso formal e uso materialn de conceitos filosóficos, observamos que Barth também emprega o termo teologia de uma forma ambígua. Por um lado, ele entende por teologia o verdadeiro conhecimento de Deus em Jesus Cristo, por outro lado, a ciência dogmática das verdades da fé cristã reveladas nas sagradas Escrituras." (p. 183)

Religião: o conhecimento suprateórico de Deus.


"Assim, o tema central das Escrituras sagradas, ou seja, a criação, queda no pecado e redenção por Jesus Cristo na comunhão do Espírito Santo, tem uma uni dade radical de sentido que está  relacionada à unidade central da existência humana. Ele efetiva o verdadeiro conhecimento de Deus e de nós mesmos. se nosso coração estiver realmente aberto para o Espírito Santo de forma a se encontrar cativo da palavra de Deus e prisioneiro de Jesus Cristo. À medida em que esse sentido central da palavra-revelação estiver em questão, encontrar-nos-emos além dos problemas científicos, tanto da teologia como da filosofia. Sua aceitação ou rejeição é uma questão de vida ou morte para nós, e não uma questão de reflexão teórica. Nesse sentido, o motivo central das sagradas Escrituras é o ponto de partida comum, supracientífico, tanto de uma teologia bíblica quanto de uma filosofia realmente cristã. Ele é a chave do conhecimento, a qual Jesus Cristo mencionou em sua discussão com os escribas e doutores da lei. Ele é a pressuposição religiosa de qualquer pensamento teórico capaz de reivindicar para si, com justiça, a posse de um fundamento bíblico. Mas, como tal, ele nunca poderá se tornar o objeto teórico da teologia, assim como Deus e o eu humano não podem se tornar esse objeto" (p. 188)

Qual seria o objeto teórico apropriado da teologia? A palavra-revelação deve ser o fundamento da vida cristã, tanto em sua atividade prática como científica. Ela não pode ser objeto teórico, funciona como ponto de partida central, ou motivo básico religioso.

"Karl Barth, corretamente rejeitou a metafísica da analogia entis. Ele a chamou de invenção do anticristo e a substituiu pela analogia fidei, a analogia da fé. Mas, como vimos, é exatamente a estrutura analógica da fé o que confronta a teologia com um problema básico de caráter filosofico que não pode ser deixado de lado. Se, como pensa Karl Barth, a crença cristã não tem qualquer ponto de contato com a natureza humana, como pode ela apresentar aquela estrutura analógica pela qual mantém-se conectada, por exemplo, ao aspecto sensório de nossa experiência" (p. 220)

"Se os teólogos negarem a possibilidade de uma filosofia biblicamente fundamentada, são obrigados a tomar suas suposições filosóficas de uma assim chamada filosofia autônoma. É uma vã ilusão imaginar que as noções emprestadas de tal filosofia poderiam ser utilizadas pelo teólogo em um sentido puramente formal" (p.221)

"A teologia carece , acima de tudo, de uma crítica radical do pensamento teórico que, em virtude de seu ponto de partida bíblico, seja capaz de demonstrar a influência intrínseca de motivos básicos religiosos tanto sobre teologia como sobre a filosofia. Esse é o primeiro serviço que a nova filosofia reformada pode prestar à sua teologia irmã. Em minha próxima palestra explicarei a necessidade desse serviço em maiores detalhes" (p.222)

A questão para a teologia é buscar sua fundamentação filosófica numa filosofia cristã, governada e reformada pelo motivo básico bíblico central. Se não for este, será o escolástico ou humanista.

Dooyeweerd coloca os fundamentos gregos do escolasticismo, que vem do motivo básico forma-matéria, que foi gerada do encontro de suas religiões gregas antagònicas: a antiga religião natural da vida e da morte e a religião cultural mais jovem dos deuses olímpicos - Dionísio (matéria) e Apolo (forma).

Tomás acomodou a filosofia grega aristotélica da natureza humana à doutrina cristã. Deus criou o homem como uma substância natural, composta de matéria e forma. Para Dooyeweerd, a doutrina psico-criacionista contradiz a Escritura, pois Deus ainda está criando as almas. Agora, se Deus ainda cria as almas racionais após a queda, como ele cria almas pecadoras? Ou deveríamos assumir que o pecado está ligado ao corpo material apenas?

PARTE 4- EM DIREÇÃO A UMA ANTROPOLOGIA RADICALMENTE BÍBLICA


Nesta última seção, Dooyeweerd vai buscar responder sobre a questão do que é o homem. Ele vai lançar bases para uma antropologia que seja fundamentada na Escritura como seu motivo base. Fala da crise do pensamento ocidental e da incapacidade da filosofia existencialista de dar respostas:

"O homem de massa moderno perdeu todos os seus traços pessoais. Seu padrão de comportamento é ditado pelo que é feito em geral, transferindo este a responsabilidade pelo seu comportamento para uma sociedade impessoal. E essa sociedade, em troca, parece estar sendo controlada por um robô, um cérebro eletrônico ou pela burocracia, pela moda, pela organização e outros poderes impessoais. Como resultado, nossa sociedade contemporânea não deixa lugar para a personalidade humana e para uma comunhão espiritual real de pessoa para a pessoa" (p. 243)

