fonte: http://home.comcast.net/~pensadoresbrasileiros/RobertoCampos/reflexoes_sobre_a_privatizacao_95.htm
31/12/95
"Não é função do governo fazer um pouco pior ou um pouco melhor o que os outros podem fazer, e sim fazer o que ninguém pode fazer"
Lord Keynes
A palavra "privatização" ingressou no vocabulário inglês em 1970 em livro de David Howell. "A new style of Government". Nos anos 80, lady Thatcher daria vivência política à idéia, através do programa pioneiro de privatização de estatais na Inglaterra. As idéias e os métodos se tornaram artigos de exportação e geraram mesmo uma nova ciência, a "micro política".
A privatização é hoje um fenômeno universal, independentemente de ideologia política liberal, social-democrata ou pós-comunista. O Estado cresceu demais e tem de ser reinventado.
Registrem-se de início três paradoxos:
. Alguns dos programas mais rápidos e abrangentes de privatização foram executados por governos trabalhistas com tinturas de esquerda (Nova Zelândia e Austrália), ou por governos pós-socialistas (República Tcheca e Rússia);
. A privatização, por meio do capitalismo, realiza o sonho do socialismo, isto é, a propriedade pública dos meios de produção. Quer nos países capitalistas, quer nos socialistas, as empresas públicas não são do público e sim dos políticos que as manipulam e dos tecnocratas que as tripulam.
. A chamada "privatização espontânea", isto é, a distribuição gratuita a toda a população de "vouchers" (bônus conversíveis em ações), amplamente usada nos países ex-comunistas, foi inventada num país capitalista, o Canadá. Em 1975, na província de British Columbia, um governo conservador decidiu revogar as estatizações do governo anterior. Congregou as empresas estatizadas numa holding, distribuindo gratuitamente cinco ações a cada membro da população.
A vitória universal da idéia privatista, que tem sofrido interrupções porém não reversão, resulta de duas constatações:
. Os governos estão falidos, em virtude da resistência do contribuinte a novos impostos, em contraste com crescentes exigências de serviços básicos;
. A revolução tecnológica e a globalização de mercados exigem uma flexibilidade decisória inatingível pelos dinossauros estatais.
Os argumentos genéricos em favor da privatização têm raízes filosóficas, econômicas, políticas e éticas.
Os cientistas sociais costumam salientar cinco aspectos:
a) o redimensionamento do governo;
b) o alívio fiscal;
c) a melhoria de eficiência;
d) a despolitização das decisões gerenciais;
e) a democratização de capital.
Filosoficamente, as funções do governo devem ser reinventadas. Para usar a expressão do professor E. E. Savas, do Baruch College, de Nova Iorque, o governo deve "pilotar em vez de remar. As grandes burocracias centralizadas oprimem o cidadão em vez de servi-lo.
Economicamente, a privatização leva a ganhos de eficiência, pois o talento mais escasso nos governos é o talento gerencial. Estudos do Banco Mundial sobre 12 casos de privatização - Chile, Malásia, México e Grã-Bretanha - revelaram que em 11 deles houve uma melhoria de produtividade média em cerca de 26%, comparativamente à situação pré-privatização. No Brasil, os resultados na siderurgia e na petroquímica foram ainda mais dramáticos!
Um subproduto econômico importante é o alívio fiscal. Os estatizantes comparam apenas as receitas diretas da venda das estatais com a dívida pública, e concluem pela inexpressividade das privatizações para o saneamento fiscal.
Na realidade, a privatização é a única solução realista, pois mesmo uma boa reforma fiscal apenas equilibraria as contas, contendo o "fluxo" de endividamento. O "estoque" da dívida só poderia ser abatido mediante inalcançáveis superávits ou mediante a venda de estatais.
O alívio fiscal desta decorrente vai muito além do valor da venda: eliminam-se déficits e subsídios; economizam-se novos investimentos governamentais; e aumenta a receita de impostos em virtude da aceleração dos investimentos.
