sábado, maio 30, 2009

PETER CAREY: 30 dias em Sidney


Depois de morar dez anos em Nova York, o romancista Peter Carey voltou a Sydney com a idéia de capturar a excitação da cidade através dos quatro elementos da natureza. Buscando imagens da água, da terra, do fogo e do ar, o autor arrasta os leitores por uma viagem inédita de descoberta ou redescoberta, criando com palavras um retrato quase físico de Sydney. Dito de outro modo, é como se a própria cidade nos contasse suas histórias e exibisse, diante de nós, todas as características que a tornam singular na sua beleza, na sua força, nas suas extravagâncias. Detentor de todos os principais prêmios literários australianos e de um Booker Prize (por Oscar e Lucinda, de 1988), Peter Carey escreveu "uma pequena obra-prima sobre uma cidade fabulosa" (The Times).


Trecho inicial:

Não espero ser capaz de transmitir a nenhum leitor a minha própria idéia da beleza da baía de Sydney, escreveu Anthony Trollope. Nada vi parecido entre todas as angras e enseadas, nada que se compare. A baía de Dublin, a baía de Spezia, Nova York e a enseada de Cork são todas belas e pitorescas. A baía de Bantry, com seus braços de mar correndo até Glengarrif, é adorável. Mas nada se iguala a Sydney em forma, cor ou variedade. Não conheço Nápoles, nem o Rio de Janeiro, nem Lisboa, mas pelas descrições e imagens sou levado a crer que nenhuma delas pode possuir tamanho encanto como o das águas contidas pelas Sydney Heads. Não dava para ver a baía do assento no corredor do Boeing 747 que me trazia de Nova York de volta ao lar. Tive de me contorcer e esticar o pescoço como faziam os meus companheiros de ombros largos de Connecticut, todos vestidos com uniformes espetaculares, confeccionados com os motivos (as listras e as estrelas) da bandeira americana. Membros de uma equipe de artes marciais, eles estavam tão ouriçados em relação à viagem, e tão estrepitosamente excitados desde que tínhamos deixado Los Angeles treze horas antes, que acabaram servindo como o teste definitivo aos poderes do meu Temazepam. Precisei tomar duas cápsulas de 15 mg e quatro taças de vinho tinto antes de poder por fim pegar no sono. Nossa conversa fora breve. Eu sabia apenas que eles almejavam ganhar algumas medalhas em Sydney. Sabiam que eu morava em Nova York. E tenho certeza de que nem desconfiavam de que eu pudesse ser um australiano tentando obter um vislumbre do velho lar. Lar? Só me mudei para Sydney quando já estava com quase quarenta anos e ainda assim trazendo na bagagem a típica desconfiança de Melbourne por essa cidade vulgar e trapaceira, antro de condenados. Aluguei uma casa geminada, caindo aos pedaços e com goteiras, em Balmain, pois sabia que, mesmo se a minha mãe estivesse certa, e Sydney fosse igualzinha ao Liberace, não me arrependeria de acordar todas as manhãs com a vista do porto. Isso era em Wharf Road, em Balmain, entre o estaleiro Stannard e o velho terminal da Caltex. Balmain era um velho bairro operário com favas de baunilha na vitrine da confeitaria, péssimos restaurantes, pubs sombrios cheirando a cerveja azeda e freqüentados por estivadores, comunistas, bandidos, policiais e o peculiar mitômano que idealizou a vida literária local ao descrevê-la a um repórter do Le Monde como “Le Ghetto de Balmain”. Havia escritores, sim, mas naqueles anos Balmain tinha uma zona portuária em atividade e do fundo do meu negligenciado jardim eu podia avistar os rebocadores de casco marrom e baixo, os petroleiros e os cargueiros ancorados, sentir o cheiro de óleo e assistir aos rasantes dos morcegos, como os Nazguls de Tolkien, nas noites quentes e subtropicais, enquanto Margot Hutcheson, com quem eu vivia naquele tempo, dormia ao meu lado num colchão bem na beira do ancoradouro. A escuridão iridescente e oleosa latejava com o barulho dos motores dos navios.

Nenhum comentário: