Caminhos tortuosos
SILVIANO SANTIAGOESPECIAL PARA A FOLHA
Aparentemente, "O Filho Eterno", de Cristovão Tezza, estaria dramatizando a dor e as dificuldades de um jovem casal que se vê às voltas com o nascimento de um filho com síndrome de Down.O romance ganha sentido pelo avesso da cena clássica a que nos acostumaram os filmes sentimentais e as telenovelas. Nela, mãe e pai se vêem premiados com a chegada do herdeiro e logo são cercados em festa pelos familiares.Não há que descartar a coragem na investida do romancista nem a tragédia que se abate sobre o casal depois da ansiedade que recobre os dois primeiros capítulos do livro. Há, sim, que ler com maior cuidado a prosa do autor catarinense, hoje curitibano, prosa que não se entrega ao leitor como simples documento de vida.Habilmente escrito na primeira pessoa, "O Filho Eterno" se vale dos recursos retóricos dos relatos autobiográficos. Quem narra a desdita paterna é um escritor frustrado, que sempre se sentiu muito aquém do potencial criativo: "Penso que sou escritor, mas ainda não escrevi nada".A obsessiva e estruturada personalidade do narrador, tomada de empréstimo a escritores do porte de Dostoiévski, serve de contraponto à trama da infelicidade paterna, compondo com ela um quadro mais amplo e simbólico da fatalidade. Leia-se a epígrafe de Thomas Bernhard. Por acasoA originalidade que o romancista buscava nos antigos trabalhos o atinge pelo reverso da medalha: o filho que lhe é entregue pelas mãos de uma "natureza arbitrária, absurda, lotérica, errática". Lê-se: "O seu filho quebrou-lhe a espinha, tão cuidadosamente empinada. Por acaso". É a originalidade do fato a ser vivido em surpresa com a mulher e, posteriormente, com a filha, que traz a originalidade da trama a ser escrita. O estigma (para usar o conceito psicológico) alicerça o projeto literário.Em vão o narrador percorre a história da filosofia e da literatura em busca de trama semelhante à que vivencia. Relembra os diálogos de Platão, as narrativas medievais, todo Balzac, Dostoiévski e Thomas Mann. Busca algo em comum com James Joyce. Nada de similar. O escritor tinha sido finalmente "premiado" (perdão pelos maus sentimentos desta resenha).Só vai encontrar respaldo técnico numa tese da área de genética sobre síndrome de Down. Insiste na escrita do romance "Ensaio da Paixão", sabendo que só 20 anos depois, em débito com a tese, é que irá compor e escrever "O Filho Eterno".A petulância (ou a arrogância) do inventor cedeu lugar à humildade (ou à vergonha) do inventado pela sorte. É a humildade que, paradoxalmente, arrasa criticamente a petulância de um velho poema de aparência profética, escrito em Coimbra.Em outros romances, no entanto, o narrador tinha tido experiência diametralmente oposta: "Às vezes, [o romancista] tem a viva sensação de que é escrito pelo que escreve, como se suas palavras soubessem mais que ele próprio". As palavras nada sabem. O estigma sabe mais do que elas. CamadasNão é a invenção pelo narrador erudito que é crítica. No projeto de vida e de arte é o inventado pelo acaso que se torna crítico de toda invenção. O narrador reage à verdade do fato absurdo, opõe-se a ela, justapondo-lhe camadas. Entre as camadas apostas, a da escrita literária serve para que reafirme a própria personalidade, cegando-o ao fato. Ao emprestarem profundidade à narrativa, as camadas propostas pelo narrador erudito subtraem do fato a carência e a solidão do ser humano.Estão em jogo, portanto, os caminhos tortuosos, obtusos e misteriosos da criação humana no plano da vida e no plano da arte. Isso é o que lhe diz grosseiramente o amigo que nem chegou a completar o segundo grau: "Você é tão inteligente e não conseguiu nem fazer um filho direito".Conduzido aos termos pedestres, o leitor