terça-feira, junho 21, 2011

C.S. Lewis: Trindade

Você pode perguntar: "Se não conseguimos imagi­nar esse Ser tripessoal, de que adianta falar sobre ele?" Bem, de nada adianta falar sobre ele. O que interessa é sermos atraídos e conduzidos de fato para dentro dessa vida tripessoal. Esse processo pode começar, aliás, a qual­quer momento — hoje à noite, se você quiser.
O que quero dizer é o seguinte: o simples cristão ajoelha-se e faz suas orações, tentando entrar em contato com Deus. Porém, se ele é cristão, sabe que o que o induz a orar é também Deus: Deus, por assim dizer, dentro dele. E sabe também que todo o conhecimento real que possui de Deus veio por meio de Cristo, o Homem que foi Deus. Sabe que Cristo está de pé a seu lado, aju­dando-o a orar, orando por ele. Você vê o que está acon­tecendo? Deus é aquilo para o qual ele ora — o objeti­vo que tenta alcançar. Deus é também aquilo, dentro dele, que o impele — a força motriz. Deus, por fim, é a estrada ou a ponte que ele percorre para chegar a seu objetivo. Assim, toda a vida tríplice do Ser tripessoal en­tra em ação nesse quarto humilde onde um homem co­mum faz suas orações. O homem está sendo capturado por um tipo superior de vida — o que chamei de zoé ou vida espiritual: está sendo atraído para dentro de Deus pelo próprio Deus, sem deixar de ser ele mesmo.
E foi assim que começou a Teologia. As pessoas já conheciam Deus de forma mais ou menos vaga. Então veio um homem que dizia ser Deus; um homem que, no entanto, ninguém conseguia rejeitar como um luná­tico. Esse homem fez com que as pessoas acreditassem nele. Essas pessoas voltaram a encontrar-se com ele de­pois de tê-lo visto ser assassinado. Por fim, tendo-se cons­tituído numa pequena sociedade ou comunidade, essas pessoas de alguma forma descobriram a Deus dentro de si próprias, dizendo-lhes o que fazer e tornando-as capazes de atos que até então eram impossíveis. Quando entenderam tudo isto, elas chegaram à definição crista do Deus tripessoal.
Essa definição não é algo que inventamos. A Teolo­gia, em certo sentido, é uma ciência experimental. São as religiões simplistas que foram inventadas. Quando digo que ela é uma ciência experimental "em certo sentido", quero dizer que é igual às outras ciências experimentais sob alguns aspectos, mas não todos. Se você é um geó­logo que estuda minerais, você tem de ir a campo para encontrá-los. Eles não irão até você e, quando você os en­contra, eles não podem escapulir. Toda a iniciativa cabe a você. Os minerais não podem nem ajudá-lo, nem pre­judicá-lo. Agora suponha que você seja um zoólogo que se propôs a tirar fotos de animais em seu hábitat natu­ral. A situação fica um pouco diferente. Os animais sel­vagens não irão ao seu encontro, mas podem fugir de você, e, se você não ficar bem quieto, certamente o fa­rão. Começa a haver aqui um pouquinho de iniciativa por parte deles.
(...) 
eu disse que Deus é um Ser que contém três pessoas sem deixar de ser um único Ser, da mesma forma que o cubo contém seis quadrados e não deixa de ser um único corpo. Contudo, quando eu começar a explicar como essas pessoas estão relacio­nadas entre si, terei de usar palavras que dão a impres­são de que uma delas existe antes das outras. A primeira pessoa é chamada de Pai, e a segunda, de Filho. Dizemos que o primeiro gera, ou produz, o segundo; usamos a palavra gera, e não faz, porque o que foi gerado é da mesma espécie do que o gerou. Assim, a palavra "Pai" é a única apropriada. Infelizmente, porém, ela dá a en­tender que o Pai é anterior ao Fílho — como um pai hu­mano existe antes de seu filho. Mas isso não é verdade. Nesse caso, não existe antes e depois. E por isso que con­sidero importante deixar o mais claro possível que uma coisa pode ser a fonte, a causa ou a origem de outra sem necessariamente existir antes dela. O Filho existe porque o Pai existe, mas nunca houve um tempo em que o Pai não houvesse ainda gerado o Filho.
Talvez a melhor maneira de entender o assunto seja a seguinte: pedi agora há pouco que vocês imaginassem dois livros, e provavelmente a maioria de vocês imagi­nou. Ou seja, vocês produziram um ato de imaginação que resultou numa imagem mental. Salta à vista que o ato de imaginação foi a causa, e a imagem mental, o efei­to. Isso, porém, não significa que você primeiro fez o esforço imaginativo e depois chegou à imagem. As duas coisas aconteceram simultaneamente. Sua vontade retinha a imagem diante dos olhos de sua mente. Não obstante, o ato de vontade e a imagem se manifestaram no mesmíssimo momento e terminaram igualmente num mesmo momento. Se houvesse um Ser que sempre ti­vesse existido e tivesse imaginado algo desde a eternida­de, seu ato teria produzido desde sempre uma imagem mental; mas a imagem seria tão eterna quanto o ato.
Da mesma maneira, temos de conceber que o Fi­lho, por assim dizer, desde sempre fluí do Pai, como a luz flui da lâmpada, ou o calor do fogo, ou os pensa­mentos da mente. Ele é a auto-expressão do Pai — o que o Pai tem a dizer. E nunca houve um tempo em que o Pai ficou calado. Mas veja só o que aconteceu: todas es­sas imagens de luz e de calor fazem com que o Pai e o Filho acabem se parecendo com duas coisas, e não com duas pessoas. Assim, no fim das contas, a imagem de um Pai e de um Filho, que o Novo Testamento nos dá, revela-se muito mais exata que qualquer outra pela qual tentarmos substituí-la. E isso que sempre acontece quan­do nos afastamos das palavras da Bíblia. Não há nada de errado em nos afastarmos delas por certo tempo para esclarecermos uma questão específica. No entanto, sem­pre devemos voltar. Naturalmente, Deus sabe descre­ver-se a si mesmo muito melhor do que nós poderíamos descrevê-lo. Sabe que a relação entre Pai e Filho, aqui descrita, se parece muito mais com a da Primeira e da Segunda Pessoa que qualquer outra que pudéssemos con­ceber. A coisa mais importante a saber é que ela é uma relação de amor. O Pai se compraz no Filho; o Filho, cheio de admiração, modela-se no Pai.
Antes de seguirmos adiante, perceba o quanto isso é importante do ponto de vista prático. Pessoas de to­dos os tipos gostam de repetir a afirmação cristã de que "Deus é amor". Elas não se dão conta de que essas pala­vras só podem significar alguma coisa se Deus contiver pelo menos duas pessoas. O amor é algo que uma pes­soa sente por outra. Se Deus fosse uma única pessoa, não poderia ter sido amor antes da criação do mundo. E claro que, em geral, o que essas pessoas querem dizer é algo bastante diferente: "O amor é Deus." Querem di­zer, na realidade, que nossos sentimentos amorosos, como quer e onde quer que surjam, e quaisquer que sejam seus efeitos, devem ser tratados com todo o respeito. Pode até ser, mas trata-se de algo bem diferente do que os cris­tãos entendem pela afirmação "Deus é amor". Eles acre­ditam que a atividade vivida e dinâmica do amor sem­pre esteve presente em Deus, desde toda a eternidade, e criou todas as outras coisas.
Aliás, talvez seja essa a diferença fundamental entre o cristianismo e todas as outras religiões: no cristianis­mo, Deus não é um ente estático - nem mesmo uma pessoa estática -, mas uma atividade pulsante e dinâmi­ca; é uma vida dotada de grande complexidade interna. E quase — por favor, não me julguem irreverente - como uma dança. A união entre o Pai e o Filho é algo tão vivo e concreto que ela mesma é também uma pessoa. Sei que isso é quase inconcebível, mas tente compreender a questão sob este ponto de vista: você sabe que, entre os seres humanos que se unem numa família, num clube ou num sindicato, as pessoas falam do "espírito" dessas agremiações. Falam desse "espírito" porque os membros individuais, quando estão juntos, desenvolvem manei­ras particulares de conversar e de se comportar que não desenvolveriam se não estivessem juntos[1]. E como se uma personalidade comunal ganhasse existência. E cla­ro que, nesse exemplo, não se trata de uma pessoa real: é apenas algo que se parece com uma pessoa. Mas essa é somente uma das diferenças entre Deus e nós. Aquilo que nasce da vida conjunta do Pai e do Filho é uma pes­soa real; é, com efeito, a terceira das três pessoas de Deus.
