quarta-feira, outubro 27, 2010

Mario Vieira de Mello: O HUMANISTA

Comprei o livro em 2000, só agora tirei da estante para ler, demorei demais. Vale muito, especialmente nos dias de hoje,  ler O humanista - A ordem na Alma do Indivíduo e Na Sociedade  da Editora Topbooks.

Veja a apresentação do livro por Olavo de Carvalho:

"Um ancião venerável, alto, erecto e de ombros largos, o olhar claro e enérgico de um homem na força da maturidade, fixo num ponto além do horizonte, onde o vulgo não penetra. Impossível diante dele evitar as reminiscências de leituras gregas. Era a longevidade vigorosa de um atleta de Píndaro, ou a "bela e nobre presença" do velho Parmênides ante os jovens Sócrates e Zenão. Mais nítida ainda era a evocação de Aristóteles, no trecho em que define a beleza na velhice: aquela em que não transparece dor nem fragilidade. A visão de Mario Vieira de Mello, aos 83 anos, infunde-nos euforia e confiança no indomável espírito humano.

A impressão do primeiro encontro renova-se à leitura deste O humanista, coroamento de uma obra iniciada com Desenvolvimento e cultura. Se no livro de estréia, tornado imediatamente um clássico, já se manifestava a altivez com que esse pensador aristocrático se distanciava da massa de seus contemporâneos, como um novo Heráclito, para afirmar com a maior serenidade as verdade que os afungentavem, nestes de agora essa qualidade mostra ser mais que um traço pessoal: é a expressão de uma funda convicção filosófica, afinada e consolidada à força de muita meditação e leitura, mas também da experiência que a profissão diplomática permitiu ao autor colher em muitos povos e lugares. Um núcleo constante de preocupações reaparece em todos os livros de MVM e singulariza o seu pensamento com as marcas inconfundíveis da sua pessoa, formando a unidade compacta de um modo de pensar e de um modo de ser - coisa rara num país onde as convicções professadas costumam ser apenas o emblema da adesão epidérmica às conveniências da hora.

O tema dominante de MVM é a pergunta de Mênon a Sócrates: a virtude pode ser ensinada? Toda a sua obra é uma esforço para demonstrar que sim, para desmistificar os simplismos que, de Maquiavel a Rousseau, rotulam o homem como mau ou como bom (isto quando não legitimam covardemente a indefinição moral), e restaurar a noção platônica e cristã de que o homem é uma possibilidade em aberto, cuja realização ou se dirige por uma meta ideal ou se perde em labirintos sem fim. Mas " o homem", no caso, é a um tempo e inseparavelmente indivíduo, sociedade e Estado. Aeducação, que realiza ou aborta a possibilidade-homem, é a instância onde se unificam a ética e a política. Daí a falácia dos reformismos sociais que pretendem criar uma sociedade boa para homens inalteradamente maus. A virtude tem de ser ensinada, para que o Estado não seja apenas a admiração oportunística da maldade coletiva.

A perda do senso das relações orgânicas entre a alma e o Estado é o pecado original das teorias políticas que desde Hobbes e Locke se debatem entre duas alternativas temíveis: absorver o indivíduo no Estado ou fazer do Estado o servidor das paixões mais baixas do indivíduo. Saltar esse abismo, elevar a teoria política à altura das exigências da condições humana, é a meta da obra desse pensador forte e intransigente, deste educador na plena acepção da palavra - educador da alma e do Estado - , obra que encontra neste Ohumanista a sua expressão mais pura, e que, se ainda restar um pingo de consciência nas nossas classes letradas, deverá se tornar leitura obrigatória em todos os cursos de filosofia e de ciências políticas deste país."

Olavo de Carvalho

Alguns trechos:

“O grande problema, na verdade, é reconciliar duas verdades aparentemente irreconciliáveis: o princípio de que a política é arte do possível e necessidade de que todo Estado político tenha uma base ética” p.93

"Quando insistimos na necessidade do reconhecimento da importância do Estado ético não estamos recomendando a promoção de um Estado que tenha como membros cidadãos moralmente irrepreensíveis; estamos apenas recomendando a existência de um Estado no qual haja um certo equilíbrio entre as estruturas de poder e as estruturas de cultura" p. 95