está preparado para enfrentar as palavras de culpa, vergonha e dor que arrebentam e redimem os pulmões do narrador, levando-o a querer justapor camadas subjetivas e raivosas à certeza do saber médico.Talvez (insisto no peso e valor do advérbio) esteja na personalidade autocentrada do narrador certa perda do norte na construção do romance. Ela se torna hegemônica no meio do relato.A originalidade da intriga propiciada pelo estigma cede lugar a repetidos relatos sobre viagens do pai enquanto candidato a ator e escritor pelo Brasil (Nordeste e centro-leste) e o estrangeiro (Portugal, Alemanha e França). O contraponto inicial perde a fluidez crítica e vira indulgente na descrição dos desvios de comportamento do filho.Se os relatos sobre a experiência nômade do jovem e futuro pai foram necessários para sustentar a erudição literária do narrador, agora estruturam o mutilado, enquadrando o romance naquilo que ele saiu para não ser. Um documento de vida, como está nas derradeiras páginas.Talvez venha do narrador autocentrado o fato de que as vozes femininas -a da mulher e a da filha nascida de uma segunda gravidez- sejam representadas no romance pelo silêncio, como se pertencentes ao universo patriarcal de José Lins do Rego [1901-57].Dentro da poética confessada do narrador, não poderiam ter sido elas responsáveis por outras enriquecedoras "camadas sob camadas"? Falta a esta resenha uma leitura contrastiva com alguns livros do japonês Kenzaburo Oe, Nobel em 1994. Não há como fazê-la aqui.Em 1963, o renomado romancista é atingido pelo nascimento de um filho com problemas mentais. Da ficção que foi inspirada, saliento "Uma Questão Pessoal" [Companhia das Letras] e "Diga-me como Sobreviver a Nossa Loucura" (1969). SILVIANO SANTIAGO é crítico literário, autor de, entre outros livros, "As Raízes e o Labirinto da América Latina" (ed. Rocco).
SILVIANO SANTIAGOESPECIAL PARA A FOLHA
Aparentemente, "O Filho Eterno", de Cristovão Tezza, estaria dramatizando a dor e as dificuldades de um jovem casal que se vê às voltas com o nascimento de um filho com síndrome de Down.O romance ganha sentido pelo avesso da cena clássica a que nos acostumaram os filmes sentimentais e as telenovelas. Nela, mãe e pai se vêem premiados com a chegada do herdeiro e logo são cercados em festa pelos familiares.Não há que descartar a coragem na investida do romancista nem a tragédia que se abate sobre o casal depois da ansiedade que recobre os dois primeiros capítulos do livro. Há, sim, que ler com maior cuidado a prosa do autor catarinense, hoje curitibano, prosa que não se entrega ao leitor como simples documento de vida.Habilmente escrito na primeira pessoa, "O Filho Eterno" se vale dos recursos retóricos dos relatos autobiográficos. Quem narra a desdita paterna é um escritor frustrado, que sempre se sentiu muito aquém do potencial criativo: "Penso que sou escritor, mas ainda não escrevi nada".A obsessiva e estruturada personalidade do narrador, tomada de empréstimo a escritores do porte de Dostoiévski, serve de contraponto à trama da infelicidade paterna, compondo com ela um quadro mais amplo e simbólico da fatalidade. Leia-se a epígrafe de Thomas Bernhard. Por acasoA originalidade que o romancista buscava nos antigos trabalhos o atinge pelo reverso da medalha: o filho que lhe é entregue pelas mãos de uma "natureza arbitrária, absurda, lotérica, errática". Lê-se: "O seu filho quebrou-lhe a espinha, tão cuidadosamente empinada. Por acaso". É a originalidade do fato a ser vivido em surpresa com a mulher e, posteriormente, com a filha, que traz a originalidade da trama a ser escrita. O estigma (para usar o conceito psicológico) alicerça o projeto literário.Em vão o narrador percorre a história da filosofia e da literatura em busca