sexta-feira, outubro 01, 2010

Rene Girard




Entrevista – René Girard

Publicado em 31 de março de 2010

Para o filósofo e historiador francês, a tendência das multidões é canalizar a violência coletiva em um único indivíduo

Melissa Antunes de Menezes

“A concepção romântica do desejo é ilusória”, afirma René Girard, 85, membro da Academia Francesa e professor de Literatura Francesa na Universidade de Stanford. Sua teoria do desejo mimético indica que entre o sujeito e o objeto não existe somente o desejo, mas também o modelo, o mediador do desejo, ou o rival. O conceito de mimesis aqui estabelece o ponto central da articulação. Desde as sociedades primitivas, o desejo mediado é o desejo causador dos conflitos. Pela imitação, aprendemos a falar, a andar e a desejar. E, pela imitação do desejo alheio, competimos e rivalizamos, dando início a um ciclo de violência, capaz de se atenuar pelo sacrifício, neste caso, de uma vítima que acaba por aliviar as tensões do coletivo, reestabelecendo a paz momentânea. Torna-se inevitável, dentro deste esquema, que também o ciúme e a inveja façam parte da mimesis do desejo.

Radicado nos Estados Unidos há mais de 50 anos, Girard estudou o Antigo Testamento sob a ótica sociológica e vê no cristianismo a primeira religião que consegue amenizar a violência pelo expediente da crucificação.

Nesta entrevista, concedida com exclusividade à CULT, o historiador fala sobre alguns dos temas presentes naquele que é considerado seu mais importante livro, Coisas ocultas desde a fundação do mundo, publicado originalmente em 1978 e lançado neste mês pela editora Paz e Terra. Nele, Girard aprofunda, através de diálogos com dois psiquiatras franceses, suas hipóteses sobre a violência, o desejo e a representação do sagrado, desenvolvidas a partir de temas de seu livro anterior, A violência e o sagrado.

CULT – Fala-se muito hoje em violência. Mas não vivemos uma época em que há maior controle social e cultural da violência do que em qualquer outro período da história?

René Girard – Temos um grande controle da violência no que se refere ao local. Entretanto, as pessoas não estão cientes da violência em si. A mediação externa resolve o problema da violência de forma imperfeita porque o faz através de uma vítima. Considero que temos paz no âmbito individual, mas a ameaça está no coletivo. Tanto o rito quanto a proibição somente adiam a explosão da violência.

Sistemas religiosos como o cristianismo atuam no sentido de conscientizar sobre o uso da vítima expiatória. E não existe uso deste mecanismo de forma consciente. O bode expiatório é inconsciente, ou não é.

Em um nível exponencialmente maior, estamos lidando hoje com a possibilidade da destruição total, do uso da violência em termos absolutos, através do crescente desenvolvimento de tecnologias novas como a nanotecnologia — manipulação de partículas que podem desencadear reações de potencial altamente destrutivo.

CULT – Assim como Peter Gay, o senhor afirma que o coletivo é assassino por natureza e não o homem. Poderia explicar?

RG – Penso que o indivíduo não é assassino em sua natureza e, sim, o coletivo. As descobertas coletivas são perigosas em vários aspectos do desenvolvimento humano.

A primeira metade do século 20 foi intensamente bélica. O século 21 traz novos desafios e preocupações, que são o desenvolvimento científico e as descobertas para as quais não estamos novamente preparados.

Acredito que nossa natureza mimética é responsável pela tendência das multidões de focalizar sua violência em um único indivíduo que se transforme, arbitrariamente, no bode expiatório de alguma comunidade. A matança unânime de uma vítima inocente, no passado, pacificava multidões perigosamente perturbadas e tornou possível sua estabilização.

Acredito que o bode expiatório tem um papel essencial na criação e na perpetuação de religiões arcaicas. As culturas arcaicas foram essencialmente a repetição de sacrifícios religiosos, evacuando a violência interna através destas vítimas substitutas. Isto não significa que eu recomende o mecanismo do bode expiatório para a manutenção da paz dentro das comunidades. Uma vez que o ciclo do sacrifício é compreendido, ele perde sua eficácia, como uma arma contra a violência interna.

Os deuses arcaicos, na minha opinião, são vítimas da matança daqueles que põem fim à violência disruptiva e são considerados divindades da violência e da paz.