Eric Voegelin

“Consideremos uma outra vítima da campanha surda de hostilidade que a cultura vassala do Poder move hoje contra o humanismo. Voegelin é descrito nas orelhas de seus livros como um dos maiores historiadores de nossos tempos, como um dos mais profundos e estimulantes do século XX. Entretanto, se passarmos em revista o que vem produzindo a literatura filosófica contemporânea, veremos que são raríssimas as referencias feitas a ele. Em três livros que dão razoavelmente um panorama da produção filosófica de nossos dias e dos debates ocorridos – After MacIntyre, uma coletânea de estudos sobre a obra de Alasdair MacIntyre, Modernism as a philosophical problem, de Robert B. Pippin, e The philosophical discourse of modernity, de Jurgen Habermas – o nome de Voegelin não é nem mesmo mencionado. Mas o desdém que lhe é assim manifestado ele não o retribui. Voegelin era um gentleman. Quem estudar com cuidado sua obra verá que há nela formulações que só poderiam ser interpretadas como uma crítica severa aos Estados Unidos. Mas o modo de apresentação elimina qualquer choque mais direto. Em O cidadão, eu, que já havia citado por inteiro o julgamento mais severo que sobre os Estados Unidos pronunciou Voegelin, aventei a hipótese de que havia sido a preocupação de não ofender o amor próprio dos americanos o motivo pelo qual fora retardada, por cerca de dez anos, a publicação do texto em que ele expressara aquele julgamento, apresentado de modo propício a poupar suscetibilidades. Agora, em palavras captadas por Elias Sandoz, em entrevista com Voegelin que deu origem ao livro Reflexões Autobiográficas, minha hipótese parece substancialmente confirmada. Vale a pena cita-las: “No que diz respeito à institucionalização da ordem existencial, a sociedade americana parece oferecer algumas vantagens quando comparada a outras sociedades nacionais do mundo ocidental. Mas preciso admitir, antes de mais nada, que sou suspeito nesta matéria porque, afinal de contas, tive de fugir, para não morrer, da cena política da Europa Central e fui recebido generosamente na América. Isto naturalmente deu margem a preconceitos. Espero, entretanto, que as observações que farei em seguida não estejam excessivamente marcadas por eles”. Esse prejudice foi uma coisa que sempre me pareceu inibir o julgamento de Voegelin sobre os Estados Unidos. A posição filosófica de Voegelin é a de uma crítica radical, sem compromissos, à cultura contemporânea em todas as formas pelas quais ela se manifesta. A cultura como expressão suprema da existência humana ia desaparecendo e o seu lugar era tomado pela ideologia. A sua critica visava a cultura do mundo ocidental como um todo, mas havia coisas em seus textos que se referiam claramente à realidade da sociedade americana – como quando diz, por exemplo, nas mesmas Reflexões Autobiográficascitadas acima: “Com relação ao clima dominante nas ciências sociais, o filosofo na América se encontra em situação idêntica à de Soljenitzin na União de Escritores Soviéticos – a diferença importante residindo, naturalmente, no fato de que nossa União de Escritores Soviéticos não dispõe de poder governamental para eliminar scholars. Por isso, quando em certas ocasiões Voegelin parece excetuar os Estados Unidos do rigor de suas críticas, deveríamos, creio eu, admirar não a exatidão do filósofo mas a gratidão e as boas maneiras do gentleman que ele era.

E como seria possível excetuar os Estados Unidos da sua crítica se sua bête noire era e sempre havia sido a ideologia? A sociedade norte-americana não era nem marxista, nem fascista, nem nazista, mas era indubitavelmente uma sociedade organizada em torno das estruturas de poder. A obsessão do poder é uma ideologia tão deformadora quanto as ideologias marxista, fascista ou nazista. Voegelin, que incluiu nas suas análises da ideologia a idéia de poder sob a forma de “instrumentalização das paixões”, assim o fez para colocar a sociedade norte-americana sob a mira de sua análise. Através desse processo, o legislador – o legislador norte-americano – introduz o poder no mais íntimo da alma humana, fazendo-a agir não de acordo com seus instintos e emoções naturais, não de acordo com o ordenamento ético promovido pela atividade do princípio racional, mas de acordo com um interesse determinado, o interesse esclarecido em virtude do qual uma maior soma de poder lhe será conferida. O legislador norte-americano afasta com impaciência a idéia de uma ordem humanista na alma do indivíduo; o de que ele precisa é que esta alma esteja em estado de desordem para que possa ser instrumentalizada.

O anti-humanismo é, assim, se nossas deduções são corretas, um ingrediente essencial da estrutura da sociedade norte-americana; não é simplesmente o resultado da influência de atitudes intelectuais como as de um Foucault ou de um Heidegger, mas qualquer coisa sobre a qual se alicerçam realmente as estruturas sociais da nação. Como, pois, poder-se-ia conceber que um filósofo tão arraigadamente humanista como Voegelin tivesse um acolhimento que ultrapassasse os limites da cordialidade? Na verdade, a impressão que se tem é que Voegelin foi mais bem recebido do que seria de esperar nas universidades por onde andou. Mas, se quisermos encontrar seus livros nas livrarias de Nova York, ou em outras cidades dos Estados Unidos que não sejam universitárias, perderemos nosso tempo. Pouco conhecido no mundo filosófico norte-americanos, os autores que o citam são poucos e reticentes. Autores como MacIntyre, Charles Taylor, Richard Rorty, Robert F. Pippim, John Rawls, W.W.O. Quine parecem nunca ter nele ouvido falar. Estou falando apenas dos Estados Unidos, onde, apesar de tudo, ele criou um grupo de admiradores, interessados, entretanto, mais nos seus estudos históricos e teológicos do que propriamente filosóficos. Na Europa, com exceção de Viena, onde, naturalmente, é conhecido porque trabalhou lá quase dez anos, seu nome é praticamente ignorado.

Não creio que o caso de Voegelin seja idêntico ao de Jaeger. Jaeger era muito conhecido provavelmente muito lido – mas era hostilizado e algumas vezes atacado por autores que não tinham competência para criticá-lo. Voegelin simplesmente não é conhecido, pelo menos não é conhecido na sua grandeza, na sua importância. Um humanista hoje não é conhecido simplesmente porque é um humanista”. p. 129-132

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