Politicamente, a privatização separa melhor o poder político do poder econômico, evitando que o governo concentre ambas as coisas, criando clientes dependentes em vez de eleitores independentes. A desconcentração da propriedade e o regime de competição favorecem a ética econômica.
Às vantagens gerais da privatização soma-se, no caso brasileiro, a diminuição da taxa de corrupção. A vasta maioria dos "escândalos ocorre nos contratos de empreiteiros e fornecedores com empresas estatais. A concorrência é distorcida por favorecimentos políticos.
As estatais, quando deficitárias, não pagam impostos, e quando superavitárias pagam dividendos pífios, preferindo ampliar atividades ou fazer doações aos seus fundos de pensão. Vendendo-as, o governo tem o privilégio do gigolô: continua sócio oculto por meio do Imposto de Renda.
Há várias modalidades:
(a) privatização de empresas, seja por venda em dinheiro, seja pela distribuição gratuita de ações aos cidadãos;
(b) privatização de serviços públicos pela venda de empresas existentes ou pela outorga de concessões a investidores privados;
(c) privatização da gerência, segundo três modalidades: contratos de gestão dentro do próprio setor público; transferência da gestão ao setor privado, mediante contratos de administração; contratos regulatórios, que vinculam o concessionário a normas de comportamento supervisionadas por órgãos reguladores públicos.
Com a flexibilização dos monopólios constitucionais, o governo deixará cada vez mais de ser um operador para ser um regulador. Essa transformação cultural tem servido de desculpa para enormes atrasos na flexibilização da eletricidade, telecomunicações e petróleo. A desculpa é pobre pois o Brasil não é pioneiro na área e poderia ter se aproveitado da enorme experiência internacional já existente.
Basicamente, existem três níveis modelos regulatórios para os serviços básicos privatizados. No primeiro, fixa-se um lucro máximo sobre os investimentos realizados. No segundo, fixa-se um preço máximo sobre os serviços vendidos, admitindo-se que estes sejam periodicamente reajustados abaixo da inflação (pois que se espera que a privatização traga aumentos de produtividade). No terceiro, escolhe-se uma empresa modelo de produtividade, ou constrói-se uma empresa hipotética, cujos preços serviriam de padrão.
O primeiro modelo é o usado nos Estados Unidos mas tem a desvantagem de às vezes remunerar investimentos excessivos.
O segundo é o inglês. Estabelece-se uma regra, aplicável durante períodos longos, segundo a qual as tarifas ficariam sempre abaixo da inflação, para forçar as empresas a aumentarem sua produtividade, sendo o lucro proporcional ao ganho de eficiência. O modelo da tarifa padrão é adotado em poucos países, inclusive o Chile.
A lentidão das privatizações no Brasil é difícil de entender. A situação fiscal se deteriorou enormemente em 1985. Os custos da rolagem da dívida pública interna são absurdos. O governo Fernando Henrique não tem objeções ideológicas à privatização, como no caso de Itamar Franco; e não tem as desvantagens do pioneirismo, como no caso de Fernando Collor. Entretanto, consegue ser mais lento que ambos...
As resistências à privatização provêm de várias fontes, valendo mencionar o corporativismo burocrático (que receia a perda de poder político e de mordomias funcionais), o socialismo residual, que se apega nostalgicamente ao mito do Estado provedor; e o nacionalismo, que exagera o valor das "riquezas naturais" e confunde "controle estratégico" com gerência governamental.
Curiosamente, a melhor justificativa de privatização não está na arenga dos conservadores, como o presidente Reagan ou lady Thatcher. Está no dito de Keynes que serve de epígrafe para este artigo. Tido como o paladino da intervenção estatal, lord Keynes, se estivesse vivo, certamente diria que nada mais perigoso para o mestre que a burrice dos discípulos.
ROBERTO CAMPOS, 78, economista e diplomata, é deputado federal pelo PPB do Rio de Janeiro. Foi senador pelo PDS-MT e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).
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