de trama semelhante à que vivencia. Relembra os diálogos de Platão, as narrativas medievais, todo Balzac, Dostoiévski e Thomas Mann. Busca algo em comum com James Joyce. Nada de similar. O escritor tinha sido finalmente "premiado" (perdão pelos maus sentimentos desta resenha).Só vai encontrar respaldo técnico numa tese da área de genética sobre síndrome de Down. Insiste na escrita do romance "Ensaio da Paixão", sabendo que só 20 anos depois, em débito com a tese, é que irá compor e escrever "O Filho Eterno".A petulância (ou a arrogância) do inventor cedeu lugar à humildade (ou à vergonha) do inventado pela sorte. É a humildade que, paradoxalmente, arrasa criticamente a petulância de um velho poema de aparência profética, escrito em Coimbra.Em outros romances, no entanto, o narrador tinha tido experiência diametralmente oposta: "Às vezes, [o romancista] tem a viva sensação de que é escrito pelo que escreve, como se suas palavras soubessem mais que ele próprio". As palavras nada sabem. O estigma sabe mais do que elas. CamadasNão é a invenção pelo narrador erudito que é crítica. No projeto de vida e de arte é o inventado pelo acaso que se torna crítico de toda invenção. O narrador reage à verdade do fato absurdo, opõe-se a ela, justapondo-lhe camadas. Entre as camadas apostas, a da escrita literária serve para que reafirme a própria personalidade, cegando-o ao fato. Ao emprestarem profundidade à narrativa, as camadas propostas pelo narrador erudito subtraem do fato a carência e a solidão do ser humano.Estão em jogo, portanto, os caminhos tortuosos, obtusos e misteriosos da criação humana no plano da vida e no plano da arte. Isso é o que lhe diz grosseiramente o amigo que nem chegou a completar o segundo grau: "Você é tão inteligente e não conseguiu nem fazer um filho direito".Conduzido aos termos pedestres, o leitor está preparado para enfrentar as palavras de culpa, vergonha e dor que arrebentam e redimem os pulmões do narrador, levando-o a querer justapor camadas subjetivas e raivosas à certeza do saber médico.Talvez (insisto no peso e valor do advérbio) esteja na personalidade autocentrada do narrador certa perda do norte na construção do romance. Ela se torna hegemônica no meio do relato.A originalidade da intriga propiciada pelo estigma cede lugar a repetidos relatos sobre viagens do pai enquanto candidato a ator e escritor pelo Brasil (Nordeste e centro-leste) e o estrangeiro (Portugal, Alemanha e França). O contraponto inicial perde a fluidez crítica e vira indulgente na descrição dos desvios de comportamento do filho.Se os relatos sobre a experiência nômade do jovem e futuro pai foram necessários para sustentar a erudição literária do narrador, agora estruturam o mutilado, enquadrando o romance naquilo que ele saiu para não ser. Um documento de vida, como está nas derradeiras páginas.Talvez venha do narrador autocentrado o fato de que as vozes femininas -a da mulher e a da filha nascida de uma segunda gravidez- sejam representadas no romance pelo silêncio, como se pertencentes ao universo patriarcal de José Lins do Rego [1901-57].Dentro da poética confessada do narrador, não poderiam ter sido elas responsáveis por outras enriquecedoras "camadas sob camadas"? Falta a esta resenha uma leitura contrastiva com alguns livros do japonês Kenzaburo Oe, Nobel em 1994. Não há como fazê-la aqui.Em 1963, o renomado romancista é atingido pelo nascimento de um filho com problemas mentais. Da ficção que foi inspirada, saliento "Uma Questão Pessoal" [Companhia das Letras] e "Diga-me como Sobreviver a Nossa Loucura" (1969). SILVIANO SANTIAGO é crítico literário, autor de, entre outros livros, "As Raízes e o Labirinto da América Latina" (ed. Rocco).
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