No parágrafo 29, ele fala do sentido do eu. Primeiro, explica sobre a transcendência do eu, do mistério que há nisto que "o ego não deve ser determinado por nenhum aspecto de nossa experiência temporal, uma vez que é ponto de referência central de todos eles. Se ao homem faltasse esse eu central ele não poderia, de fato, ter qualquer experiência" (p. 249)

No mistério do eu, há três relações que Dooyeweerd faz para tentar concebê-lo: "Primeiro, o nosso ego relaciona-se com a nossa existência temporal total e com a nossa experiência integral do mundo temporal como seu ponto de referência central. Segundo, ele se encontra, de fato, em uma relação comunal essencial com o ego de seus semelhantes. Terceiro, ele aponta para além de si mesmo em direção à relação central com sua origem divina, em cuja imagem o homem foi criado" (p. 251)

Dooyeweerd retoma o tema do autoconhecimento em Deus de Calvino

"Ele é a única chave para o verdadeiro autoconhecimento em sua dependência do verdadeiro conhecimento de Deus. E é também o juiz único de ambas as visões, teológica e filosófica do homem. Como tal, esse tema central da palavra-revelação não pode ser dependente de interpretações e concepções teológicas, as quais são trabalhos humanos falíveis, limitados à ordem temporal de nossa existência e experiência. Seu sentido radical pode ser explicado apenas pelo Espírito Santo, o qual abre nosso coração, de forma que nossa crença não é mais uma mera aceitação dos artigos da fé cristã, mas uma crença viva, instrumental para a operação central da palavra de Deus no coração, o centro religioso de nossa vida. Essa operação não ocorre de forma individualista, mas na comunhão ecumênica do Espírito Santo que une todos os membros da verdadeira igreja católica em seu sentido espiritual, independentemente de suas divisões denominacionais" (p. 256)

Qual é o sentido radical de criação, queda e redenção?

Como Criador, Deus é a origem absoluta de tudo o que existe fora de si mesmo. Se o nosso coração não está cativo a Deus, então ele está pronto a absolutizar os relativos - idolatria. Não há zona neutra ou segura fora do alcance de Deus.

"Ele criou o homem como um ser em quem a inteira diversidade dos aspectos e faculdades do mundo temporal está concentrada no centro religioso de sua existência. Esse centro é aquele ao qual denominamos nosso eu, e o qual as Escrituras sagradas chamam, em um sentido religioso, de coração. Como o assento central da imagem de Deus, o ego humano foi imbuído com um impulso religioso inato a fim de concentrar todo o mundo temporal sob o serviço de amor a Deus. E uma vez que esse amor a Deus implica o amor por sua imagem no homem, toda a diversidade das ordenanças temporais de Deus é relacionada com o mandamento religioso central do amor: "amarás, pois, o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu entendimento... e ao teu próximo como a ti mesmo" -Mc 12:30,31. Esse é o sentido bíblico  da criação do homem à imagem de Deus. Ele não deixa, assim, espaço para uma esfera supostamente neutra da vida que possa ser subtraída do mandamento central de Deus. 

Uma vez que a imagem de Deus no homem relaciona-se com a radix, ou seja, o centro religioso e raiz de nossa existência temporal total, segue-se que a queda no pecado pode apenas ser entendida no mesmo sentido bíblico radical. A queda no pecado pode ser resumida como uma ilusão surgida no coração humano,  quando o eu humano creu possuir uma existência absoluta como o próprio Deus. Essa foi a falsa insinuação de satanás à qual o homem deu ouvidos - serás como deus". Essa apostasia em relação ao Deus vivo implicou na morte espiritual do homem, pois o eu humano não é nada em si mesmo e pode apenas viver da palavra de Deus e na comunhão amorosa com seu Criador divino. Entretanto, o pecado original não poderia destruir o centro religioso da existência humana e o seu impulso religioso inato de buscar a sua origem absoluta. Ele poderia apenas conduzir esse impulso central para um direção falsa, apóstata, desviando-o em direção ao mundo temporal com sua rica diversidade de aspectos, os quais, entretanto, têm apenas um sentido relativo" (p.260)

Não pode haver um autoconhecimento real longe de Jesus, toda a nossa visão de mundo e da vida precisa ser reformada em Cristo.  Toda visão dualista que separe dessa verdadeira raiz deve ser descartada.

A questão do homem não pode ser respondida pelo próprio homem, mas depende da palavra-revelação que mostra a raiz religiosa e o centro da natureza humana em sua criação, queda e redenção em Cristo.

"O homem perdeu o verdadeiro autoconhecimento desde que perdeu o verdadeiro conhecimento de Deus. Mas todos os ídolos do ego humano, os quais o homem projetou em sua apostasia, quebram-se quando confrontados com a palavra de Deus, que desmascara sua vaidade e seu vazio. Apenas essa palavra, por meio de sua influência radical, pode conduzir a uma reforma real de nossa visão do homem e de nossa visão do mundo temporal; e tal reforma interna é o extremo oposto do esquema escolástico da acomodação" (p.265)



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