Manual do repórter
Em entrevista exclusiva, o americano Gay Talese, mestre do Novo Jornalismo, fala de seu livro Vida de Escritor, que chega ao País, e dos desafios da imprensa na era da internet
Lúcia Guimarães
A townhouse branca num nobre quarteirão do East Side não chama atenção, mas poderia ser tombada - tanto pelo desfile de luminares que por lá passaram, nos últimos 50 anos, como pelo proprietário. Numa manhã adorável de primavera, abro o gracioso portão de ferro, subo as escadas e toco a campainha da porta de vidro que separa o público da outra porta com a inscrição "Talese". Atrás de mim, Taís Moraes, jornalista-cinegrafista-editora, esconde o equipamento. Tememos uma reação rabugenta do anfitrião que estará inevitavelmente vestido como um dândi de outra era, num horário em que muitos colegas seus só deram conta de escovar os dentes.
Em entrevista exclusiva, o americano Gay Talese, mestre do Novo Jornalismo, fala de seu livro Vida de Escritor, que chega ao País, e dos desafios da imprensa na era da internet
Lúcia Guimarães
A townhouse branca num nobre quarteirão do East Side não chama atenção, mas poderia ser tombada - tanto pelo desfile de luminares que por lá passaram, nos últimos 50 anos, como pelo proprietário. Numa manhã adorável de primavera, abro o gracioso portão de ferro, subo as escadas e toco a campainha da porta de vidro que separa o público da outra porta com a inscrição "Talese". Atrás de mim, Taís Moraes, jornalista-cinegrafista-editora, esconde o equipamento. Tememos uma reação rabugenta do anfitrião que estará inevitavelmente vestido como um dândi de outra era, num horário em que muitos colegas seus só deram conta de escovar os dentes.
O sorriso largo e o aperto de mão generoso, apesar da gripe suína, me encorajam a explicar que a trama é um pouco mais complexa. Além da entrevista, precisamos de foto e vídeo (para veicular trechos da conversa no portal do Estado na internet). Ele concorda sem hesitação e me oferece a escolha entre a belíssima sala de visitas, a sala de jantar ou o jardim de inverno; escolho a sala de visitas. Gay Talese, um dos pais do Novo Jornalismo, um nome que ele desdenha, gosta de conversar com anônimos, algo que transformou numa arte ao longo de sua obra - mas como todo bom contador de histórias, não perde a loquacidade ao revisitar as próprias memórias.
O autor do mais famoso perfil de revista da imprensa americana, Frank Sinatra Está Resfriado, publicado pela revista Esquire, em 1966, não só goza de boa saúde, como não aparenta seus 77 anos. Dois de seus livros mais bem-sucedidos, A Mulher do Próximo, sobre a revolução sexual nos anos 70, e Honra o Teu Pai, uma história da família mafiosa Bonnano, acabam de ser relançados nos Estados Unidos, com novas introduções e posfácios. Vida de Escritor (Companhia das Letras), seu volumoso e atípico livro sobre o ofício que fez dele um cronista obrigatório do pós-guerra americano, sai no Brasil nesta semana.
O ator Stanley Tucci acaba de escrever um roteiro baseado em Para os Filhos, a obra de Talese sobre sua origem italiana. E os 50 anos do que ele descreve como "um arranjo incomum" - seu casamento com a agente literária Nan Talese -, serão contados num próximo livro. Imagino que seu editor estará pronto para registrar bodas mais avançadas porque Talese é lendário na sua lentidão para entregar um manuscrito.
Na entrevista a seguir, concedida com exclusividade, o jornalista e escritor - que estará no Brasil em julho, participando da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) - fala de seu método de trabalho, sexualidade, casamento e, claro, sobre a crise dos jornais e por que a sociedade precisa deles: "No prédio de qualquer redação de um jornal respeitável, a qualquer momento, há menos mentirosos por metro quadrado do que em qualquer outro prédio."
O senhor já descreveu o ato de trabalhar num livro com metáforas dolorosas como "expelir pedras de rins". Com este não foi diferente, certo?
Pior ainda. Demorei mais de 10 anos. No começo, você tem uma ideia e é movido pela curiosidade. Mas não é porque você persegue a própria curiosidade que vai chegar a algum lugar, na análise final de um trabalho publicado. Você tem que se envolver ou, ao menos, começar a se envolver. É aí que o que eu chamo de perda de tempo começa a progredir, em reversão. Porque para escrever não ficção - eu não escrevo ficção -, não fabrico fatos, não tomo liberdade com eles. Para que a sua procura pelos fatos tome a forma da narrativa de ficção, você tem que conhecer seus personagens muito bem. Tem que estabelecer com eles uma compatibilidade, uma compreensão não só do que eles dizem mas também do que estão pensando. É preciso que haja um relacionamento, quase um caso de amor. O que não quer dizer que você passe por uma rendição de todo o afeto e da capacidade de julgar - de jeito nenhum. Há sempre uma parte da vida do escritor que é ser escritor, não importa como você viva. É a sensibilidade isolada do escritor, o estado de alerta, a separação - como escritor, você se separa dos outros o tempo todo. Porque há uma parte de você que está registrando, como escritor, o que vê e o que sente. Mas, ainda assim, você precisa desta relação de trabalho muito próxima e isto leva tempo. Assim como uma amizade demora a se formar, assim como fazer a corte leva tempo. Às vezes, você encontra alguém, acha que gosta da pessoa, que até ama esta pessoa e, depois, não dá certo.
Foi assim com Vida de Escritor?
No livro, eu descrevo a forma que acompanha a curiosidade, o que você faz depois que a curiosidade o leva para uma certa direção. Como você se mantém na missão, como mantém o curso, como não se perde. É isto o que eu chamo a arte de "hanging out". É assim que faço meu trabalho. Eu não saio por aí anotando tudo ou gravando. Mas eu carrego comigo estes cartões aqui (mostra várias cartolinas de caixas de camisas sociais recortadas em retângulos que cabem no bolso do paletó). E eu saio com uma caneta o tempo todo, anoto umas coisas, de preferência não na frente das pessoas. E aí, quando termino de trabalhar no fim do dia, uso a máquina de escrever (a mesma IBM elétrica há 35 anos). Depois que faço toda a pesquisa - e isso pode demorar anos - é que escrevo. Eu demoro 7, 8, 9 anos para escrever um livro.
Mas, se ficar entusiasmado com um personagem ou uma história, não dá vontade de começar a escrever logo?
Oh, não! Nunca tenho vontade de escrever logo (risos). E muitas vezes não quero escrever de jeito nenhum... Esta parte que é dureza. Divertido é pesquisar. Especialmente quando viajo muito com os personagens; às vezes vou longe atrás deles. Neste livro, quando fui atrás da jogadora de futebol chinesa, não tinha nada marcado com ela. Simplesmente tomei um avião e fui procurá-la entre os bilhões de chineses. Mas não é possível escrever sem antes organizar, avaliar o material que se tem. Nunca fiz cinema mas o meu método não é muito diferente do de um diretor fazendo seu storyboard. Tudo o que eu escrevo, seja um livro ou artigo de revista, começa com uma cena.
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