segunda-feira, junho 08, 2009

JOSÉ SARAMAGO: A Viagem do Elefante

"Não se pode descrever. Realmente, o maior desrespeito à realidade, seja ela, a realidade, o que for, que se poderá cometer quando nos dedicamos ao inútil trabalho de descrever uma paisagem, é ter de fazê-lo com palavras que não são nossas, que nunca foram nossas, repare-se, palavras que já correram milhões de páginas e de bocas antes que a nossa vez chegasse de utiliza-las, palavras cansadas, exaustas de tanto passarem de mão em mão e deixarem em cada uma parte da sua substância vital" p. 241
“A Viagem do Elefante” de José Saramago
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Viegas Fernandes da Costa
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Há quem diga que a carícia da morte devolve-nos uma leveza e um certo humor que perdemos com o transcorrer dos anos. Há quem diga, claro, ser isto pura bobagem. Bobagem ou verdade, no final de 2007 o escritor português José Saramago (Prêmio Nobel de Literatura em 1998) enfrentou problemas respiratórios gravíssimos que por pouco não o levaram a óbito. Recuperado, tratou de concluir seu mais novo livro, “A Viagem do Elefante” (Ed. Companhia das Letras, 2008), uma novela teimosamente referenciada de conto pelo próprio autor.
“A Viagem do Elefante” ambienta-se em meados do século XVI, e conta a história do elefante Solimão (ou Salomão, como é chamado depois de passar à propriedade austríaca) e seu cornaca Subhro (ou Fritz, cujo nome também é modificado, pois, enquanto tratador e guia, acompanha o elefante e os desígnios aos quais este é submetido). Solimão era propriedade do império português, e vivia um tanto quanto esquecido em Lisboa, sob os cuidados de Subhro. De pouca ou nenhuma serventia aos interesses do rei D. João III, o elefante é presenteado ao arquiduque austríaco Maximiliano II, recém casado com a filha do imperador Carlos V, que aceita o presente e imediatamente procede a mudança dos nomes de Solimão e Subhro para Salomão e Fritz. A partir de então, o narrador passará a contar a história da longa viagem empreendida por Salomão e Fritz, primeiramente de Portugal a Espanha, onde se detinha a comitiva de Maximiliano II, e de Espanha a Áustria, incluindo-se aí uma perigosa viagem marítima pelo Mediterrâneo e uma quase suicida travessia dos Alpes.
Para quem se acostumara à densidade de livros como “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, “Ensaio Sobre a Cegueira”, “Memorial do Convento” entre outros, este “A Viagem do Elefante” aparenta uma simplicidade e uma linearidade que parecem destoar da obra do autor; entretanto, é nas tergiversações dos personagens e do narrador que reside a maior qualidade da obra. A história serve apenas como pano de fundo para que José Saramago exercite seu mais fino humor e sua mordaz ironia à burocracia de Estado e à corrupção intrínseca dos indivíduos. Assim, não foi casual a escolha de um elefante como personagem central do livro. É Solimão (ou Salomão) que move a burocracia de um Estado inoperante, muito mais preocupado com sua perpetuação e imagem, do que com sua eficiência junto às necessidades de seu povo, e é em torno e em função dele que se destacará toda uma comitiva e para qual se contratarão funcionários que possam surprir suas necessidades particulares e tornar possível e segura sua viagem. Solimão é, desta feita, o próprio Estado, cuja ineficácia burocrática José Saramago discutiu em livros como “Todos os Nomes” e “Ensaio sobre a Lucidez”, dentre outros. Subhro (ou Fritz), o cornaca, por sua vez, constitui-se como personagem complexo: indiano de origem, emigrou para Portugal acompanhando Solimão, a quem trata, treina e guia. Apesar de servir a seu soberano, seja este o rei português ou o arquiduque austríaco, é dado a arroubos de autonomia, e chega a contestar e ironizar seus superiores hierárquicos. Sabendo-se fundamental aos interesses do seu governo, considerando ser o único a conhecer as manhas e artimanhas de Solimão, Subhro emite suas opiniões próprias e, em nome do bem-estar do elefante (e, consecutivamente, dos interesses de Estado), chega a impor condições para a viagem.
Entretanto, como todo ser humano, deixa-se levar também por seus interesses próprios e, sempre que pode, usa do Estado (no caso, Solimão) para obter lucros e benefícios pessoais, como no episódio em que passa a vender pelos do animal a uma população crédula depois de ter usado o paquiderme para forjar um milagre – uma clara referência ao momento em que a história é ambientada, quando na Europa eclodiram os movimentos da Reforma Protestante e da Contra-Reforma Católica.Como já dissemos aqui, há quem diga que a carícia da morte devolve-nos uma leveza e um certo humor que perdemos com o transcorrer dos anos. Fato é que em “A Viagem do Elefante” encontramos um Saramago mais leve, consciente da importância da sua literatura, porém ciente, também, de que talvez já tenha dito o que havia para se dizer, e que a esta altura de sua vida e carreira importa mesmo o prazer de escrever uma boa história.Por isso, talvez, a impressão de um Saramago sorridente que nos acomete quando fechamos o livro.*
Viegas Fernandes da Costa é historiador e escritor, autor de "Sob a luz do farol" (2005) e "De espantalhos e pedras também se faz um poema" (2008).**
Texto originalmente publicado no site www.bc.furb.br/saraueletronico

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