Essa Terceira Pessoa é chamada, em linguagem téc­nica, de Espírito Santo ou "Espírito de Deus". Não se preocupe nem se surpreenda se acontecer de você achar essa pessoa mais vaga e misteriosa que as outras duas. Penso que existe uma razão para que isso aconteça. Na vida cristã, nós não costumamos olhar para ele. Ele está sempre agindo através de nós, Se você imagina o Pai como algo que está "fora", à sua frente, e imagina o Fi­lho como alguém que está ao seu lado, ajudando-o a orar, tentando fazer de você também um filho de Deus, então tem de conceber a terceira pessoa como algo dentro de você, ou atrás de você. Talvez algumas pessoas achem mais fácil começar pela terceira pessoa e fazer o caminho inverso. Deus é amor, e esse amor opera atra­vés dos homens — especialmente através de toda a co­munidade cristã. Mas esse espírito de amor é, desde toda a eternidade, um amor que se dá entre o Pai e o Filho.
Bem, e qual a importância disso? É a coisa mais im­portante do mundo. A dança, o enredo dramático ou a complexidade interna dessa vida tripessoal deve se de­senrolar dentro de cada um de nós. Vendo a questão do outro lado, cada um de nós tem de penetrar nessa com­plexidade interna, assumir seu lugar nessa dança. Não existe outra maneira de se alcançar e usufruir a felici­dade para a qual fomos criados. Saiba você que não as coisas más, mas também as boas, são contraídas como uma espécie de infecção. Se você quer se aquecer, tem de se aproximar do fogo; se quer se molhar, tem de en­trar debaixo d'água. Se quer a alegria, o poder, a paz e a vida eterna, tem de se aproximar ou mesmo penetrar naquilo que as contém. Essas coisas não são prêmios que Deus poderia, se quisesse, simplesmente conceder a qual­quer pessoa. São uma grande fonte de energia e de be­leza que jorra a partir do próprio centro da realidade. Se você estiver próximo da fonte, as rajadas de água o mo­lharão; se se mantiver afastado, continuará seco. Quan­do o homem está unido a Deus, como poderia não vi­ver para sempre? Quando está separado de Deus, o que pode fazer senão definhar e morrer?
Mas como pode ele se unir a Deus? Como podemos ser atraídos para dentro da vida trinitária?
Lembre-se do que eu disse no Capítulo 2 sobre a geração e a criação. Nós não fomos gerados por Deus, mas apenas criados: em nosso estado natural, não somos filhos de Deus, mas apenas (por assim dizer) estátuas. Não possuímos zoé, a vida espiritual, mas apenas bíos, a vida biológica, que em breve definhará e morrerá. A ofer­ta que o cristianismo faz se resume no seguinte: se dei­xarmos Deus agir, poderemos vir a compartilhar da vida de Cristo. Então, partilharemos de uma vida que foi gerada, não criada; uma vida que sempre existiu e sem­pre existirá. Cristo é o Filho de Deus. Se participarmos desse tipo de vida, também seremos filhos de Deus. Amaremos o Pai como o Filho o ama, e o Espírito San­to despertará em nós. Cristo veio a este mundo e se fez homem a fim de disseminar nos outros homens o tipo de vida que ele possui - por meio daquilo que chamo de "boa infecção". Todo cristão deve tornar-se um peque­no Cristo. O propósito de se tornar cristão não é outro senão esse.



[1] Esse comportamento corporativo pode ser, evidentemente, melhor ou pior que o com­portamento individual.

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