quinta-feira, maio 14, 2009

Proust e Albertine


"Em compensação, nada mais me restava para descobrir de Albertine. A cada dia ela me parecia menos bonita. Somente o desejo que excitava nos outros, quando, ao percebê-lo, eu começava a sofrer e queria disputá-la aos demais, a elevava em meus sonhos a um alto patamar. Ela era capaz de me causar sofrimento, mas de modo algum alegria. Só pelo sofrimento é que subsistia a minha tediosa ligação. Quando ela desaparecia, e com ela a necessidade de acalmar essa ligação, exigindo toda a minha atenção como uma distração atroz, eu sentia o nada que ela era para mim, que eu devia ser para ela. Sentia-me infeliz com a duração desse estado e por momentos desejava conhecer algo terrível que ela tivesse feito e que fosse capaz de nos deixar brigados até que eu me curasse, o que permitiria que nos reconciliássemos, que reatássemos de modo diverso e mais flexível a corrente que nos una. Enquanto esperava, encarregava mil circunstâncias, mil prazeres, de lhe proporcionarem junto a mim a ilusão dessa felicidade que eu já não me sentia capaz de lhe oferecer. Logo que estivesse curado, gostaria de partir para Veneza; mas como fazê-lo se me casasse com Albertine, eu tão ciumento dela que, mesmo em Paris, quando me resolvia a mexer-me era para sair com ela? Mesmo quando ficava em casa a tarde inteira, meu pensamento a seguia em seu passeio, descrevia um horizonte longínquo, azulado, engendrava em torno ao centro que eu era uma zona móvel de incerteza e vaguidão" (p. 26)


Giles Deleuze, em Proust e os Signos:

O ser amado aparece como um signo, uma "alma": exprime um mundo possível, desconhecido de nós. O amado implica, envol­ve, aprisiona um mundo, que é preciso decifrar, isto é, in­terpretar. Trata-se mesmo de uma pluralidade de mundos; o pluralismo do amor não diz respeito apenas à multiplicidade dos seres amados, mas também à multiplicidade das almas ou dos mundos contidos em cada um deles. Amar é procurar explicar, desenvolver esses mundos desconhecidos que permanecem en­volvidos no amado. É por essa razão que é tão comum nos apaixonarmos por mulheres que não são do nosso "mundo", nem mesmo do nosso tipo. Por isso, também as mulheres amadas es­tão muitas vezes ligadas a paisagens que conhecemos tanto a ponto de desejarmos vê-las refletidas nos olhos de uma mulher, mas que se refletem, então, de um ponto de vista tão misterioso que constituem para nós como que países inacessíveis, desco­nhecidos: Albertina envolve, incorpora, amalgama "a praia e a impetuosidade das ondas". Como poderíamos ter acesso a uma paisagem que não é mais aquela que vemos, mas, ao contrário, aquela em que somos vistos? "Se me vira, que lhe poderia eu sig­nificar? Do seio de que universo me distinguia ela? (p. 7)
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O grande tema do Tempo redescoberto é o seguinte: a busca da verdade é a aventura própria do involuntário. Sem algo que force a pensar, sem algo que violente o pensamento, este nada significa. Mais importante do que o pensamento é o que "dá que pensar"; mais importante do que o filósofo é o poeta. Victor Hugo faz filosofia em seus primeiros poemas, porque "ele ainda pensa, em vez de contentar-se, como a natureza, em dar que pensar".l Mas o poeta aprende que o essencial está fora do pensamento, naquilo que força a pensar. O leitmotiv do Tempo redes coberto é a palavra forçar: impressões que nos forçam a olhar, encontros que nos forçam a interpretar, expressões que nos forçam a pensar. (p. 89)


Convertida na desbotada prisionei­ra, reduzida ao seu eu sem brilho lhe eram necessários, para lhe serem restituídas as cores, aqueles relâmpagos em que eu me re­cordava do passado." Apenas o ciúme tornará a preenchê-la, por um instante, com um universo que uma lenta explicação se esforçará, por sua vez, em esvaziar. Devolver ou restituir o eu do narrador a ele próprio? Trata-se na verdade de outra coisa. Tra­ta-se de esvaziar cada um dos eus que amou Albertina, de conduzi-lo a seu término, segundo uma lei de morte que se en­trelaça com a das ressurreições, como o tempo perdido se entre­laça com o tempo redescoberto. E os eus se obstinam tanto em procurar seus suicídios, em repetir-preparar seus próprios fins, quanto em reviver em outra coisa, repetir-rememorar suas vidas (p.114)

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