CULT – Thomas Mann se perguntava: “Não é a paz um elemento de corrupção civil e a guerra purificação, liberação, uma enorme esperança?” O rito sacrificial – o uso da violência para apaziguar ânimos – vem sendo há muito tempo discutido pela literatura universal?

RG – Não concordo que a guerra traga purificação. Na literatura há comentários sobre o comportamento mimético tanto do desejo, quanto da violência. O rito sacrificial é arcaico, é gênese da violência humana. O uso do bode expiatório está presente na literatura, como em Shakespeare, por exemplo.

Esta declaração do jovem Thomas Mann reflete a atitude à época do início da Primeira Guerra e foi compartilhada por muitos ingleses e franceses. Este espírito durou até, aproximadamente, 1916. Estas opiniões sofreram mudanças extremas devido às terríveis perdas da guerra e do progressivo aumento do poder militar.

Mann era muito comprometido e leal às ideias antinazistas e perdeu sua crença no poder enobrecedor do aparato de guerra. Concordo com o Thomas Mann mais velho. No futuro, ou não haverá nenhuma guerra como aquelas do século 20, ou nós veremos a destruição da civilização.

CULT – Em Coisas ocultas desde a fundação do mundo, o senhor diz que os ritos sacrificiais perderam força sob influência do judaísmo e do cristianismo. No que concerne à relação entre Israel e Palestina, existe o uso do mecanismo sacrificial?

RG – Devemos tentar ver todos os conflitos e guerras que temos hoje sob a ótica do mecanismo mimético. Mimesis tanto do desejo, quanto do uso da violência. No cristianismo, quebra-se o ciclo. Cristo oferece a outra face e redime seus algozes. Não busca vingança, não derrama mais sangue. É pela cruz, pelo amor, que se dá a interrupção do ciclo de violência. O cristianismo mostrou que a sociedade humana produzia vítimas únicas. A crucificação desobstruiu o caminho para o entendimento do processo da vítima expiatória.

CULT – Mimetizamos o desejo e também a violência? Ou, ao mimetizar o desejo, criamos a violência?

RG – Sim, as duas sentenças estão corretas. Criamos rivalidade na mimesis, competindo pelo mesmo objeto, desejando os desejos do nosso modelo, o outro. Esta admiração velada do prestígio do outro, do que o outro possui, é a constatação clara de ser insuficiente. Constatação esta muito angustiante e incômoda. Já o modelo, o intermediário, não é passivo dentro deste mecanismo. Pelo contrário, faz de tudo para provocar o desejo do outro sobre seu objeto. Pois, que valor tem o objeto, senão pelo desejo de outrem? Este é o ciclo infernal do desejo. E também dos conflitos.

CULT – Para Freud, o mal-estar do homem moderno ocorreria devido à repressão de sua violência natural, que gera outros problemas de ordem interna e também conflitos sociais de diferentes naturezas. A teoria de Freud não vem de encontro à sua?

RG – Sim, há uma oposição entre as ideias de Freud e as minhas. Muitos diriam que tanto na repressão da libido em Freud, quanto no uso do mecanismo de vítimas arbitrárias para aplacar explosões, reside uma ideia similar. Mas não concordo com Freud e com sua teoria de que tudo está relacionado ao desejo sexual. Freud justifica todo comportamento humano baseando-se nesta ideia. Ele foi o primeiro a ver a profunda influência que uma pessoa tem sobre a outra. Mas discordo de sua visão de que a influência dos pais delinearia a personalidade. A visão de Freud ficou muito restrita ao período em que viveu, no qual predominava um certo tipo de estrutura familiar.

CULT – E quanto àqueles que somente desejam o impossível? Ou, como disse Kierkegaard, “cometem o pecado capital de não querer nada profunda e autenticamente”?

RG – Minhas ideias estão bem mais próximas às de Kierkegaard do que foi visto nas entrevistas que dei e nos artigos escritos sobre minha obra. Para mim, o desejo do impossível e o não-desejo ainda estariam de acordo com mecanismos miméticos.

Kierkegaard constatou, em sua análise dos três estágios do ser, a presença de um homem que se escora no outro. Possuindo um vazio existencial aterrador, ele procura na observação do outro, do que o outro possui, do que o outro aparenta, uma forma de saber quem é e como sentir-se pleno. Portanto, para ser ele mesmo, este homem necessita tomar conhecimento do outro, como no mecanismo do desejo mimético, onde este desejo somente se faz possível pela intermediação do que é e deseja um outro.

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