domingo, novembro 07, 2010

Otto Maria Carpeaux

Kafka: "A incomensurabilidade do mundo material e do mundo espiritual - eis a atmosfera de Kafka. A ordem do Universo está perturbada quando espíritos aparecem no mundo da matéria; nisso, todos concordam. Conforme Kafka, 'só o mundo espiritual existe; o chamado mundo material é a encarnação enganadora do Demônio' - quer dizer, a ordem do universo de Kafka está perturbada porque corpos e objetos materiais aparecem entre os espíritos. Neste sentido, as ruas e casas das nossas cidades estão povoadas de espectros, dos quais os limpa-chaminés são os mais tremendos. Todos nós estamos misteriosamente transformados assim como Gregor, na Metamorfose, está transformado num inseto gigantesco e horroroso. Conforme aquela 'interpretação teológica', a Justiça mais injusta (no Processo) e a burocracia mais mesquinha (no Castelo) seriam transformações de executores da ira divina contra a humanidade culpada (...) O Deus de Kafka seria o próprio Diabo. Mas, no fundo, é só um gigantesco limpa-chaminés". 

Schubert: "As melodias de Schubert são em geral de simplicidade diatônica; aí está a parte espontânea, instintiva de sua arte. Mas, para compreender-lhes bem o sentido poético, é preciso dar atenção ao acompanhamento ao piano. No lied Despedida, que fala de uma despedida para sempre e de cavalos que esperam fora da porta - talvez sejam cavalos fúnebres -, o acompanhamento é uma pequena sinfonia de pateados impacientes e acordes sinistros, culminando numa dissonância audaciosa (lá menor e mi bemol maior ao mesmo tempo). Acordes assim, 'moderníssimos', oscilando entre menor e maior, são freqüentes na música de Schubert; transformam-lhe a melancolia comum dos bêbados em angústia demoníaca. Cai a noite e a gente desce daquelas colinas, procurando no escuro a cidade iluminada. Canções alegres perturbam, então, o silêncio dos bosques; mas o bêbado está em perigo de perder o caminho. Para Schubert, a noite significa profundidades noturnas, demoníacas, da obsessão". 

Vermeer: "O nome de Jan Vermeer van Delft é caro aos amigos da pintura. É verdade que esse mestre holandês da segunda metade do século XVII não possuía a profundidade religiosa de Rembrandt; basta comparar os apóstolos de Emaús deste último - a luz mística em torno da cabeça do Cristo, incendiando as tristes trevas que envolvem os apóstolos proletários - com o pobre quadro, no Museu Boymans, em Rotterdam, em que Vermeer representou a mesma cena, transformando-a em ceia de três camponeses triviais. Tampouco sabia o pintor de Delft conferir aos seus quadros o esplendor dos mestres da Renascença: estes transfiguraram os homens em personagens mitológicos, enquanto a deusa Diana de Vermeer, no Mauritshuis, é uma senhora insignificante, tomando banho de pés. Vermeer não era da estirpe dos lucíferes mediterrâneos nem daquela outra de profetas nórdicos. Só era pintor, só. Pintou cenas da simples vida caseira: moças, uma cozinha, a porta da rua".

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